quinta-feira, 5 de maio de 2011

"Morrerei sendo transgressor", diz Ney Matogrosso

Da Revista Rolling Stone

 Ney Matogrosso não para - e nem pensa em parar. Aos 69 anos e sempre mantendo curtos intervalos entre um disco e outro, Ney acaba de lançar o DVD e CD ao vivo Beijo Bandido, gravado no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em que sublima seu poder nos quadris para focar em sua veia teatral. Dono de uma das vozes mais potentes do Brasil, o intérprete vai aparecer ainda no filme Luz nas Trevas - A Volta do Bandido da Luz Vermelha, que deve estrear neste semestre. "Quero fazer mais cinema, sou ator antes de ser cantor", diz.

Confira a entrevista:

Nos extras do DVD Beijo Bandido, você diz achar que o mundo de hoje é mais careta que antigamente. Por quê?
Porque eu vejo muito mais preconceito, desarmonia, desentendimento. Não sou desses que acha que antigamente o mundo era todo melhor, mas agora o vejo decadente, ladeira abaixo. Por incrível que pareça, na década de 1970 nós tínhamos uma liberdade muito maior. Uma liberdade individual, porque havia uma reação de todos para haver uma liberação. Hoje eu não vejo ninguém mobilizado para nada.

Atualmente, pouca coisa na música parece passar uma imagem realmente transgressora, como foi o caso do Secos & Molhados. As pessoas estão acostumadas a tudo ou há uma falta de criatividade artística?
Não sei te responder... Tem uma música do Luís Capucho com uma temática muito forte que pretendo cantar, que vai ser um teste para isso. Quero ver até onde as pessoas estão acostumadas, se elas reagirão. Vamos ver se o público está evoluído mesmo, ou se está só dormente.

O excesso de nudez, por exemplo, mudou o modo como o jovem se relaciona com a arte?

Talvez sim. É muito louco eu estar falando isso, porque eu sou um artista que introduziu a sexualidade explícita na arte brasileira... Mas acho que tudo hoje é sexo. Quando eu fazia, estávamos em uma ditadura estúpida que mandava jogar pessoas vivas, de um avião, no mar. Então tinha um sentido. Hoje, nem se eu fizesse teria sentido. Há uma banalização da nudez, do sexo. É interessante poder se expressar, mas agora não é contra nada, é uma decadência generalizada. Sou uma pessoa muito liberal, acho que tudo pode, mas isso nem é um excesso de liberalidade, é mais uma vulgaridade que impera. Isso me incomoda.

Qual foi sua maior dificuldade na hora de filmar o Luz nas Trevas - A Volta do Bandido da Luz Vermelha?
Foi no primeiro dia de gravação. Eu tive que encarar um corredor cheio de presos e ele [o Bandido da Luz Vermelha, personagem vivido por Ney] completamente alterado. Fiquei com vergonha dessa exposição emocional, e essa inibição me fazia esquecer o texto. Aí pedi para botarem vários papéis escritos pela parede, porque precisava de uma palavra ou outra para lembrar.

Você tem outros filmes em vista?
Não, mas quero fazer mais cinema. É uma coisa que me dá prazer, por ser um exercício do ator que eu sempre soube que era, mas que não consegui realizar no teatro. Eu sou ator antes de ser cantor. O fato de cantar, para mim, era simplesmente útil ao ator. Eu fiz teatro antes, fiz quatro peças, e era isso que eu achava que ia fazer, embora eu ache que no palco, cantando, eu também sou ator. Pessoalmente, sou completamente diferente daquilo.

Existe alguma vontade, como artista, que você ainda não tenha realizado?
Não. Ainda vou realizar outras coisas até ser impedido pelo tempo, porque eu tenho 69 anos e não acredito que tenha ainda muitos, muitos anos pela frente para exercitar o meu ofício. Mas eu não penso em parar. Ainda tenho um fogo aceso dentro de mim e morrerei sendo transgressor.

Numa entrevista  em 2008, você contou como saiu de casa, quando brigou com seu pai, desde cedo já mostrando um temperamento forte. Alguma vez na vida você baixou a cabeça para alguém?Não, não. Com exceção do tempo em que estava servindo, porque ali você tem que baixar a cabeça. Ali você é um soldado e tem que cumprir ordens, e eu sabia que era isso. Mas só ali.

Apesar dessa imagem de homem destemido, você tem algum grande medo?
Nenhum. O medo que me acompanhou durante a vida inteira foi a morte. Quando eu era criança e me falavam que um dia eu ia morrer, eu chorava dois dias. Hoje eu sei que vai chegar a hora a qualquer momento, e isso é que é o grande mistério da vida. Tento conviver com a maior tranquilidade com esse assunto.

Por que você afirma que Beijo Bandido é um dos shows mais teatrais que você já fez?
Porque ele tem um texto. Quando eu selecionei o repertório, pensei num texto. Não como uma música, mas como um texto mesmo... Ele é mais contido, tem uma introspecção que induz mais ao teatro. Tem um acabamento cinematográfico, mas a minha atuação é mais teatral.

Existe alguma diferença na forma como você se prepara para um espetáculo como Inclassificáveis e Beijo Bandido?
Não, porque eu não me preparo para nada. Eu vou fazendo, chego lá e faço. A única coisa que eu faço, quando eu estou ali no camarim, é ficar sozinho. Às vezes, quando estou com algum obstáculo vocal, faço alguns exercícios e só, porque nem exercício vocal eu costumo fazer.

Você tem algum cuidado especial?
Eu vivo em função disso. Eu não sou de sair à noite, eu não vou pra nada. Se eu estou em temporada, saio do show e não saio nem pra comer, venho direto pra minha casa, pra comer pouquinho e dormir. Preciso descansar. Meu descanso para a voz é o sono. Então fico ali, caretamente vivendo, mas não me queixo. É assim que eu gosto de ser, sabe?

Você tem algum tipo de contato com os fãs?

Eu tenho contato com as pessoas no teatro, as recebo, mas não alimento muito isso de fã, de fanatismo. Acho que temos que ser pessoas civilizadas, vivemos na mesma época neste planeta. Para de bobagem, né?, todo mundo significa, todo mundo tem valor. Eu jamais me refiro a alguém dizendo "ai, meu fã". Acho tão absurdo alguém falar isso de outra! Então você é mais que outro? Acho isso muito estranho. Acho a palavra admirador mais interessante do que fã. Por exemplo, eu sou admirador da Amy [Winehouse]. Mas eu não fui ver o show dela. Não diria que sou um fã.

E por que você não foi?

Ah, porque eu não tenho mais paciência pra me meter em multidão. Se fosse num teatro eu provavelmente iria, mas numa coisa dessas, com 12 mil pessoas... O trânsito do Rio de Janeiro está insuportável.

Você acha que é importante ter músicas em trilhas de novelas, já que é o tipo de programa mais assistido do Brasil?
Não é que eu acho importante, mas não tenho nada contra. Agora, todas as músicas que eu gravo para novela eu não boto no meu show.

E você pensa em gravar um outro disco colaborativo, como Vagabundo?

Eu não tenho a intenção, mas se aparecer um grupo interessante o suficiente para me levar a isso eu não tenho nada contra. Eu gosto dessas misturas, gosto de me juntar.

Hoje existiria alguém?

Tem um grupo de São Paulo que eu gosto muito, o Zabomba, mas não sei eles teriam disponibilidade para uma coisa dessas. Até já pensei nisso, mas não falei nada. Até já gravei com eles.

Você ainda fica apreensivo antes de subir ao palco?
Tenho frio na barriga, suo gelado. Antes de começar o show tenho que ficar com uma toalhinha secando a mão.

Já aconteceu de você querer encerrar um show antes do fim?

A única vez que quis, eu encerrei. Foi no curso Objetivo, em São Paulo, na década de 1970. Eles pareciam uns vândalos. Quando eu entrei no palco, começaram a me jogar bolas de papel, a vaiar. Virei de costas, fiquei rebolando uns cinco minutos, depois comecei a cantar. Aí veio um camarada, cuspiu em mim, eu cuspi nele. Ele disse que ia subir para me dar porrada, mas eu estava com uma queixada de burro na minha mão. Eu disse: "Sobe aqui, seu filho da puta, que eu arrebento a sua cara". Aí virei as costas e fui embora.

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