Da Revista Soprametais
Em tom quase sempre protocolar, as efemérides ficaram meio banalizadas. Todo dia alguma “celebração” de nascimento ou morte ganha os holofotes. Mas nem sempre há o que dizer. E nem sempre o biografado tem força que valha o culto obrigatório. É uma armadilha alimentada pelo jornalismo cultural. A última quarta-feira [26], porém, foi um data que tem um peso diferente da produção rotineira. Quem faria aniversário é o jazzista Miles Davis. Falecido em 1991, aos 65 anos, ele ainda é uma figura influente, referência para muitos instrumentistas e músicos.
O apuramento técnico desenvolvido no trompete é só um dos predicados do norte-americano, que sempre soube se cercar de músicos de excelência. Entram nesta lista Red Garland, Herbie Hancock, Bill Evans, Wynton Kelly, Wayne Shorter, Cannonball Adderley, John Coltrane e Paul Chambers. Além da capacidade de soar sempre único, Miles compôs uma obra incrivelmente variada e atemporal. Foi do jazz tradicional ao mais alto grau de experimentação. Mesmo quando atuou por caminhos mais tortuosos, nunca deixou de criar polêmicas, angariar novos fãs, virar símbolo do que há de mais moderno.
Em sua carreira, gravou dezenas de álbuns, desbravou novas sonoridades, renovou linguagens, fez o jazz virar febre até entre os mais jovens. Hard bop, modal, free bob, jazz rock, fusion… não há como enquadrar uma produção tão camaleônica e genial. É bem provável que se estivesse vivo, estaria a explorar as variantes do nu jazz ou do dubstep.
Eleger o essencial na trajetória de Miles é quase uma heresia, mas três álbuns ajudam a definir a força e sofisticação de sua obra: Birth of Cool, de 1956, Kind of Blue, de 1959, e Bitches Brew, de 1970. O primeiro consolida a transição da fase bop para o cool jazz, quando o trompetista prova que é possível levar uma big band para climas intimistas e mais relaxados. O arranjador Gill Evans teve papel central nas três sessões que resultaram no disco.
O segundo é sua maior obra-prima. O jazz modal de Kind of Blue elevou o gênero para patamares só desfrutados por astros do rock ou do pop. O disco tem apenas cinco faixas, conduzidas com extremo brilhantismo pelo sexteto de Miles. Valsas, blues e baladas dão conta de um trabalho perfeito, inatingível.
Por fim, o terceiro: Bitches Brew. A fase elétrica de Miles, quem diria, também teria sua obra-prima. Com uma música sedutora, hipnótica e complexa, o instrumentista extrapola qualquer convenção em longas e caóticas peças. Wayne Shorter, Joe Zawinul e Chick Corea foram alguns dos jazzistas que participaram deste álbum revolucionário.
Miles Davis morreu em 28 de setembro de 1991. Mas difícil dizer que seu trompete tenha silenciado. É um caso de eterno culto, mesmo quando não há datas redondas para encaixar.
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