RESUMO
Nos anos 1960 e 70, Michel Foucault veio diversas vezes ao Brasil, tendo exercido forte influência em jovens filósofos e psicanalistas, não sem questionar em debates as convicções ideológicas locais. Embora tenha feito laços afetivos e tenha se divertido na Lapa carioca, não manteve uma relação duradoura com o país.
Foucault corrompe a juventude?", pergunta o título de um dos capítulos do livro de Paul Veyne sobre Michel Foucault, ecoando, não sem ironia, a acusação feita pela cidade-Estado de Atenas ao pensador grego Sócrates, quatro séculos antes de Cristo. No auge de sua produção intelectual, Michel Foucault esteve por cinco vezes no Brasil. Entre 1965 e 1976, "corrompeu a juventude" do país com suas ideias, em cursos e palestras nas universidades brasileiras.
Sobretudo nas visitas a partir de 1973, quando já era uma estrela da vida intelectual francesa, o impacto de sua presença no Brasil ultrapassou a simples exposição de ideias em sala de aula. Ele próprio se disse impressionado, mais tarde, pelos estudantes brasileiros, "famintos por aprender". As discussões prosseguiam nas festas, nos almoços, na praia.
Ao filósofo Roberto Machado, que se tornou seu amigo nas visitas ao Rio e o acompanhou em sua viagem ao Nordeste do país, Foucault dizia nunca ter trabalhado tanto, falado tanto, nunca ter sido tão requisitado.
Ao mesmo tempo, tanto quanto Sócrates nos diálogos de Platão, era por vezes implacável com seus interlocutores brasileiros, derrubando impiedosamente certezas pré-estabelecidas. Isso não impediu que, assim como o protagonista do "Banquete", despertasse paixões, motivadas tanto por suas ideias quanto por sua personalidade.
DESCONFORTO
O ceticismo de Foucault provocou desconforto num país em que se discutia "Freud e Marx ao infinito", como constatou o próprio filósofo, em carta ao companheiro Daniel Defert. Durante suas palestras na PUC-Rio, em 1973, o pensador francês chegou a ouvir acusações, proferidas da plateia, de "ingenuidade" e "idealismo". Estudantes, pesquisadores e professores lotavam um dos auditórios do campus da Gávea.
Roberto Machado, hoje professor aposentado de filosofia da UFRJ, lecionava à época na universidade católica. "O auditório ficava cheiíssimo. Não me lembro bem, mas parece que era pago. Houve até uma manifestação de estudantes para poderem entrar de graça. Mesmo assim, as palestras ficavam abarrotadas de gente."
Na mesma semana, Foucault participou de uma mesa redonda com professores da PUC e alguns convidados, entre eles o psicanalista Hélio Peregrino (1924-88), com quem debateu sobre o complexo de Édipo. Para Pellegrino, a relação da criança com os pais é determinante para toda experiência de desejo posterior daquele indivíduo. O palestrante principal argumentava que não há um fundamento único do desejo, que a mãe é um "objeto primeiro" para a criança apenas no sentido cronológico, mas nem por isso "primordial, essencial, fundamental".
O psicanalista brasileiro citou então a pesquisa de um colega. "Ele mostra o fenômeno 'hospitalício'", disse Pellegrino, em referência a bebês criados em hospitais, desde o nascimento. "As crianças que não têm maternização simplesmente perecem, morrem por falta de mãe".
"Compreendo", respondeu Foucault. "Mas isso só prova uma coisa: não que a mãe seja indispensável, mas que o hospital não é bom."
DITADURA
Há poucos registros de críticas públicas do autor de "Vigiar e Punir" à ditadura militar brasileira, que vigorou por todo o período em que Foucault fez visitas ao Brasil. "Ele nunca foi um provocador inconsequente", argumenta o psicanalista Jurandir Freire Costa, que acompanhou o filósofo no Rio de Janeiro na década de 70. "Sabia que estava sob uma ditadura, cercado de pessoas que eram vulneráveis. Havia um acordo tácito de que só falaríamos do que era possível."
Mas, em outubro de 1975, enquanto dava um curso na USP, uma onda de prisões foi deflagrada pelos agentes do regime militar na cidade. A Folha do dia 24 daquele mês relata um protesto de estudantes da universidade "contra a prisão, ocorrida nas últimas semanas, de estudantes, professores e jornalistas". A reportagem registra que o "professor Michel Foucault, psicólogo francês" compareceu à assembleia e fez "um pronunciamento de solidariedade aos estudantes". Anunciou, em seguida, que suspenderia seu curso antes do fim.
Dois dias depois, o país tomava conhecimento da morte do jornalista Vladimir Herzog, preso e torturado por agentes da repressão.
Foucault também fez, ainda em São Paulo, declarações de repúdio à ditadura brasileira para a imprensa internacional, lembra Heliana Conde, professora do departamento de psicologia social da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), que realiza pesquisa sobre as visitas do filósofo ao Brasil.
PROVOCAR
Roberto Machado afirma que o objetivo das declarações era provocar os militares, tentar ser expulso do país e assim chamar a atenção da opinião pública internacional para o que se passava no Brasil. Como não conseguiu, acreditou que poderia ser barrado ao tentar entrar novamente em território brasileiro, no ano seguinte, mas sua visita, organizada pela Aliança Francesa, foi autorizada. Em 1976, proferiu palestras em Salvador, Recife e Belém. Acreditava estar sendo seguido pelos militares enquanto viajava pelo país.
Em Belém, deu um curso a estudantes e pesquisadores da Universidade Federal do Pará, a pedido do filósofo Benedito Nunes (1929-2011). "Menos de uma semana depois que Foucault foi embora, fui chamado pelo diretor, cujo nome não vou mencionar, me dizendo que o SNI estava pedindo a relação dos frequentadores" das aulas, relatou Nunes em 2008 à revista "Transformação", da Unesp (Universidade Estadual Paulista).
"Eu disse: 'Não dou a relação'. Saí de lá e fui diretamente falar com o reitor, que foi muito correto, e até corajoso. Ele me disse para não dar a lista. Havia uma vigilância até nesse ponto. Não era uma invenção dizer que o SNI estava infiltrado".
À VONTADE
Uma relação de "afinidade eletiva" ligava Foucault ao Brasil, segundo estudantes e professores que o acompanharam em suas visitas, como os psicanalistas Chaim Samuel Katz e Jurandir Freire Costa. Avesso à formalidade francesa, o filósofo se sentia à vontade no Rio de Janeiro, conta Machado.
O professor brasileiro se lembra de uma carona que ofereceu, logo na primeira visita, em 1973, ao colega francês. O destino era a Lapa, bairro "para onde a garotada da zona sul ainda não ia", no início dos anos 70, conta Machado. Recém-chegado à cidade, após os anos de doutorado na Bélgica, o professor brasileiro parou seu Fusca ao lado de um táxi, ao sair de Copacabana, e pediu informações sobre o caminho. Foucault brincou: "Você mora no Rio de Janeiro e não conhece o bairro mais interessante da cidade?".
As visitas ao centro da cidade se repetiram em todas as suas estadas no Rio. Ia sempre se encontrar com um certo Hamilton, enfermeiro brasileiro que morara em Paris.
Chaim Katz conta que, certa vez, a pedido de Foucault, foi levar uma encomenda ao amigo do filósofo francês. Era o pagamento de uma palestra feita no Brasil, que deveria ser entregue a Hamilton. Num edifício enorme e pobre, com centenas de apartamentos, Katz se encontrou rapidamente com um sujeito que descreve como "mulato, relativamente bonito".
Pouco antes de deixar o Brasil pela última vez, Foucault chamou Machado e Katz para uma conversa. Disse que seu amigo estava doente e que iria procurá-los. Pediu que o ajudassem da melhor forma possível. Hamilton nunca pediu a ajuda dos amigos de Foucault.
CALIFÓRNIA
E o filósofo nunca mais voltou ao Brasil. No final dos anos 70, foi descoberto, com relativo atraso, pela universidade norte-americana. Ao mesmo tempo em que ele próprio descobriu a Califórnia, ou melhor, San Francisco.
Mesmo as conversas por carta com seus admiradores mais próximos no Brasil cessaram. Novos convites de visita foram feitos, mas Foucault não se mostrou interessado. "Acho que foi o encontro com os Estados Unidos", explica Machado.
"Ele ficou deslumbrado. Encontrou por lá um debate mais afinado com as pesquisas que estava fazendo no momento, as trocas intelectuais foram intensas. Também encontrou nos Estados Unidos movimentos organizados, como o dos homossexuais e dos negros, que já usavam ideias que ele valorizava muito. Uma coisa é ser admirado no Brasil. Outra é ser acolhido nas grandes universidades americanas."
Foucault corrompe a juventude?", pergunta o título de um dos capítulos do livro de Paul Veyne sobre Michel Foucault, ecoando, não sem ironia, a acusação feita pela cidade-Estado de Atenas ao pensador grego Sócrates, quatro séculos antes de Cristo. No auge de sua produção intelectual, Michel Foucault esteve por cinco vezes no Brasil. Entre 1965 e 1976, "corrompeu a juventude" do país com suas ideias, em cursos e palestras nas universidades brasileiras.
Sobretudo nas visitas a partir de 1973, quando já era uma estrela da vida intelectual francesa, o impacto de sua presença no Brasil ultrapassou a simples exposição de ideias em sala de aula. Ele próprio se disse impressionado, mais tarde, pelos estudantes brasileiros, "famintos por aprender". As discussões prosseguiam nas festas, nos almoços, na praia.
Ao filósofo Roberto Machado, que se tornou seu amigo nas visitas ao Rio e o acompanhou em sua viagem ao Nordeste do país, Foucault dizia nunca ter trabalhado tanto, falado tanto, nunca ter sido tão requisitado.
Ao mesmo tempo, tanto quanto Sócrates nos diálogos de Platão, era por vezes implacável com seus interlocutores brasileiros, derrubando impiedosamente certezas pré-estabelecidas. Isso não impediu que, assim como o protagonista do "Banquete", despertasse paixões, motivadas tanto por suas ideias quanto por sua personalidade.
DESCONFORTO
O ceticismo de Foucault provocou desconforto num país em que se discutia "Freud e Marx ao infinito", como constatou o próprio filósofo, em carta ao companheiro Daniel Defert. Durante suas palestras na PUC-Rio, em 1973, o pensador francês chegou a ouvir acusações, proferidas da plateia, de "ingenuidade" e "idealismo". Estudantes, pesquisadores e professores lotavam um dos auditórios do campus da Gávea.
Roberto Machado, hoje professor aposentado de filosofia da UFRJ, lecionava à época na universidade católica. "O auditório ficava cheiíssimo. Não me lembro bem, mas parece que era pago. Houve até uma manifestação de estudantes para poderem entrar de graça. Mesmo assim, as palestras ficavam abarrotadas de gente."
Na mesma semana, Foucault participou de uma mesa redonda com professores da PUC e alguns convidados, entre eles o psicanalista Hélio Peregrino (1924-88), com quem debateu sobre o complexo de Édipo. Para Pellegrino, a relação da criança com os pais é determinante para toda experiência de desejo posterior daquele indivíduo. O palestrante principal argumentava que não há um fundamento único do desejo, que a mãe é um "objeto primeiro" para a criança apenas no sentido cronológico, mas nem por isso "primordial, essencial, fundamental".
O psicanalista brasileiro citou então a pesquisa de um colega. "Ele mostra o fenômeno 'hospitalício'", disse Pellegrino, em referência a bebês criados em hospitais, desde o nascimento. "As crianças que não têm maternização simplesmente perecem, morrem por falta de mãe".
"Compreendo", respondeu Foucault. "Mas isso só prova uma coisa: não que a mãe seja indispensável, mas que o hospital não é bom."
DITADURA
Há poucos registros de críticas públicas do autor de "Vigiar e Punir" à ditadura militar brasileira, que vigorou por todo o período em que Foucault fez visitas ao Brasil. "Ele nunca foi um provocador inconsequente", argumenta o psicanalista Jurandir Freire Costa, que acompanhou o filósofo no Rio de Janeiro na década de 70. "Sabia que estava sob uma ditadura, cercado de pessoas que eram vulneráveis. Havia um acordo tácito de que só falaríamos do que era possível."
Mas, em outubro de 1975, enquanto dava um curso na USP, uma onda de prisões foi deflagrada pelos agentes do regime militar na cidade. A Folha do dia 24 daquele mês relata um protesto de estudantes da universidade "contra a prisão, ocorrida nas últimas semanas, de estudantes, professores e jornalistas". A reportagem registra que o "professor Michel Foucault, psicólogo francês" compareceu à assembleia e fez "um pronunciamento de solidariedade aos estudantes". Anunciou, em seguida, que suspenderia seu curso antes do fim.
Dois dias depois, o país tomava conhecimento da morte do jornalista Vladimir Herzog, preso e torturado por agentes da repressão.
Foucault também fez, ainda em São Paulo, declarações de repúdio à ditadura brasileira para a imprensa internacional, lembra Heliana Conde, professora do departamento de psicologia social da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), que realiza pesquisa sobre as visitas do filósofo ao Brasil.
PROVOCAR
Roberto Machado afirma que o objetivo das declarações era provocar os militares, tentar ser expulso do país e assim chamar a atenção da opinião pública internacional para o que se passava no Brasil. Como não conseguiu, acreditou que poderia ser barrado ao tentar entrar novamente em território brasileiro, no ano seguinte, mas sua visita, organizada pela Aliança Francesa, foi autorizada. Em 1976, proferiu palestras em Salvador, Recife e Belém. Acreditava estar sendo seguido pelos militares enquanto viajava pelo país.
Em Belém, deu um curso a estudantes e pesquisadores da Universidade Federal do Pará, a pedido do filósofo Benedito Nunes (1929-2011). "Menos de uma semana depois que Foucault foi embora, fui chamado pelo diretor, cujo nome não vou mencionar, me dizendo que o SNI estava pedindo a relação dos frequentadores" das aulas, relatou Nunes em 2008 à revista "Transformação", da Unesp (Universidade Estadual Paulista).
"Eu disse: 'Não dou a relação'. Saí de lá e fui diretamente falar com o reitor, que foi muito correto, e até corajoso. Ele me disse para não dar a lista. Havia uma vigilância até nesse ponto. Não era uma invenção dizer que o SNI estava infiltrado".
À VONTADE
Uma relação de "afinidade eletiva" ligava Foucault ao Brasil, segundo estudantes e professores que o acompanharam em suas visitas, como os psicanalistas Chaim Samuel Katz e Jurandir Freire Costa. Avesso à formalidade francesa, o filósofo se sentia à vontade no Rio de Janeiro, conta Machado.
O professor brasileiro se lembra de uma carona que ofereceu, logo na primeira visita, em 1973, ao colega francês. O destino era a Lapa, bairro "para onde a garotada da zona sul ainda não ia", no início dos anos 70, conta Machado. Recém-chegado à cidade, após os anos de doutorado na Bélgica, o professor brasileiro parou seu Fusca ao lado de um táxi, ao sair de Copacabana, e pediu informações sobre o caminho. Foucault brincou: "Você mora no Rio de Janeiro e não conhece o bairro mais interessante da cidade?".
As visitas ao centro da cidade se repetiram em todas as suas estadas no Rio. Ia sempre se encontrar com um certo Hamilton, enfermeiro brasileiro que morara em Paris.
Chaim Katz conta que, certa vez, a pedido de Foucault, foi levar uma encomenda ao amigo do filósofo francês. Era o pagamento de uma palestra feita no Brasil, que deveria ser entregue a Hamilton. Num edifício enorme e pobre, com centenas de apartamentos, Katz se encontrou rapidamente com um sujeito que descreve como "mulato, relativamente bonito".
Pouco antes de deixar o Brasil pela última vez, Foucault chamou Machado e Katz para uma conversa. Disse que seu amigo estava doente e que iria procurá-los. Pediu que o ajudassem da melhor forma possível. Hamilton nunca pediu a ajuda dos amigos de Foucault.
CALIFÓRNIA
E o filósofo nunca mais voltou ao Brasil. No final dos anos 70, foi descoberto, com relativo atraso, pela universidade norte-americana. Ao mesmo tempo em que ele próprio descobriu a Califórnia, ou melhor, San Francisco.
Mesmo as conversas por carta com seus admiradores mais próximos no Brasil cessaram. Novos convites de visita foram feitos, mas Foucault não se mostrou interessado. "Acho que foi o encontro com os Estados Unidos", explica Machado.
"Ele ficou deslumbrado. Encontrou por lá um debate mais afinado com as pesquisas que estava fazendo no momento, as trocas intelectuais foram intensas. Também encontrou nos Estados Unidos movimentos organizados, como o dos homossexuais e dos negros, que já usavam ideias que ele valorizava muito. Uma coisa é ser admirado no Brasil. Outra é ser acolhido nas grandes universidades americanas."
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