Por Umberto Martins, do Portal Vermelho
A vida e os dramas da classe trabalhadora são temas recorrentes na Música Popular Brasileira (MPB), abordados de forma direta ou indireta em inúmeras canções. O Vermelho selecionou seis composições a respeito.
Izaura, canção de Herivelto Martins e Roberto Roberti interpretado por João Gilberto e Miúcha, canta o impasse do trabalhador que, prisioneiro de uma extenuante jornada de trabalho, carece de tempo para namorar. Labuta de segunda a sábado e só lhe resta um dia por semana com tempo totalmente livre para desfrutar ao lado de Izaura. Ele se desculpa com a amada e promete voltar no próximo domingo, embora sua vontade seja outra. “Se você quiser eu fico, mas vai me prejudicar, eu vou trabalhar”.
Falta um zero no meu ordenado, belo e olvidado samba do flautista Benedito Lacerda (parceiro de Pixinguinha) e Ary Barroso (na voz irreverente de Jards Macalé) critica tanto o excesso de tempo de trabalho quanto o baixo salário, duas características nefastas e persistentes do capitalismo brasileiro. “Trabalho feito um louco, mas ganho muito pouco”, lamenta o peão. “Fazendo faxina” e “comendo no China” ele se consola sonhando diante do retrato “da rainha do meu samba”.
O trem atrasou (música de Paquito, Estanislau Silva e Artur Vilarinho), com Roberto Paiva,aborda o desespero do operário frente à impiedosa disciplina no trabalho imposto pelo sistema capitalista. Chegando ao trabalho atrasado e receando que a resposta do patrão fosse a demissão arbitrária, ele se apressa a justificar o atraso (“trago aqui um memorando da central, o trem atrasou meia hora”), pede justiça e diz que não pode ficar sem emprego. “Sou um chefe de família, preciso ganhar o meu pão”. É o retrato do trabalhador livre, despossuído e alienado dos meios de produção que, conforme Karl Marx, constitui o fundamento básico do capitalismo.
O Bonde São Januário, composto nos anos 1940 por dois gigantes do samba carioca (Wilson Batista e Ataulfo Alfes), interpretado por Gilberto Gil, enaltece, em plena Era Vargas, a emergência da classe operária brasileira nas ondas do processo de industrialização induzido por Getúlio Vargas. Dizem que Wilson Batista (autor de Lenço no Pescoço, uma ode à malandragem que provocou polêmica com Noel Rosa) preferia a frase “mais um otário” no lugar de “mais um operário”, mas teria sido convencido do contrário pelo governo.
Meu enxoval, samba-coco de Gordurinha e José Gomes, interpretado pelo inesquecível Jackson do Pandeiro, é uma crônica musical do trabalhador nordestino desempregado que migra para o Sudeste em busca de uma boa oportunidade de trabalho. Mas, como muitos, ele deu azar. Vai para São Paulo, não se dá com o frio, volta ao Rio e continua desocupado, dormindo ao relento e se cobrindo com dois famosos jornais cariocas: “O meu travesseiro é um ´Diário da Noite´e o resto do corpo fica na ´Última Hora´”. O êxodo rural teve grande papel na formação da classe trabalhadora nacional.
Três apitos é uma obra-prima (entre muitas outras) de Noel Rosa, na voz de Aracy de Almeida. Traduz a paixão do sambista por uma operária carioca. Obediente ao apito de uma fábrica de tecidos e às ordens de um gerente impertinente, não percebe, enquanto faz pano, os versos que, junto ao piano, o poeta faz em sua homenagem.
Izaura
Herivelto Martins Roberto Roberti
Ai, ai, ai, Izaura
Hoje eu não posso ficar
Se eu cair nos seus braços
Não há despertador
Que me faça acordar
Eu vou trabalhar
O trabalho é um dever
Todos devem respeitar
Oh! Izaura, me desculpe
No domingo eu vou voltar
Seu carinho é muito bom
Ninguém pode contestar
Se você quiser eu fico
Mas vai me prejudicar
Eu vou trabalhar
Falta um zero no meu ordenado
Benedito Lacerda/Ary Barroso (1947)
Trabalho como louco
Mas ganho muito pouco
Por isso eu vivo sempre atrapalhado
Fazendo faxina
Comendo no China
Tá faltando um zero no meu ordenado
Trabalho como louco
Mas ganho muito pouco
Por isso eu vivo sempre atrapalhado
Fazendo faxina
Comendo no China
Tá faltando um zero
No meu ordenado
Tá faltando um zero no meu ordenado
Tá faltando sola no meu sapato
Somente o retrato
Da rainha do meu samba
É que me consola
Nesta corda bamba
O trem atrasou
Paquito / E. Silva / A. Vilarinho
Patrão, o trem atrasou
Por isso estou chegando agora
Trago aqui um memorando da Central
O trem atrasou, meia hora
O senhor não tem razão
Pra me mandar embora !
O senhor tem paciência
É preciso compreender
Sempre fui obediente
Reconheço o meu dever
Um atraso é muito justo
Quando há explicação
Sou um chefe de família
Preciso ganhar meu pão
E eu tenho razão.
O Bonde São Januário
Wilson Batista e Ataulfo Alves
Quem trabalha
É quem tem razão
Eu digo
E não tenho medo
De errar
(BIS)
O Bonde São Januário
Leva mais um operário
Sou eu
Que vou trabalhar
O Bonde São Januário...
Antigamente
Eu não tinha juízo
Mas hoje
Eu penso melhor
No futuro
Graças a Deus
Sou feliz
Vivo muito bem
A boemia
Não dá camisa
A ninguém
Passe bem!
Meu enxoval
Gordurinha e José Gomes
Eu fui para São Paulo procurar trabalho
E não me dei com o frio
Tive que voltar outra vez para o Rio
Pois aqui no Distrito Federá
O calor é de lascar
E veja o meu azar:
Comprei o “Jornal do Brasil”
Emprego tinha mais de mil
E eu não arranjei um só...
Telegrafei para a vovó
Ela tem uma bodega em Recife, Pernambuco
Eu disse pra ela que estou quase maluco
E que não tenho nem onde morar, o quê que há?
Estou dormindo ao relento, valei-me nossa Senhora!
O meu travesseiro é um “Diário da Noite”
E o resto do corpo fica na “Última Hora”.
Mas se eu voltar, aquela turma lá do Norte me arrasa
Principalmente o povo lá de casa
Que vai perguntar por que é que eu fui embora.
Por isso eu vou ficando
Três Apitos
Noel Rosa
Quando o apito da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você
Mas você anda
Sem dúvida bem zangada
E está interessada
Em fingir que não me vê
Você que atende ao apito
De uma chaminé de barro
Por que não atende ao grito tão aflito
Da buzina do meu carro?
Você no inverno
Sem meias vai pro trabalho
Não faz fé com agasalho
Nem no frio você crê
Mas você é mesmo
Artigo que não se imita
Quando a fábrica apita
Faz reclame de você
Sou do sereno
Poeta muito soturno
Vou virar guarda noturno
E você sabe porque
Mas você não sabe
Que enquanto você faz pano
Faço junto do piano
Estes versos prá você
Nos meus olhos você vê
Que eu sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente impertinente
Que dá ordens a você
Nenhum comentário:
Postar um comentário