quinta-feira, 22 de julho de 2010

Manoel de Barros - O Poeta Fingidor



Por Nina Rahe, da Revista Bravo

Manoel de Barros gosta mais de viajar por palavras "do que de trem" - e é por isso que todas as manhãs, na rotina de vadiagem com as letras, ele se fecha no "escritório de ser inútil", onde diz ter sossego de pedra. Inventou um dialeto, o "manoelês", de onde foram pinçadas as expressões acima. Hoje com 93 anos, esse advogado de formação e fazendeiro por necessidade conseguiu - depois de muito trabalho para tornar o negócio da terra rentável - comprar seu ócio e ser exclusivamente poeta. Em Campo Grande (MS), onde mora numa casa modesta, de tijolos aparentes, com sua mulher, Stella, dedica-se a não "fazer nada" - que é como ele chama o escrever. O resultado desse ócio pode ser visto em seu novo livro, Menino do Mato, e, em retrospecto, na volumosa Poesia Completa, também recentemente lançada. Autor de uma série de livros chamada Memórias Inventadas (A Infância, A Segunda Infância, A Terceira Infância), Manoel de Barros diz que escrever o que não acontece é a tarefa de poesia. E é no escritório - onde ele passa horas para encontrar um verso que fique em pé - que a sua imaginação desabrocha. Ali, cercado de livros e de miniaturas de santos e animais, ele me recebeu algumas vezes para conversar, com o intuito de fazer esta reportagem. "Esses dias veio um outro jornalista aqui. Tive que mentir para ele tudo que estou agora mentindo para você", diz Manoel, rindo.

Quando afirma que mente, Manoel de Barros diz a verdade. Em uma entrevista concedida ao jornalista José Castello há alguns anos, por exemplo, ele contou que se encontrava com um grupo de psicanalistas uma ou duas vezes por semana para tomar umas cervejas. Elas achavam que sua poesia comprovava as teorias do francês Jacques Lacan (1901-1981), líder da escola seguida por elas. "Eu falo, e elas ficam impressionadíssimas", disse ele na ocasião. Passados mais de dez anos dessa declaração, no entanto, Manoel já não se lembra mais. " Lacanianas?" - ele ri - " Pode ser que eu tenha mentido. Eu sou muito mentiroso".

Manoel diz que herdou da mãe a sensibilidade, coisa que, segundo ele, "é transmitida pelo sangue". Alice Pompeu de Barros era aluna de violino na cidade de Cuiabá, no Mato Grosso. Casou cedo e, para acompanhar o marido, mudou-se para o Pantanal. Manoel era ainda criança, e a mãe, acumulando as funções de lavadeira, cozinheira e passadeira, guardou a música apenas em sua lembrança. Até aí, tudo verdade. Mas para o jornalista Ricardo Câmara, que está escrevendo a biografia do poeta, Manoel descreveu uma cena emocionante: ele contou que, antes de se mudar, a mãe tocou pela última vez seu violino, pois achava que no Pantanal não haveria lugar para música. "Pode ser que eu tenha falado isso, mas foi invenção", diz. E explica: "É uma invenção possível. Podia ser que ela tivesse tomado uma atitude dessa; no fundo, era uma verdade que ela queria fazer isso". Mentira, para Manoel de Barros, é dizer que se vai comprar pão quando se vai a outro lugar qualquer. Já imaginação é coisa profunda e, na imaginação, Manoel pode fazer com que se cumpra o destino da mãe. Num dos poemas do livro Menino do Mato, no poema V, Alice arranja uma horinha para seu violino no meio do Pantanal e toca Vivaldi para a família toda. Mentira? Nada disso. Para Manoel, é aí que começa a poesia.

O PINTOR QUE NÃO EXISTE

Se o poeta é um fingidor, como dizia o português Fernando Pessoa (1888-1935), a sua dor (ainda que fingida) não é menos verdadeira. Desde o falecimento de seu filho João na queda de um avião monomotor, Manoel de Barros "não sai de dentro de si nem para pescar", como ele próprio diz num poema. Abandonou as caminhadas, as idas ao Pantanal e as viagens anuais para o Rio de Janeiro. E, embora a reclusão não tenha rarefeito a poesia, palavras como abandono, tristeza e solidão habitam o novo livro. Em Menino do Mato, não há possibilidades de sair daquele "lugar imensamente e sem nomeação", que "quase só tinha bicho solidão e árvores", e era preciso "desver o mundo para expulsar o tédio". Em seus primeiros anos no Pantanal, Manoel ficava meio solto no chão - era o menino do mato. Ali entrou em "estado de árvore", depois em "estado de palavra", para só assim poder "enxergar as coisas sem feitio" - eis, em manoelês castiço, o resumo de sua arte poética. O novo livro é expressão dessa infância vivida na terra, em um lugar virgem e absolutamente solitário, onde a poesia já era o brincar com as palavras. "Era a nossa maneira de sair do enfado", diz um dos poemas.

Por volta dos dez anos de idade, Manoel deixou de se sentir "como um pedaço de formiga na estrada". Foi estudar no Rio de Janeiro e chegou a morar durante um ano em Nova York, onde desenvolveu a sensibilidade para as artes. Tomou gosto por Paul Klee, Marc Chagall, Van Gogh e Pablo Picasso. Acha que tal viagem influenciou decisivamente sua poesia. "Eu tinha um sentimento muito primitivo da vida e da literatura. Queria escrever em guarani", afirma sem esconder o riso. Já disse em entrevistas, no entanto, que seu pintor preferido era o boliviano Rômulo Quiroga, o que fez com que alguns passassem a procurar por suas obras. Outra mentira: Rômulo é, na verdade, apenas uma criação poética, inspirada em um pintor de paredes. "Eu achei o nome bacana e aí inventei esse negócio".

Ouvir Manoel contar suas histórias é ficar em dúvida permanente. Eis uma delas: num dia, cumprindo o caminho entre a fazenda que possui no Pantanal e Campo Grande, resolveu parar em um boteco. Fez a curva, avançou na entrada do local e se esqueceu de frear o carro. Só foi se lembrar quando estava praticamente em cima do balcão. Em uma segunda conversa, pergunto mais detalhes. Ele me olha num misto de dúvida e riso. "O senhor inventou?", pergunto. "Não, não, é verdade. Aconteceu mesmo". E o poeta emenda mais uma história: quando estava dirigindo rumo à fazenda, depois de muita chuva e com uma estrada enlameada, seu carro deu três cambalhotas. Além dele, estavam como passageiros a mulher e os filhos. "Ninguém se machucou". Ainda bem.

TIRO NA TESTA

Depois de finalizar Menino do Mato, Manoel pensa no próximo livro. Pretende fazer uma homenagem a Bernardo - em "manoelês", "um homem percorrido de existências, que faz encurtamento de águas, a quem os camaleões estão favoráveis e para quem os passarinhos aveludam seus cantos". Analfabeto, Bernardo trabalhou na fazenda de Manoel e pouco falava. "Não sabia nem o nome das letras de uma palavra, mas soletrava rã melhor que mim", escreveu sobre o amigo. Assim, Bernando acabou se transformando em personagem da obra do poeta, além de um dos seus de seus alter-egos mais recorrentes - presente em Livro de Pré-Coisas (1985), O Guardador das Águas (1989) e, mais recentemente, em Menino do Mato.

Em 2003, Bernardo morreu no Asilo São João Bosco, em Campo Grande. Sem documentos, sobraram poucas informações sobre ele: era solteiro, moreno e evangélico, diz no registro do asilo. Mas Manoel nega que Bernardo tivesse religião. Talvez tivesse tendência para, já que era totalmente preso à natureza. Enterraram-no embaixo de uma árvore. "Pelo menos isso, vai escutar os passarinhos", o poeta diz."Ele era inteiramente primário e inocente como uma criança, e essa inocência foi o que pregou nas minhas palavras", conta Manoel. "Eu o conheci como santo, e queria retribuir fazendo um Bernardo que chegasse a ser, literariamente, um santo".

O poeta tem muito medo do mistério de Deus. Diz que não consegue entender como pode uma borboleta voar sem motor nas costas enquanto o homem precisa ter motor a óleo. Uma vez, ele encontrou seu vizinho no telhado da casa, vestindo uma roupa diferente. "O que você vai fazer?", perguntou. "Eu vou voar", respondeu o homem. Tentou desaconselhá-lo, mas o vizinho já estava convencido, com sua asa nas costas, de que sairia voando. Pulou e quase morreu. "E é verdade. Não é mentira não", avisa Manoel, antes que alguém duvide.

Talvez seja este mesmo mistério que explique sua "saúde irritante", como ele gosta de chamar. Dor de cabeça só conhece de nome, e fica mesmo espantado quando as pessoas descrevem como ela é. "Para você, morrer só com um tiro na testa", advertiu o médico. "Não foi para mim não que ele disse isso, foi para um amigo", mais tarde corrige, com um cuidado surpreendente com a verdade. Mas para Manoel a frase também funciona. Palavra é para ele coisa que ocupa o dia inteiro; e a noite também, já que vez ou outra sonha com elas. Toma logo nota - se deixar para depois, esquece - e durante a sua vagabundagem no escritório, o sonho ajuda a concluir uma poesia ou outra. Sonhos, mentiras e palavras - elementos que, somados, resultam numa das obras mais surpreendentes e fascinantes da literatura brasileira.

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