terça-feira, 12 de julho de 2011

Indústria cultural da felicidade

Por Marcia Tiburi, da Revista Cult

Tornou-se perigoso o emprego da palavra felicidade desde seu mau uso pelas publicações de autoajuda e pela propaganda. Os que se negam a usá-la acreditam liberar os demais dos desvios das falsas necessidades, das bugigangas que se podem comprar em shoppings grã-finos ou em camelôs na beira da calçada, que, juntos, sustentam a indústria cultural da felicidade à qual foi reduzido o que, antes, era o ideal ético de uma vida justa.
A felicidade sempre foi mais do que essa ideia de plástico. Tirá-la da cena hoje é dar vitória antes do tempo ao instinto de morte que gerencia a agonia consumidora do capitalismo. Por isso, para não jogar fora a felicidade como signo da busca humana por uma vida decente e justa, é preciso hoje separar duas formas de felicidade: uma felicidade publicitária e uma felicidade filosófica.
A felicidade filosófica é a felicidade da eudaimonia, que desde os gregos significa a ideia da vida justa em que a interioridade individual e as necessidades da vida exterior entrariam em harmonia. Felicidade era o nome dado ao sentido da pensante existência humana. Estado natural do pensamento reflexivo, ela seria o oposto da alienação em relação a si mesmo, ao outro, à história e à natureza.
Condição natural dos filósofos, a felicidade seria, no seu ápice, o prazer da reflexão que ultrapassa qualquer contentamento.

Sacralização do consumo
A ausência de pensamento característica de nossos dias define a falta de lucidez sobre a ação. Infelicidade poderia ser o nome próprio desse novo estado da alma humana que se perdeu de si ao perder-se do sentido do que está a fazer. Desespero é um termo ainda mais agudo quando se trata da perda do sentido das ações pela perda da capacidade de reflexão sobre o que se faz.
Sem pensamento que oriente lucidamente ações, é fácil se deixar levar pelos discursos prontos que prometem “felicidade”. Perdida a capacidade de diálogo que depende da faculdade do pensamento, as pessoas confiam cada vez mais em verdades preestabelecidas, seja pela igreja ou pela propaganda – a qual constitui sua versão pseudossecularizada.
A propaganda vive do ritual de sacralização de bugigangas no lugar de relíquias, e o consumidor é o novo fiel. Nada de novo em dizer que o consumismo é a crença na igreja do capitalismo. E que o novo material dos ídolos é o plástico.
Tudo isso pode fazer parecer que a felicidade foi profanada para entrar na ordem democrática em que ela é acessível a todos. O sistema é cínico, pois, banalizando a felicidade na propaganda de margarina, em que se vende a “família feliz”, ou de carro, em que se vende o status e certa ideia de poder, a torna intangível pela ilusão de tangibilidade.
Sacralizar, sabemos, é o ato de tornar inacessível, de separar, de retirar do contato. Na verdade, o que se promove na propaganda é uma nova sacralização da felicidade pela pronta imagem plastificada que, enchendo os olhos, invade o espírito ou o que sobrou dele. A felicidade capitalista é a morte da felicidade por plastificação.
Fora disso, a felicidade filosófica é da ordem da promessa a ser realizada a cada ato em que a aliança entre pensamento e ação é sustentada. Ela envolve uma compreensão do futuro, não como ficção científica, mas como lugar da vida justa que se constrói no tempo presente.
A felicidade publicitária apresenta-se como mágica dos gadgets eletrônicos que se acionam com um toque, dos “amigos” virtuais que não passam de má ficção. A felicidade publicitária está ao alcance dos dedos e não promete um depois. Ilude que não há morte e com isso dispensa do futuro. Resulta disso a massa de “desesperados” trafegando como zumbis nos shoppings e nas farmácias do país em busca de alento.

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