sexta-feira, 15 de julho de 2011

A encruzilhada da escola historiográfica - A Nova História

Pilar - O historiador Carlo Ginzburg, um dos mais famosos adeptos da corrente,  insiste que cada vez mais é preciso retomar o caráter analítico da história

Por Eleonora de Lucena, da Ilustríssima

RESUMO
A antologia "Nova História em Perspectiva" retraça a evolução da corrente historiográfica formatada na esteira da crise de 29, desde a busca da "história total" até o flerte com um viés narrativo. Em entrevista, os organizadores apontam os limites da tendência e opinam sobre o ensino de história no país.

ESCREVER HISTÓRIA com foco em datas e homens. Ou nos grandes movimentos em torno do poder e da luta de classes. Ou em torno das migalhas do cotidiano, dos amores e dos humores. Nas entrelinhas de cada maneira de trabalhar a história há um pensamento, uma teoria, um debate acadêmico, político, científico, ideológico -todos encharcados de história.
Na esteira da crise global de 1929, formou-se, em torno de nomes como Marc Bloch (1886-1944) e Lucien Febvre (1878-1956), uma escola de historiadores batizada de "Annales", por causa da publicação que editavam na França. Porosa às emergentes ciências sociais, a "nova história" se contrapunha ao positivismo, à história como gênero literário, e consagrou uma dimensão analítica.
A partir daí, vieram nomes como Fernand Braudel (1902-1985) e Jacques Le Goff. A escola tornou-se hegemônica na academia e nas escolas. Ganhou o mundo. Ao longo do tempo, transformou-se e ruminou contradições. Mais recentemente, cristalizou-se em torno de uma abordagem mais narrativa, menos explicativa, fixando-se em temas pontuais e abandonando a "história total" de suas origens. Bateu de frente com o marxismo.
Para tratar da história dessa história, Fernando Antonio Novais, 77, e Rogério Forastieri da Silva, 64, lançaram recentemente "Nova História em Perspectiva". O livro é uma antologia de textos que embasaram essa corrente em suas diversas fases. Para apresentar a coletânea, os organizadores -"historiadores marxistas, na periferia do capitalismo", como se definem- produziram uma densa introdução. Nela, cuidam da tensão entre materialismo histórico e "nova história" no desenrolar do tempo. Discutem os limites da "história em migalhas" e os impasses do marxismo, identificando transformações mais recentes. Tratam especialmente dos contextos desses movimentos e do debate teórico em torno do fazer história.
Na obra, 20 autores (como Braudel, Le Goff, Carlo Ginzburg e Paul Veyne) se debruçam sobre seus métodos, dilemas e escolhas. Haverá um segundo volume com novos nomes do grupo. Um terceiro, só com autores brasileiros, está em projeto. Novais e Forastieri falaram à Ilustríssima sobre o livro.

Eleonora de Lucena - O que é a "nova história"?
Fernando Novais - É a tendência dominante entre os historiadores no mundo. Nasceu na França em 1929, com a fundação da revista "Annales". Passa a dominar na segunda metade do século 20. Resolvemos nos posicionar sobre isso. É como falar para um economista brasileiro se posicionar entre monetaristas e estruturalistas.
Rogério Forastieri - O trabalho diz respeito a um setor específico da história: a historiografia, a história da história. Quem cursou história ouviu que a nova história é a melhor coisa que se produziu. Que antes havia uma coisa perigosa, execrável chamada positivismo. Procuramos situar esse movimento do ponto de vista da historiografia e tratar desse debate.

O livro mostra que, em sua primeira fase, a nova história dialogou com as ciências humanas, especialmente com a sociologia. Depois, convocou a economia, conversando mais com o marxismo e sendo mais analítica. Na terceira fase, a atual, a antropologia tem mais peso. É mais narrativa, com menos contexto, uma "história em migalhas". Qual o desenrolar dessa história com a crise atual?
Novais - A antologia pretende apresentar textos das formulações, dos desdobramentos e dos questionamentos. A novidade é examinar isso dentro da história geral da historiografia. A história da historiografia normalmente é considerada de duas maneiras: a tradicional e a moderna. A historiografia moderna é científica; a tradicional, não. Ser científico é ser explicativo. A outra era apenas narrativa. É como se a historiografia moderna não tivesse nada a ver com a tradicional. O nosso ponto de vista é que tem.
Não é só uma distinção temporal. É que a história moderna dialoga com as ciências sociais. A tradicional não dialogava por um motivo muito simples: não existiam as ciências sociais.
A historiografia anterior ao século 19 entendia que se reconstitui a vida diretamente pelos registros, pelos documentos. A moderna não diz o contrário. É preciso ter documentos. Mas diz que, para reconstituir, é preciso explicar. O historiador explica para reconstituir; o cientista, qualquer que seja, reconstitui para explicar. Essa é a diferença. A "nova história" acentuou o lado não analítico, o lado narrativo, esmigalhado.
Forastieri - Tem um autor que fala que é um positivismo arejado.

Isso perdura? Há alguma mudança?
Forastieri - Uma das poucas coisas que a prática da historiografia ensina é a não fazer previsões. É a crise dos paradigmas, não só na história, mas na ciência em geral -até nas ciências exatas.

O sr. poderia explicar a crise dos paradigmas?
Novais - A crise dos paradigmas é a crise da ciência, quando conceitos mais gerais foram abandonados. É a crise do estruturalismo. Em história, o que mudou? Foi uma mudança de assunto. Em vez de estudar Estados, estruturas, produção, consumo e poder, a história passou a estudar os modos de sentir, os amores e os humores. As obras ficaram mais bonitas.
Nós nos perguntamos quais são as implicações disso. Nas ciências humanas, houve uma mudança de conceitos. Na economia, por exemplo, em vez de estudar desenvolvimento e subdesenvolvimento, passaram a estudar ciclos. Passou do macro para o micro. Nas ciências sociais, houve uma mudança de conceitos. Na história, houve o abandono desses conceitos, uma desconceitualização -que é a característica da "nova história".
Mas está mudando. Os debates da terceira parte do segundo volume mostram isso. Um grande historiador como Carlo Ginzburg, um pilar da "nova história", ultimamente insiste que cada vez mais é preciso retomar o caráter analítico da história. Tem que haver um equilíbrio entre narração e análise. História profissional é mais complicado. Todo mundo acha que sabe de história. Pior, todo mundo acha que pode fazer história.

Como os srs. veem o fato de muitos livros de história que vendem bem não serem de historiadores?
Novais - E não são livros de história. O mercado tem as suas leis. Se perguntar para o mercado quem é bom, Guimarães Rosa ou Paulo Coelho, a resposta será Paulo Coelho. Quem mais imagina que pode fazer história são os jornalistas. Não tenho nada contra eles. A divergência é em relação a conceitos, não a pessoas.

Mas esses livros são malfeitos?
Novais - Alguns são, outros não. Outros são muito bem-feitos. Nenhum é livro de história. Porque, para fazer história, tem que ser profissional. Tem que conhecer história, não só do assunto que se está estudando. História é situar uma coisa no tempo. Precisa conhecer o tempo. Em história, o último livro não é necessariamente o melhor.

Como avaliam a qualidade dos livros didáticos e a maneira como se ensina história hoje no Brasil?
Novais - Acho que a "nova história", descontextualizante, acabou tendo efeito no livro didático e no ensino secundário. Minha neta de dez anos me disse que começou a estudar a escravidão vendo a escravidão hoje. Fazem história de trás para frente, ao contrário. Isso para mim é uma maluquice.

Não é uma questão de atração?

Novais - A influência da "nova história" na maneira pela qual se ensina foi maléfica. Contrariando a expectativa dos autores -que achavam que esse sistema de estudar os amores, os humores iria chamar a atenção-, tenho a impressão de que o prestígio da história entre a moçada não é tão grande como era antes.
Falavam que era só "decoreba" e que o aluno não gostava. Mas podia ensinar história sem grandes decorações. Também não se deve dizer que não precisa saber as datas. Isso deve ser sabido. Memória é importantíssima para o conhecimento histórico e para a vida.
Noto um desprestígio. Faço revisão na Fundação Carlos Chagas [que prepara provas de vestibular e concursos de admissão] há anos. O número de questões de história diminuiu em todos os testes.
Forastieri - A história lida com uma das dimensões fundamentais da existência humana: a temporalidade. A história está preocupada com a reconstrução dos eventos. O evento é importante. O grande problema -e sobre o qual a "nova história" teve responsabilidade- é a negação de que existe uma estrutura subjacente, [o discurso de] que a estrutura é uma camisa-de-força. O grande problema é a opção pelo voo curto. Não é tanto o fato de estudar especificamente uma coisa ou outra. Acho legítimo. Mas é preciso mostrar que existe um nexo entre evento e estrutura.


Vocês não se consideram adeptos da nova história. São historiadores marxistas.
Novais - De um certo marxismo. No texto, procuramos situar duas coisas: a formulação teórica do materialismo histórico, dos clássicos, e depois como é que fica a historiografia que se inspira no materialismo histórico diante dessa periodização da história geral. Na crise dos paradigmas, a "nova história" aparece como sendo a derrota do comunismo e do marxismo. É bom pensar o seguinte: a crise atual mostra que quem tinha razão? Segundo a economia clássica, o mercado resolve as coisas. Parece que não aconteceu assim.

A crise trouxe de volta o marxismo?
Novais - [O crítico literário] Roberto Schwarz, há algum tempo, fez uma observação muito boa: se o capitalismo está vitorioso, isso vai exigir a volta de Marx. Porque até os conservadores confessam que quem entende de capitalismo é Marx. Sabem que Marx dizia que ia ter crise; eles diziam que não ia ter crise. Mas a crise do capitalismo está na primeira página dos jornais.

Qual a posição dos senhores sobre o sigilo de documentos?
Novais - O ideal é que todo documento seja público, e o historiador tenha acesso. Mas é preciso um mínimo de realismo: não vai ser assim em parte alguma. Vai ter limitação. Mas tem que ser mínima e para um tipo de documento. Quem vai saber se o documento é muito confidencial? Não pode ser o governo. Tem que ter representantes da sociedade que definam isso: quais documentos e por quanto tempo [serão confidenciais].

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