quarta-feira, 1 de junho de 2011

Dom Quixote lúgubre



Por Rosane Pavam, da Revista Cult
O escritor argentino Ernesto Sabato era como qualquer grande humanista em qualquer época. Preocupavam-no a solidão, a morte, a injustiça, a esperança e o tempo. Mais, e, sobretudo, o tempo, sobre o qual refletia com pessimismo. Morto na madrugada de sábado 30, de complicações decorrentes de uma bronquite, este pensador não completou os 100 anos que faria em junho, rodeado das homenagens já preparadas por editores e pelo filho Mario, autor de um documentário sobre o pai. Sabato, a quem muitos contemporâneos intitularam Dom Quixote lúgubre, amava a vida a ponto de ter declarado em uma ocasião ser pouco justo, ou verdadeira lástima, que, tão logo começássemos a aprender o ofício de viver, tivéssemos já de enfrentar a morte, fenômeno, a seu ver, “algo triste”.


Não que ele, habitante do distrito de Buenos Aires Santos Lugares havia seis décadas, nos últimos cinco anos quase recolhido de contato social, jamais tenha tentado apressar o fim, como prova a declaração em 1992 de que havia estado à beira do suicídio duas vezes. “A arte me salvou. Por isso minha arte é trágica”, concluíra desses episódios. Era um artista paradoxal ao experimentar com idêntica intensidade a urgência e a descrença no ser humano e, principalmente, em seus governos. “Toda vez que os teóricos invocam o homem com H maiúsculo deve-se tremer”, declarou certa vez. “Ou guilhotinam milhões de homens com minúsculas ou os torturam em campos de concentração.”


Sua ética, irrevogável no mundo real, alcançara a literatura, feita de palavras concisas como as de O Túnel, o romance que o lançou ao conhecimento mundial em 1948. Mas seu espírito taciturno não lhe permitia desfrutar da aprovação literária com pompa. Ao perceber que suas palavras impressas formavam opiniões, gradativamente recolheu-as. Seu último livro, de 2000, Antes do Fim, só saiu por força de uma encomenda sobre ameaças ao planeta na alvorada do século XXI. O livro, contudo, foi bordado distraidamente, com a espessura de um sopro. -Somente no passado o leitor encontraria- -novamente seu raciocínio essencial, costurado com precisão.


Sabato estava onde não o colocavam, entre a solidariedade de um militante social e a depressão existencialista. “Este século é atroz e terminará de forma atroz. A única forma de salvá-lo é pensar poeticamente”, declarou o escritor, ele que nem sempre desejara viver da escritura, imbuído-, no início da vida profissional, dos estudos de física nuclear.


Anarquista e comunista na juventude, Sabato experimentou a clandestinidade na Argentina e o exílio na Europa. Naquele continente, informado sobre as atrocidades do regime soviético, abdicou do comunismo para frequentar o Instituto Curie, em Paris. Sob a ameaça nazista, deixou a capital francesa nos anos 30, rumo aos Estados Unidos, onde se dedicou a estudos que envolviam a observação de raios cósmicos. A ciência o apaixonava, mas a literatura se sobrepôs a esse conhecimento em 1945, quando saiu Um e o Universo, reunião de seus ensaios filosóficos, o que o obrigou, a partir daí, a uma rotina de encontros literários e entrevistas.


Próximo em grandeza literária a dois outros escritores argentinos forjados no século que passou, Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares, Sabato mantivera com eles uma longa existência de conversas filosóficas, matemáticas e atemporais, mas com os dois romperia em algum momento a amizade, por motivos distintos. Desfaria os laços com Casares por motivos do coração, já que o autor de A Invenção de Morel mantivera um relacionamento secreto com Matilde Kusminsky-Richter, sua mulher. Naquele período, forçoso dizer, Matilde se encontrava exausta do pendor de Sabato de se relacionar com outras senhoras, enquanto permanecia casado com ela. Um dia, a esposa decidiu fazer as malas, mas Sabato, arrependido, chorando descontroladamente diante da escada, prometeu endireitar-se. Reatou com Matilde, mas, a partir daí, jamais voltou a falar com o amigo escritor.


De Borges, desde o início de sua amizade, em 1940, Sabato não perdoara que se mantivesse insensível diante do movimento trabalhista, ainda que aliado ao presidente Juan Domingo Perón. Nesse quesito, não se sabe quem seria mais paradoxal, ele ou Borges, já que, para Sabato, tratava-se, neste caso, de esquecer o peronismo em pauta para realçar as reivindicações trabalhistas de seus apoiadores. Mas, para Borges, aderir a qualquer proposta vinda das hostes de Perón significaria corroborar sua ação de caudilho, o que ele, alegava, não admitiria fazer.


Eles eram interlocutores próximos a ponto de, nos anos 70, antes que uma última ruptura nesta amizade se desse, desa vez mais profunda, em torno da insistência de Borges de ver benefícios na ditadura argentina, o escritor Orlando Barone ter apresentado um livro no qual simpaticamente conversaram. Em Diálogos: Borges/Sabato, eles trocaram ideias com complementaridade, entre 1974 e 1975.


“A notícia cotidiana, em geral, vai-se com o vento”, dizia Sabato a Borges num desses encontros com Barone. “O jornal é o mais novo que há e o mais velho, no dia seguinte. Seria melhor publicar um periódico a cada novo ano ou século. Ou quando sucede algo verdadeiramente importante: O senhor Cristóvão Colombo acaba de descobrir a América. Como poderia haver fatos transcendentes todos os dias?” Ao que complementava Borges: “Ademais, não se sabe de antemão quais seriam esses fatos. A crucificação de Cristo foi importante depois, não quando ocorreu. Por isso, jamais leio jornais, seguindo um conselho de Emerson, que recomendava ler livros”. Ironicamente, como a confirmar essa conversa, seriam os assuntos temporais, especificamente os de natureza política, a separá-los, o que muito Sabato lamentaria depois, inconformado em não mais poder conversar com o amigo sobre Kant tanto quanto Kafka ou a matemática pitagórica.


A distância definitiva entre eles começou quando Sabato decidiu aceitar um almoço com o presidente argentino Jorge Videla na companhia de Borges, em 1976. Ao sair da Casa Rosada, Sabato comentou ter visto no ditador “um homem culto, modesto e inteligente”, algo que contestaria firmemente depois e mais e maiores crises de consciência lhe causaria no decorrer do tempo. Sabato antecipou-se a Borges na percepção de que a ditadura fora um grande mal a seu país, um “inferno” que não lhe proporcionaria nem alento nem espaço para escrever. Em 1984, o então presidente Raúl Alfonsín, sabedor de sua ação militante contra o regime, encomendou-lhe a tarefa de presidir a Comissão Nacional Sobre Desaparecimento de Pessoas, que redigiu o Informe Sabato, cujo título foi mudado para Nunca Mais a pedido do escritor.


“Os sonhos são úteis porque são livres”, dizia Sabato naquela conversa reportada por Orlando Barone nos anos 70, ao realçar que a grande arte só se veria produzida em absoluta liberdade, sem intenção moralizadora, ainda que apoiada em simpatias políticas democráticas. O talento do sonhador é que determinaria a qualidade literária de um romance. E Sabato exemplificava: “Em um acesso de patriotismo, Dostoievski se propôs a escrever um livrinho intitulado Os Embriagados, contra o abuso de álcool na Rússia. Mas o resultado foi Crime e Castigo”, fato que, segundo ele, remeteria à importância de transpirar boa literatura antes de boas intenções.


Vezes várias Sabato deu a entender que os demônios dostoievskianos eram os seus. Ele os exorcizou na pintura, uma de suas paixões como artista. O escritor russo foi um dia retratado por ele em um estilo impressionista algo misturado à perplexidade naïf. Mas a literatura de Sabato vinha orientada por mais uma necessidade, a de palavras exatas e diretas, sem demonstrar desnecessária dificuldade ao leitor, antes a agudez de um punhal, características de sua linguagem acessível que lhe renderam um Prêmio Cervantes em 1984.


O Túnel, exemplar dessa simplicidade, uma novela existencialista algo inspirada em O Estrangeiro, de Albert Camus, em torno das contradições e impossibilidades do amor, foi traduzida para diversos idiomas e levada ao cinema pelo diretor espanhol Antonio Drove 40 anos depois de sua realização. No filme El Túnel, Peter Weller é o pintor Juan Pablo Castel, obcecado a ponto de declarar nas primeiras linhas ter matado a bela Maria Iribarne-, -interpretada por Jane Seymour. No romance tecido mais de uma década depois, Sobre Heróis e Tumbas, de 1962, a complexidade literária nascia da estrutura narrativa e do uso, por vezes, de um falar típico da região do Rio de la Plata. No livro, o autor apresentava relatos sobrepostos sobre suas vivências pessoais e episódios da história argentina.


Não foi um rebelde, mas desejou ser justo, e por isso talvez tenha deixado expressa uma vontade que o filho Mario tornou pública durante o velório do pai no Club Defensores de Santos Lugares, situado em frente à casa que ocupara por 60 anos. “Quando morrer, quero que me -velem aqui, para que a gente do bairro possa me acompanhar nesta viagem final”, escreveu. “Quero que me recordem como a um vizinho às vezes rabugento, mas, no fundo, um bom tipo.”

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