Por Marcia Tiburi, da Revista Cult
Filósofos pelo mundo afora vêm se dedicando a compreender o fenômeno do rock. Na França e nos Estados Unidos, pensadores escrevem filosofias e ontologias do rock. No Brasil, Daniel Lins vem falando do encontro entre Bob Dylan e Gilles Deleuze. Esta que vos escreve trabalha em um diálogo/rock com o músico Thedy Corrêa. Podemos estabelecer diálogos entre bandas e estilos da vasta história do rock e filósofos da tradição. Podemos tentar entender o que há de filosófico nas letras, canções e performances do rock. A questão do rock é cultural e antropológica e, quando a tratamos como questão filosófica, há um mundo de reflexões a serem construídas.
Podemos vê-lo como questão de linguagem baseada em uma ontologia (do modo existência) da obra gravada. Podemos pensar também no que seria a filosofia depois do advento do rock, pois ele foi uma transformação tão radical da cultura quanto foram a psicanálise e o feminismo, a partir dos quais devemos também pensar a filosofia como experiência reflexiva de um tempo.
Podemos falar de rock como um “cogito do tempo”, como o chamou o filósofo francês Jean-Luc Nancy. Podemos também entender em que sentido o rock é ele mesmo uma expressão filosófica, um método como pensamento-ação-expressão e, nesse sentido, como a própria filosofia pode ser ela mesma um tanto “rock”. Ou rockfilosofia, aquela que, contagiada de rock, propõe pensar dançando, provocando, causando efeitos e livrando-nos de todo autoritarismo.
O grito elétrico como prática estética essencial
Foi Jean-Luc Nancy quem percebeu que o problema do rock já estava de certo modo posto naRepública, de Platão. No livro quarto da utopia platônica, a atenção à música é um problema de educação e de política. A ideia que vinga no texto é a de que é preciso cuidar do que os jovens ouvem, já que “não se podem mudar os modos da música sem abalar as mais importantes leis da cidade”.
Se os modos musicais são sistemas harmônicos que têm correspondência nos afetos é porque eles alteram o modo de ver o mundo. Alteram o sentimento e o comportamento dos jovens. Por exemplo, o modo dórico tem a ver com as virtudes cívicas; o frígio, com as virtudes guerreiras; o lídio, condenado por Platão, com os maus costumes e a embriaguez. A sensação de periculosidade do rock tem sua pré-história.
Nancy vê o rock como algo mais do que musical. Há nele determinado afeto, um pathos. Tal pathostem a ver com a força de contágio que as culturas – até mesmo Platão – perceberam estar na música. No caso do rock, esse pathos tem a ver com “eletricidade”. Tal é, para o filósofo francês, o signo sensível e simbólico do rock. A guitarra elétrica é o instrumento no qual ela se concentra. Ela é o meio que permite a “comunicação de energia” constitutiva do rock, que mudou nosso modo de escutar, de viver e de pensar.
Proponho que pensemos o rock como uma complexa prática estética que é também política e que, tendo sua própria especificidade ontológica como manifestação de vontade (no sentido da vontade da natureza de que falou Schopenhauer), afeta o sentido do mundo. Quero dizer que o que o rock traz ao mundo é uma autorização contra o autoritarismo. Ele faz isso por meio da prática estética que foi recalcada ao longo da história: o grito.
A questão do grito é antiga. A importante obra sobre a escultura do Laocoonte, escrita por Lessing no século 18, põe uma questão simples: poderíamos chamar de bela a escultura, caso a boca de Laocoonte estivesse escancarada? A representação do grito de dor podia mostrar o feio na arte no lugar do belo. A compreensão da arte naquele tempo como representação da beleza – e o inevitável ocultamento – estaria comprometida.
Assim como a arte contemporânea, o que o rock vem fazer no contexto da cultura é justamente mostrar o que não deveria ser mostrado – o que abala a estrutura da cidade, como na República, de Platão. Seu índice é o grito. Como o Uivo, poema de Allen Ginsberg, poeta que encantava figuras como Bob Dylan. Só que o grito do rock não é apenas o uivo da poesia, não é apenas o grito da voz humana do cantor. Ele é o grito da guitarra elétrica, da máquina, o grito que nenhum humano pode dar desde que o próprio humano emudeceu diante do processo histórico e da tecnologia.
O grito do rock é elétrico, é o elétrico como grito. O grito ou a explosão do que, não devendo ser mostrado, todavia apareceu. Isso que nos encanta enquanto nos ensandece, nos irrita, nos afronta e, ao mesmo tempo, quer salvar alguma coisa em nós.
Salvar o quê? O grito é descarga da dor, a interpelação que obriga o outro a ouvir, mesmo quando o que ele diz é apenas mudez. O rock é o inconsciente musical, assim como a fotografia é o inconsciente ótico, na forma de um sintoma social elevado a fenômeno de massa de uma cultura marcada por uma ferida – um trauma – que não deixa de se abrir. Nesse contexto, que o rock sobreviva entre nós é um sinal de que ainda estamos vivos.
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