Por Giovanni Alves, Rayssa Medeiros e Simão Mairins, do Cartazdecinema.com.br
Graças ao progresso, pudemos escrever esta matéria em nossos computadores e não em máquinas de datilografia, livrando-nos do trabalho de girar o papel a cada parágrafo e poupando o planeta das tantas folhas que teríamos jogado no lixo antes de chegarmos à versão final do texto. Também por causa dele, você está nos lendo neste exato momento sem precisar pagar nada e pouco tempo depois de termos fechado a edição da reportagem. Na verdade, sem os avanços da tecnologia, seu desktop, smartphone ou tablet sequer existiriam.
Progredir, entretanto, pelo que tem parecido, é deixar sempre um progresso velho para trás e procurar outro lá na frente. Foi assim com os tipos móveis de Gutenberg, que um dia ganharam teclado e se transformaram em máquina de escrever, que caíram em desuso quando nos ensinaram a usar o Word, que já não tem muita utilidade na era dos microtextos hipermidiáticos.
Foi graças ao progresso que centenas de pequenas cidades no interior do Nordeste um dia descobriram a magia do cinema, numa época em que os rolos com películas chegavam de trem e o som da difusora anunciava a próxima sessão. Tempos áureos. Mas, com o advento da televisão, chegaram ao fim.
Muitas histórias, entretanto, continuam guardadas na memória de quem viveu aquele tempo. O encanto com a tela gigante e a sensação gostosa de ouvir o barulho do projetor a carvão permanecem vivos nas lembranças, juntos aos cabelos já embranquecidos.
A morte do general em um começo complicado
Depois de um pequeno esforço para lembrar, Seu Isnard Soares, do alto dos seus 88 anos, conta como se tivesse sido ontem sua primeira sessão à frente do Cine Salgueiro, cinema comprado dos tios, que desistiram do negócio antes mesmo que ele engrenasse. "Foi uma estreia difícil. Você sabe quantas vezes aquele filme quebrou? Trinta e três!", diz arrancando risadas da esposa, filha e netas, que nos acompanharam todo o tempo naquela conversa com a atenção de quem espera grandes histórias.
O filme era "O general morreu ao amanhecer" (1936), de Lewis Milestone, uma produção da Paramount Pictures. "O general morreu e a sessão não começava", brinca Eulália, filha de Seu Isnard, enquanto revira algumas gavetas à procura de arquivos da época a pedido do pai.
A despeito das interrupções, o cinema começou e não demorou para virar febre. "No começo era uma sessão no domingo. Depois colocamos duas vezes por semana, reprisando na segunda-feira o que passou no dia anterior. E, por fim, acabamos abrindo todos os dias", conta seu Isnard, que não esconde o orgulho ao dizer que a sala vivia cheia.
"Aquele ponto concentrava todo o movimento de Salgueiro. Ali era um ponto social. Quem não ia para o cinema, ia passear na frente", afirma Eulália, lembrando da juventude na cidade pernambucana que abrigou e dava nome ao cinema do seu pai.
Negócio para quem tem voz
Hoje, os mais jovens devem sentir dificuldade em reconhecer outra cidade de Pernambuco, Serra Talhada – a 420 quilômetros do Recife – como baluarte do cinema no interior do Nordeste. Atualmente com 79 mil habitantes, o município é mais lembrado por ser o berço do cangaceiro Lampião. No entanto, houve, de fato, um tempo em que a população da cidade frequentava com devoção as salas de exibição.
Para se ter uma ideia, no início da década de 50, o município preservava duas salas cinematográficas, o Cine-Art e o Cineplaza, que viviam lotadas nos dias de exibição. Cada uma tinha capacidade para abrigar 500 pessoas. E um dos artífices dessa época, o cara que levava às telas a magia da sétima arte no meio da caatinga, era Seu Raimundo, hoje com 70 anos. Ele mede 1,50 metro de altura, tem voz grave e anda como se a vida fosse um eterno "slow motion". Seu Raimundo parece saber, por intuição, que a vida, de verdade, deveria ser assim. E conta, com calma, fumando um cigarro, parte da sua história, de quando exibia películas em um dos cinemas de Serra Talhada.
Aos 15 anos, ele abraçou a oportunidade de trabalhar como projetor de filmes. E pegou gosto pelo ofício. O Cine-Art foi inaugurado em 1952 e três anos após a sua criação, o cinema conheceu a astúcia de um garotinho franzino, de olhos fundos, tímido que, aos poucos, foi mostrando toda a pujança das suas cordas vocais. É por que antes de Seu Raimundo começar a exibição, ele agarrava um microfone para revelar o nome da película. "Primeiro eu fazia o anúncio num carro de som, saía rodando a cidade. Estacionava numa esquina e via as pessoas parando para ouvir a novidade da semana", conta.
"Hoje, no Cine-Art, cinemascope colorido, filme Tarzan, com Johnny Weissmuller". Então a luz apagava levando consigo todo o ruído da sala. E o filme ganhava vida nos olhos do público.
Raimundo Santana contabiliza mais de 1000 filmes anunciados e projetados por ele no Cine-Art. "Era bom demais. Sempre lotava e várias vezes eu tive que fazer duas sessões por dia do mesmo filme", conta.
No intuito de avisar aos habitantes do município que a hora da sessão se aproximava, era costume nas cidades do interior que possuíam cinema abrigar uma sirene no topo do prédio. Seu Raimundo, diligentemente, acionava o aparelho que causava o maior alvoroço na população.
"Teve um dia que trouxeram de São Paulo uma corneta poderosa. Quando chegou a hora de anunciar o filme eu dei corda nela e o som foi tão grande que causou medo e veio gente do outro lado da cidade desesperada pensando que era o fim do mundo", relembra, dando uma gargalhada cinematográfica.
Católico, porém profano
De cabeça baixa, junto ao rádio ligado, marcando a cartela do bingo. Foi assim que encontramos dona Margarida. Hoje viúva, aos 80 anos, ela, que sempre trabalhou com entretenimento, não perdeu o gosto pela diversão e muito menos a alegria. Ao fim do sorteio do primeiro prêmio, finalmente, nos dedica um pouco da sua atenção, sorri e diz, como quem se justifica: "Quem sabe um dia eu não ganho? E se não ganhar, pelo menos é divertido".
Junto ao marido, seu Leidson, e ao cônego João Marques Pereira, que abrigou na casa paroquial os jovens recém casados, um dia ela já foi dona dos dois principais negócios do ramo de entretenimento de Serra Branca, na Paraíba: a primeira sorveteria da região a fabricar seu próprio sorvete e o primeiro e único cinema da cidade.
Sem datas precisas na memória e sem os documentos oficiais da data da inauguração (levados por uma pesquisadora, que ainda não os devolveu) Dona Margarida estima que o Cine Educativo, nome escolhido pelo cônego, tenha sido inaugurado entre o fim dos anos 60 e o começo dos anos 70. "Não lembro direito, mas lembro que quando o cônego faleceu, em 1974, já estávamos funcionando há alguns anos", esclarece.
Antes de se tornar cinema, o prédio já era um espaço reservado às tardes de lazer na cidade. "Tínhamos teatrinho, apresentações, as crianças adoravam. Aí o padre teve a ideia de comprarmos o projetor, já que por aqui ninguém tinha televisão ainda", conta.
Foram anos felizes e tranquilos. Casais de namorados que usavam o cinema para fugir da vigilância dos pais, crianças empunhando casquinhas de sorvete de goiaba, amigos que vibravam com os filmes de luta (segundo dona Margarida, os preferidos do público) faziam parte da rotina.
Entre os filmes que faziam mais sucesso, dona Margarida conta que "Tarzan" figurava em destaque. Já os romances, como "E o Vento Levou" (1939), de Victor Fleming, não eram tão populares. "As moças até gostavam, mas como vinham pro cinema com pais, maridos e namorados, elas assistiam o que eles queriam. Sem falar que para os namorados não importava mesmo que filme ia passar, eles se agarravam o tempo todo e nem olhavam pra tela", conta sorrindo.
A melancolia do fim
O fim dos cinemas no interior é um retrato da decadência dos tradicionais cinemas de rua, cuja grande maioria foi abandonada até mesmo nas grandes cidades. Em Recife/PE, o tradicional cinema São Luís – um dos poucos do Nordeste a funcionar fora dos shoppings – quase foi extinto, antes de ser reestruturado e ter suas atividades retomadas. Em Campina Grande/PB, o Cine São José não teve a mesma sorte e, de portas fechadas, deteriora-se cada vez mais.
A televisão chegou e pôs tudo por água abaixo. "Depois dela, havia dias em que iam três, quatro pessoas para o cinema. O jeito foi fechar", conta Seu Isnard, que lamenta não ter conseguido, pelo menos, preservar o prédio do único cinema que Salgueiro um dia teve, vendido à Caixa Econômica, que o demoliu e construiu uma agência bancária antes mesmo que alguém pudesse reclamar seu tombamento ao património histórico.
E por falar em reclamar, apesar da debandada da sala de exibição, a extinção do Cine Salgueiro não se deu sem protestos. Um assíduo frequentador do cinema, o hoje médico Ademir Carneiro da Cunha fez sua reclamação por escrito, em formato de crônica, e a entregou pessoalmente a Seu Isnard, que a guarda até hoje.
Em Serra Branca, dona Margarida, agora aposentada, diz que, mais do que qualquer coisa com que tenha trabalhado, sente falta do cinema. "Lá era o melhor lugar pra trabalhar, a gente estava sempre junto das pessoas e na hora em que elas estavam felizes, a gente fazia parte do momento de alegria delas. Tinha contato com a mocidade, a vida lá era boa. Dentro de casa é que não presta", diz.
Mesmo saudosa, ela se mantém otimista e diz que o cinema, aos poucos, pode voltar a ter um espaço no interior. "A televisão anda meio assim, sem graça. Agora que já tem cadeira confortável pra cinema, quem sabe, né?"
De acordo com dados da Ancine – Agência Nacional do Cinema, o sonho de Dona Margarida anda um tanto longe de se tornar realidade. Em 2007, o Nordeste possuía 273 salas de cinema, com Bahia, Pernambuco, Ceará, Paraíba e Maranhão, respectivamente, detendo os maiores números. Em todos os cinco estados, no entanto, mais de 60% das salas aparecem concentradas nas capitais, sendo que no Ceará o índice chega a 81% e no Maranhão a 96%.
Lá em Serra Talhada, Seu Raimundo, da herança do trabalho como projetor de filmes, continuou apenas no ramo da propaganda-volante, agora, divulgando marcas de empresas, festas e velórios. Hoje, é comum vê-lo pelas ruas da cidade, agarrado ao microfone equalizando sua voz para anunciar algo.
Entre os dilemas do novo ofício, segundo ele, o maior foi ter anunciado a morte da própria sogra. "É por que eu gostava mesmo dela", confessa. Uma de suas maiores preocupações hoje é saber se vão anunciar em carro de som o seu falecimento. "Eu penso muito sobre isso. Já tentei até deixar algo gravado sobre mim. O problema é que não dá para dizer nem a hora nem o local da minha morte", disse, cabisbaixo.
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