sexta-feira, 3 de junho de 2011

As raízes da melancolia de Sérgio Buarque de Holanda



Por Elias Thomé Saliba, da Revista Carta Capital
“Em país como o nosso, onde em tudo domina a filosofia tupinambá, só se olham como grandes benfeitores os homens que fazem reformas de efeito. Embora para isso seja necessário onerar a nação e pejar seu futuro de incertezas, é essa a maneira mais cômoda para nossos governantes de conquistar popularidade. Bussolados pelo interesse próprio que quase em regra não é o da nação, esses políticos barafustam-se em intentonas egoístas cujo único mote é o lucro próprio. Eis como no Brasil se faz de meros bonifrates de circo, homens representativos.”
Não, o texto acima não foi escrito a propósito da política brasileira das últimas décadas. Nem quando menciona os “bonifrates de circo” está falando daqueles muitos Tiriricas que viraram parlamentares. O texto saiu na revista A Cigarra, no longínquo ano de 1920. Foi escrito por um jovem de 18 anos chamado Sérgio Buarque de Holanda, e serviu de argumento inicial para um artigo no qual apontava os equívocos históricos contidos no maior símbolo do País: a Bandeira Nacional. Este e tantos outros artigos surpreendentes e pouco conhecidos estão em Sérgio Buarque de Holanda, Escritos Coligidos, dois volumes organizados por Marcos Costa em coedição pela Fundação -Perseu Abramo e Unesp.
Cobrindo um período bastante longo, de 1920 a 1970, os livros reúnem quase 150 artigos, entre inéditos, dispersos ou pouco conhecidos, que permitem a um leitor atencioso acompanhar a fecunda trajetória e a versátil alternância intelectual de Sérgio Buarque entre o crítico literário e o historiador. Pesquisador incansável, ele nunca deixou de escrever para jornais e revistas, ainda quando esteve fora do País – na Alemanha, entre 1929 e 1931 ou lecionando na Itália, entre 1952 e 1954 – ou mesmo quando se encontrava completamente absorvido em preparar seus livros. Daí que uma grande parte dos artigos, reunidos nestes dois volumes, constituem autênticas antecipações dos seus livros clássicos e, em alguns casos, primeiras (e concisas) versões dos seus grandes livros.
Ao comparar a cronologia dos artigos na imprensa com as edições de suas- obras mais importantes, encontramos verdadeiros resumos ou anotações antecipadas de livros como Monções, Caminhos e Fronteiras e, sobretudo, do clássico Raízes do Brasil. É deste último que se reproduz Corpo e Alma do Brasil (Ensaio de Psicologia Social), de 1935, uma rápida síntese prévia, em menos de 20 páginas, do famoso livro que só sairia no ano seguinte.
Lembre-se de que a expressão “homem cordial” foi utilizada pela primeira vez pelo poeta Ribeiro Couto, em carta- ao escritor mexicano Alfonso Reyes, que divulgou a epístola no jornalzinho Monterey, editado pela embaixada do México no Brasil, em 1931. Com o título de El Hombre Cordial, Producto Americano-, Couto definia, em 50 linhas, o “ser cordial” como aquele que portava consigo uma renitente atitude de “disponibilidade sentimental”, comum a todos os povos latino-americanos. Mas, como já foi dito tantas vezes, longe de uma idílica vocação pacífica, para Sérgio Buarque a cordialidade brasileira relacionava-se a tratar a tudo e a todos como próximos ao coração, de forma familiar e nunca destituída de sentimento e emoção. Era uma espécie de recurso para sobreviver em sociedades sem mediações impessoais, ou seja, sociedades onde as leis não nascem da concretude dos costumes e, quando existem, são quase ineficazes. Nelas, o que funciona é o poder de vocação personalista, que se remete às relações familiares, tinhoso e pouco transparente, porque sempre disfarçado de intimidade e de “jeitinhos”.
“Hoje somos apenas um povo endomingado. Uma periferia sem um centro.” Esta era a frase com a qual Sérgio Buarque terminava o esboço de Raízes do Brasil, depois retirada na versão final do livro, talvez devido ao seu tom de iconoclastia risonha. De qualquer forma, ela marcava o encerramento da fase mais irreverente do jovem Sérgio, de engajamento no movimento modernista, entre os anos de 1921 e 1924. “Um rapaz algo excêntrico”, relembra Rodrigo Melo Franco, “que costumava caçar parnasianos pelas avenidas cariocas- com a intenção de provocá-los.”
É desta época, também, o seu primeiro encontro com Blaise Cendrars, quando se apresentou ao intelectual- francês como “o autor de vários livros desconhecidos e o escritor mais inédito- do Brasil”, declinando os títulos dos seus improváveis futuros livros, tais como O Automóvel Adormecido no Bosque, Ypissilone, O Magnífico, A Vida Íntima de Jesus Cristo e o último, ainda mais subversivo para os tradicionalistas, intitulado Rui Barbosa nunca Existiu. Muitos artigos desta fase já revelam a vocação crítica de Sérgio, sobretudo depois de 1926, quando rompe com os modernistas a quem aderira, rejeitando aqueles para quem a cultura brasileira nasceria de um programa intelectual- já delineado ou de mera vontade -ideológica. “Penso que teremos, com certeza, uma arte de expressão nacional. Ela não surgirá, é mais do que evidente, de nossa vontade, muito mais provavelmente, de nossa indiferença”, escreveu em melancólico artigo de 1926.
Muitos escritos denotam que a oposição a esses voluntarismos fornecia as armas para o historiador resistir, com lucidez, tanto ao fascismo quanto ao comunismo, duas grandes panaceias ideológicas a vicejar na década seguinte. O mesmo arsenal apenas se renovaria com a viagem para a Alemanha, em 1929. Como jornalista das agências Havas e United Press, Sérgio entrou em contato com um universo intelectual que só sedimentaria sua cultura relativista e crítica, sempre atenta aos processos de fluidez, de mudança e de transformação histórica. Conheceu o historiador Friedrich Meinecke, que o incentivou a uma leitura mais atenta das obras de Herder, Dilthey, Simmel, Weber e do filósofo italiano Giambattista Vico. Mas também cruzou com jornalistas afinados com a -cultura modernista e com a crítica da cultura de massas, como Siegfried Kracauer-, segundo o qual mais do que o reconhecimento entre os seus, todo bom jornalista deveria assumir o “papel de um estrangeiro em sua própria terra”. Apesar da curta passagem por Berlim, este caldo de cultura aguçou a sensibilidade de Sérgio Buarque para sobrevivências arcaicas e fenômenos tardios de adesão ao capitalismo e à modernidade.
Essa cultura filosófica, ensaiada em famoso debate com o católico Alceu Amoroso Lima, em 1926, reitera-se tanto nos artigos escritos em 1951, a propósito dos filósofos existencialistas, então capitaneados por Sartre, quanto na surpreendente análise da dialética hegeliana, em artigos de 1952, quando resenha o enorme tratado Dialética do Conhecimento, de Caio Prado Jr. Ainda aí, Sérgio Buarque surpreende os leitores pela percepção sutil e pela análise cerrada da dialética hegeliana: “Não há dúvida de que ela apreende o movimento da história, mas um movimento comparável, de certo modo, ao de um veículo que se move, sim, mas sobre trilhos de aço, fixos e irremovíveis”. Mais curioso é que, tanto no caso do pensador católico quanto no do historiador marxista, as conclusões se assemelhem, pois reconhece a atitude insistentemente polêmica dos dois autores: “Esta atitude, principalmente onde não hesita em simplificar até a caricatura as teorias adversas, para melhor contrariá-las, denota um fervor teórico incapaz de se expandir num meio em que não encontre, de antemão, a mesma elevada temperatura”. E, numa agulhada irônica, o historiador, nascido no bairro da Liberdade, concluía: “Noutras palavras, só aos que se acham firmemente convencidos, eles poderão ser realmente convincentes”.
Apesar de não dar nenhuma importância a seus artigos em periódicos, Sérgio Buarque nos deixou escritos penetrantes, sobre os mais variados temas, os quais, em diferentes épocas, serviram para marcar seus posicionamentos críticos, eruditos sem afetação e sempre abertos, porque cheios da sua penetrante e pontual lucidez. Lá estão os textos publicados em 1947 nos quais desmistifica a iconografia heroica dos bandeirantes, mostrando que, ao menos durante as expedições, andavam eles descalços, completamente diferentes da silhueta heroica posteriormente projetada em pinturas e monumentos. Suas observações sobre o nhengatu e a língua geral falada em São Paulo no século XVII, ainda quando se perdem em digressões que contam fofocas deliciosas sobre personagens da história, constituem, até hoje, notáveis indicações de pesquisa.
Também não será preciso muito esforço para rastrear nos artigos alguns dos seus sutis posicionamentos políticos. Como em texto de 1978 no qual, a pretexto de divulgar uma carta inédita de Alberto Torres, adverte que, se este último fosse vivo, não hesitaria em subscrever opiniões como a do jogador Pelé, “para quem o brasileiro não sabia votar”. Termina o artigo com uma estocada irônica: “Por isso mesmo, chega a afirmar (Torres, não Pelé) que deseja um governo para o povo, nunca pelo povo. É a volta de dom Pedro I”. Não era uma leitura oblíqua da inconsistência institucional e do estado discricionário então forjado pela ditadura? Apesar de datados e circunscritos ao ambiente da época na qual foram escritos, são artigos que revelam um escritor com aquela habilidade rara, de se apropriar do vocabulário dos documentos típicos do passado para nuançar conceitos abstratos, atingindo o universo mais sublime do conhecimento, que nos acostumamos a chamar de história.

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