Por Bruno Moreschi, da Revista Vida Simples
Numa roda de amigos, a conversa é sobre literatura. Cada um revela ao outro o que está lendo. Num misto de esnobismo e insegurança, alguém diz que está “relendo” determinado livrão clássico. Mentira. Receoso de colocar em questão sua reputação intelectual, a pessoa dificilmente assumiria que lê pela primeira vez alguma obra conhecida, como um Hamlet, do inglês William Shakespeare, ou um Crime e Castigo, do russo Fiódor Dostoiévski.
O escritor italiano Italo Calvino começou sua obra Por Que Ler os Clássicos, um pertinente ensaio sobre a importância da leitura desses livros, tratando justamente dessa atitude que recende a hipocrisia. De acordo com Calvino, não há idade para começar a ler um livro considerado famoso e respeitado pela crítica. E complementa com um recado consolador aos que temem assumir em público sua incipiente capacidade literária: “Por maiores que possam ser as leituras de formação de um indivíduo, resta sempre um número enorme de obras que ele não leu.”
A frase de Calvino destoa dos inúmeros preconceitos que cercam a literatura considerada clássica pela crítica especializada – ou canônica, numa classificação mais acadêmica. Graças aos inúmeros estudos sobre essas obras, elas podem passar a falsa impressão de serem leituras destinadas apenas a seletos (e eruditos) especialistas.
Isso não é uma verdade. Livros, sejam eles respeitados ou não, foram feitos por seus autores para serem lidos. Na verdade, quem teme ou apenas usa os livros clássicos como grife intelectual tenta se proteger. Ao evitar suas páginas, ficam livres de uma experiência que quase sempre questiona nossas certezas e sugere um mundo mais complexo. Trata-se de uma proteção revestida do mais ignorante dos medos. Aquele alimentado por ideias ditas pelos outros, não por uma experiência individual de leitura.
É preciso relativizar o senso comum que diz que clássicos são sinônimos de leituras maçantes. Não há nada de errado em estranhar sua linguagem nas primeiras páginas. Por serem quase sempre livros antigos, eles são mesmo escritos de uma maneira um pouco diferente da que escrevemos hoje. Nada que alguns minutos de insistência não resolvam.
Ser compreendido e popular era intenção de William Shakespeare, o escritor que revolucionou a maneira como contamos uma história. A prova disso é que o autor inventou mais de 1500 novas palavras para conferir mais clareza aos seus textos. Muitas delas continuam válidas até hoje, como é o caso de gossip (fofoca em inglês). Peças como Romeu e Julieta, Rei Lear e Sonhos de uma Noite de Verão lotavam o teatro londrino The Globe, construído a pedido de Elizabeth I, e apresentações quase diárias aconteciam também na corte de James VI.
Shakespeare não é exceção. Outros autores também se inspiravam em fontes pop de sua época. Publicado em 1605 e escrito pelo espanhol Miguel de Cervantes, Dom Quixote de La Mancha é inspirado nas histórias de heroísmo dos séculos 14 e 15 – todas muito populares em sua época. Autor de A Mulher de Trinta Anos, o escritor francês Honoré de Balzac chegava a construir maquetes dos ambientes em que suas histórias se passavam para poder descrevê-las de maneira clara e realista.
Para não ficarmos somente em autores internacionais, o mineiro Guimarães Rosa levou setes meses para escrever os contos de Sagarana. Quando pronto, guardou a obra por sete anos para, só depois disso, começar uma reescrita completa do material. O esforço era para criar uma linguagem fluida e ritmada, vista por exemplo na descrição de um burro no primeiro conto: “... no algodão bruto do pelo – sementinhas escuras em rama rala e encardida; nos olhos remelentos, cor de bismuto, com pálpebras rosadas, quase sempre oclusas, em constante semissono; e na linha, fatigada e respeitável – uma horizontal perfeita, do começo da testa à raiz da cauda em pêndulo amplo, para cá, para lá, tangendo as moscas”. E há ainda quem afirme que as obras de Rosa são leituras complicadas.
Mesmo assim, é preciso assumir que certos clássicos exigem certa disposição. Alguns são imensos, podem demandar meses a fio para serem lidos. Outros, custosos aos leitores, por causa de uma linguagem mais hermética. Restam duas opções ao leitor em potencial. Uma delas é ignorar essas obras com o frágil argumento de que são mesmo grandes e difíceis. Mais interessante, porém, é tentar entender a razão de o autor ter contado uma história dessa maneira tão custosa a quem a lê. Pode apostar: quase sempre há uma razão bastante justificável para isso.
Escrito pelo francês Marcel Proust no início do século 20, Em Busca do Tempo Perdido é considerado um dos romances mais decisivos, influentes e poderosos da literatura ocidental. Mesmo com tamanho prestígio entre o seleto grupo dos clássicos, o calhamaço de cerca de 3 mil páginas divididas em sete livros assusta a maioria das pessoas. Não deveria. Ao criar 25 personagens principais, Proust almejava um objetivo suntuoso: escrever sobre a relação do homem com sua memória. Seria impossível conseguir destrinchar um tema tão complexo em apenas algumas centenas de páginas. Além disso, diferentemente do que muita gente pensa, Em Busca do Tempo Perdido não é uma obra difícil de ler.
O engenheiro civil Arnaldo Mendes costuma ler em média um livro por semana há pelo menos uma década. “Não é uma obrigação. Faço porque gosto”, diz. No ano passado, decidiu não mais postergar o desejo de ler a obra-prima de Proust. Após seis meses, Mendes avalia: “Poderia ter encurtado esse tempo para a metade. Mas era delicioso parar em alguns momentos e ficar apenas pensando no que tinha acabado de ler.”
Quando terminou de ler a mesma obra, o irlandês Samuel Beckett, autor de Esperando Godot, disse algo semelhante. Ele assumiu que de fato se tratava de uma tarefa cansativa, mas não por causa das milhares de páginas: “A fadiga que se sente é a fadiga do coração, uma fadiga de sangue”. Beckett repetiu o que a maioria dos leitores relatam quando terminam esse livro. Em Busca do Tempo Perdido exige mesmo disciplina e empenho, mas vale a pena pela experiência intelectual que a obra proporciona.
Certa vez, numa entrevista, o escritor norte-americano e ganhador do prêmio Nobel de literatura William Faulkner foi questionado do motivo de seu livro O Som e a Fúria ser tão difícil de ser lido. Ele não aceitou a observação da jornalista de que é necessário ler no mínimo duas vezes para compreender a história. Faulkner corrigiu-a: “Sugiro que leia quatro vezes”.
Nesse caso também há uma razão. Faulkner quis construir um livro em que o fluxo de pensamento dos próprios personagens conduzisse a trama. Cada capítulo de O Som e a Fúria é contado sob o ponto de vista de uma pessoa diferente.
Quem começa a história é Benjamin Compson, um rapaz com deficiência mental. Por isso, os trechos misvida turam sensações: “Peguei no portão mas não senti nada, mas sentia o cheiro forte do frio”. Ao optar por extensas frases com pouca pontuação e pensamentos emaranhados, Faulkner sabia exatamente o que queria. Não à toa, muitos críticos literários o consideram o escritor que revolucionou o texto em primeira pessoa. “Essa história precisava ser contada dessa exata e confusa maneira”, disse Faulkner.
Mas casos como esses não significam que as pessoas são incapazes de ler os clássicos. Em diferentes locais e durante quatro anos, o escritor e doutor em Literatura Brasileira pela USP Ricardo Lísias, autor de O Livro dos Mandarins, comandou um curso sobre os clássicos da literatura. As Flores do Mal, de Charles Baudelaire, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, eRumo ao Farol, de Virgínia Woolf, foram alguns dos livros que os participantes precisavam ler para, depois, discutir em grupo.
Lísias não teve grandes problemas com as turmas. Ele conta: “É um engano acharmos que as pessoas não entendem os clássicos. Durante as aulas, elas possuíam varias opiniões sobre as obras, mas quase sempre eram visões bastante pertinentes”.
Livros clássicos não são sinônimos de obras perfeitas. Eles são chamados dessa maneira algo pomposa apenas por serem obras que passaram por um longo processo de legitimação – produzido em grande parte pela academia e passível de questionamentos a qualquer momento.
Em O Cânone Ocidental, o crítico norte-americano Harold Bloom analisa essa dinâmica existente entre os clássicos. A seu ver, obras literárias travam uma peleja freudiana em que se infuenciam pelo passado, mas também tentam constantemente romper com seus antepassados. Platão lutava para que seus escritos fossem mais relevantes que os de Homero. Crime e Castigo, de Dostoiévski, e a teoria psicanalítica de Sigmund Freud jamais seriam criados sem Shakespeare. Na ânsia de desafiar a maneira como esse mesmo autor inglês conta uma história, Beckett, Proust, Kafka e Joyce escreveram seus livros. Joyce, aliás, foi além: para escrever Ulisses, apropriou-se da narrativa daOdisseia, de Homero.
Bloom: “A tradição não é apenas um passar adiante ou um processo de transmissão benigna; (...) Poemas, contos, romances e peças nascem como uma resposta a poemas, contos, romances e peças anteriores”.
Entender esse jogo torna a leitura de clássicos algo menos fetichista. Muito mais que obras escritas por iluminados, eles são frutos da tentativa consciente ou inconsciente de escritores que almejavam adentrar na história da literatura. E só por esse esforço suas obras já merecem uma leitura.
Em 2002, o filho mais novo da aposentada Elem Seravali seguiu o caminho do mais velho e foi estudar fora. A casa em Maringá (PR) pareceu maior do que já era. Por sugestão dos filhos, ela resolveu começar a ler alguns livros da estante da sala de estar – antes, eles estavam ali mais como decoração. Desde então, Elem leu muito, e O Morro dos Ventos Uivantes, da britânica Emily Brontë, é seu livro favorito.
Suas opiniões acerca dos clássicos estão em sintonia com as ideias de dois especialistas respeitados. Elem diz: “Antes de lê-los, achava que livros antigos não serviam para os dilemas atuais. Era um engano meu.” Em O Prazer de Ler os Clássicos, o escritor Michael Dirda complementa: “As vozes verdadeiramente marcantes, uma vez ouvidas, jamais deveriam ser esquecidas”.
Elem também acha interessante ler obras mais antigas justamente pelo motivo que espanta tantas outras pessoas: sua escrita diferente, não tão usual como a vista em livros mais novos. “Essa estranheza me permite imaginar muito mais coisas”, diz. O escritor italiano Umberto Eco compara essa possibilidade de imaginar que a escrita nos oferece como um passeio por um bosque em que caminhos se bifurcam. “Todos podem traçar seu próprio caminho. Num texto narrativo, o leitor é obrigado a optar o tempo todo”, escreve o teórico e ficcionista em Seis Passeios pelos Bosques da Ficção.
Antes de largar a vida de escritor aos 22 anos e viajar até o dia de sua morte, o poeta francês Arthur Rimbaud disse algo emblemático: “O poe ta se faz vidente por um grande, imenso e racional desregramento de todos os sentidos”. Esse esforço intelectual foi experimentado também por grande parte dos escritores canônicos. Ao caminharem por bosques desconhecidos, esses autores escreveram relatos sobre a experiência. Se deixarmos de lado receios infundados, eles podem ser lidos por qualquer um de nós.
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