terça-feira, 11 de maio de 2010

Projeto educacional no Amazonas adapta ensino médio aos idiomas e práticas indígenas


Por Marcelo Leite, do Caderno Mais!, da Folha de São Paulo
Crédito da Foto: Marcelo Justo

No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é", diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. "Só é índio quem se garante."
Está na cara que Aloisio Cabalzar, 41, antropólogo de ascendência suíça que viaja à minha frente na voadeira (lancha de alumínio), não é índio. Protetor solar e o romance policial "Alerta Negro", de Patricia Cornwell, são seus companheiros fluviais mais constantes. Mas ele fala a língua tuiuca com fluência após duas décadas de andança pela mandíbula da região da Cabeça do Cachorro.
Cabalzar, do Instituto Socioambiental (ISA), de São Paulo, é o paciente cicerone da reportagem da Folha na viagem de dez dias e várias "cachoeiras" (corredeiras) pelo extremo noroeste do Estado do Amazonas. Objetivo: conhecer as excepcionais escolas tuiuca e tucano das comunidades ao longo do rio Tiquié, afluente do Uaupés, por sua vez um tributário do rio Negro.
Metade desses dias foi padecida em voadeira, a maior parte com motor de popa de 40 HP. Menos potência, e a viagem pode se estender por uma semana -só na ida.
Já no final da primeira jornada, o antropólogo conversa com o jovem carona Marcos Resende, habitante de São Pedro (ou Pikorõaburo, em tuiuca, nome de uma larva de besouro que come o miolo do tronco do buriti), nosso destino final. O jovem tampouco parece índio. Cabelos encaracolados, boné de hip-hop virado para trás, camiseta Racionais MC's -de quem nunca ouviu uma música, aliás.
A aparência engana. Na primeira refeição em São Pedro, na casa de seu padrasto, Adão Barbosa, Marcos fala tuiuca. Serve-se com as mãos, como todos, das maniuaras (saúvas) torradas, da cutia e do beiju. Não reage com lacrimejo e espirros ao excesso de pimenta, como os convidados.
Quatro dias depois, no caxiri de despedida para os visitantes, festa na maloca regada à bebida de mesmo nome fermentada da mandioca, Marcos tocaria flauta e dançaria com outros moços e moças. Sem o boné, mas tampouco havia adorno de penas à vista -só bermudas e camisetas de muitas cores. Seu pé direito socaria o chão de terra, mantendo o ritmo e a tradição. Ex-aluno do ensino médio, Marcos já é professor.

Língua ameaçada
"Antigamente, sábio era quem obedecia às regras", pondera Higino Pimentel Tenório, 55, a autoridade reconhecida em São Pedro. Professor há 35 anos, Poani -seu nome cerimonial em tuiuca- lamenta que os jovens tenham abandonado muitos costumes.
Uma das interdições importantes, explica Poani, é a abstinência sexual de 15 dias antes de beber o caapi (bebida alucinógena similar à ayahuasca). "Quem obedece às regras tem mais poder, progride mais", afirma o professor sobre a sabedoria veiculada pelas "mirações" desencadeadas pela bebida. "[A gente vê] muita cobra colorida no vômito, entende a música e as palavras da cachoeira."
Seu orgulho é ter revertido o "êxodo rural", como se refere à saída de jovens para as antigas missões salesianas da região, Pari-Cachoeira e Taracuá, ou para a sede do município, São Gabriel da Cachoeira. A regra era abandonarem as aldeias em busca de educação.
São Pedro ficou reduzida a 14 famílias, em 2000. Hoje são 23. A língua tuiuca, antes à beira da extinção, agora é falada por todos, dentro e fora da sala de aula. Inclusive pelos alunos tucanos, desanas, yebamasãs, barás ou miriti-tapuias vindos de aldeias vizinhas para os módulos de 15 dias, intercalados com 15 dias passados na comunidade de origem, para trabalhar com os pais na roça e na pesca.
Os moços não precisam mais mudar-se para São Gabriel, 700 quilômetros rio abaixo, para cursar o ensino médio. A primeira turma do secundário da escola Utapinopona -"Filhos da Cobra de Pedra"- formou-se no ano passado, Marcos Resende entre eles (hoje dá aulas para a nova turma da escola comunitária).
Agora só lhes falta o reconhecimento de um diploma oficial. E já discutem como poderia ser um ensino superior indígena.

Paisagem como projeto

A casa de apoio construída em São Pedro pelo ISA, que auxilia a escola na localidade desde 1994, tem três ambientes. O telhado sem forro é de caraná (Mauritia carana), palmeira aparentada com o buriti (M. flexuosa). Não deixa a desejar numa região em que pode chover até 3.600 mm/ano. Resistiu, sem muitas goteiras, a vários temporais.
O quarto sem porta abriga as redes dos visitantes. A cozinha diminuta é território de Jorge Gabriel da Silva, 52, piloto de voadeira e cozinheiro da etnia desana. O cômodo maior pode ser sala de aula ou de refeição e dormitório extra, dependendo do horário.
Das paredes pendem cartazes com desenhos elaborados de perfis de vegetação em capoeiras: plantas vermelhas são as cultivadas, verdes, as pioneiras (primeiras a se instalar) e azuis, as de floresta madura.
Às 14h do dia 30 de março, excepcionalmente, é hora de aula expositiva. As tardes são em geral dedicadas a atividades como desenho de perfis de vegetação e compilação de dados em tabelas, não à exposição.
A rotina foi alterada para acomodar a agenda da reportagem, que pela manhã acompanhou uma atividade de campo dos alunos (coleta de mel e reprodução de colmeias de meliponicultura -criação de abelhas sem ferrão).
São 19 alunos na sala, 15 homens e 4 mulheres na faixa de 15 a 19 anos. Há dois computadores laptop, além daquele em que Pieter-Jan van der Veld, 46, agrônomo holandês contratado pelo ISA, lê o tema do dia: "Apresentar uma pesquisa sobre paisagem florestal". Os três aparelhos e a única lâmpada do recinto são alimentados por energia acumulada em baterias de caminhão por um painel solar fotovoltaico.
O português sai com um acento lusitano e palavras esparsas em espanhol, mas Wisõka -Esquilo, apelido do professor em tuiuca, por causa dos cabelos avermelhados- garante que os jovens entendem.
Todos ali falam pelo menos três idiomas (português, tuiuca e tucano, a língua franca do Tiquié) e escrevem as duas primeiras. Recebem visitantes do Brasil todo e do exterior, interessados na experiência peculiar de educação indígena. "O meu é só mais um sotaque do português para eles", tranquiliza Van der Veld.
A aula difere muito do ensino médio tradicional nas redes públicas de outros Estados e das grandes cidades amazonenses. Além dos módulos em blocos intercalados de 15 dias, dura quatro e não três anos, divididos em ciclos de dois. Em lugar de um currículo segmentado em disciplinas, os alunos aprendem com base em pesquisas e projetos temáticos.
O projeto atual é um levantamento de "paisagens", ou fisionomias vegetais, eleitas pela comunidade -alunos, pais e professores. O estudo se concentra nas quatro principais: floresta ("makaruku"), capoeira ("wiariro", roça abandonada), igapó ("boareko", floresta de inundação sazonal) e campinarana ("tataboa", uma espécie de caatinga amazônica que viceja em solos arenosos e encharcados, origem da "água preta" dos igarapés e rios da bacia do Negro).
Há dezenas de subdivisões para registrar concentrações de recursos importantes. "Netahta" é buritizal; "mihpitahta", açaizal. Em foco, na pesquisa, estão os caranazais ("mui boa"), onde folhas para renovar telhados são colhidas. Se o estoque natural não for bem manejado, a matéria-prima escasseia, o que pode forçar a mudança de local da aldeia.
Na semana anterior, o grupo passara quatro dias acampado, identificando, contando e medindo árvores e arvoretas com mais de um dedo de espessura num transecto (área delimitada) de mil metros quadrados. Os dados coletados são organizados em listas (todos os tipos de árvores encontradas), depois em tabelas (com as quantidades de cada tipo).
Listas e tabelas são necessárias para produzir gráficos, explica Van der Veld. A tradução para o tuiuca fica a cargo do professor habitual da classe, José Barreto Ramos, 50. Ele também se chama Poani, um dos nove nomes de homem disponíveis na língua tuiuca; para as mulheres, há seis.
Nesse idioma, a entonação modifica o significado das palavras. Tudo soa incompreensível para o forasteiro, mas a tradução vem entremeada de palavras portuguesas: "gráfico", "tabela", "lista"...
Conceitos inexistentes numa cultura em que, poucas décadas atrás, só se contava até 20 (soma de todos os dedos e artelhos). "O próprio conhecimento quem manifesta é a língua", teoriza o outro Poani (Higino Tenório).
A aula evolui para a confecção de um gráfico comparando as quantidades de três árvores em dois transectos. Todos os alunos têm pranchetas, cadernos e réguas. Anotam tudo que o professor escreve no quadro, em português, com letras de forma e caligrafia bem desenhada. O silêncio e a atenção são dignos de nota, para quem conhece a atmosfera do ensino médio nas capitais, retratada no filme "As Melhores Coisas do Mundo", de Laís Bodanzky.
Terminada a explicação da tarefa, a dificuldade se torna visível: raros são os que começam de imediato a traçar o gráfico de barras. Os alunos empacam na correspondência entre número de árvores e centímetros do eixo y e na escolha da escala para a figura caber na página. Só então começam a falar entre si, e o observador conclui que ajudam uns aos outros. Van der Veld dá a tarefa por completa após uma hora e meia de aula.
"A parte difícil é a matemática", diz o holandês. "Enfrentam problemas com coisas técnicas e abstratas, mas não com a parte prática." Na sua avaliação, os alunos da escola tuiuca têm nível melhor que os técnicos de Rondônia com quem trabalhou por um ano em 1998, para fazer amostragens de solo no macrozoneamento do Estado. "Os problemas são os mesmos da educação do Brasil [todo]."

Caranazal abusado

Dois dias depois, a reportagem entra na mata com Van der Veld e cinco estudantes, para uma demonstração de levantamento num caranazal. Há dificuldade para acompanhar a marcha, firme e aplicada como a caligrafia exibida em sala de aula. São 45 minutos para cobrir cerca de dois quilômetros desde a margem do Tiquié, segundo o GPS. O jornalista e o repórter-fotográfico aprendem rápida e dolorosamente o significado da palavra "caba" (marimbondo).
Chegamos ao caranazal pouco depois das 10h. Embora a palmeira não componha mais que 3% das 139 plantas inventariadas pelos tuiucas nessa paisagem vegetal, suas folhas em leque estão por toda parte.
Visível, também, é a decepção do agrônomo professor: só há indivíduos juvenis de Mauritia carana, nenhum adulto com tronco, muito menos com os 15 metros que pode alcançar na fase reprodutiva. A maioria dos caranás é "pu" (criança).
"Um caranazal abusado", decreta o holandês. Nem mesmo a regra tradicional de deixar pelo menos três folhas em cada pé parece ter sido observada pelos últimos coletores. O manejo inadequado implica que a área precisará de muitos anos para voltar a ser explorada, porque não sobraram plantas-mãe para lançar sementes e recompor a população.
Não deixa de ser didático para os tuiucas Jorge Rochas Gutierrez, Josival Azevedo Rezende e Walter Marques Tenório, além de Jodair de Jesus (tucano) e Angel Maria Sanches (bará), os estudantes de ensino médio encarregados da demonstração.
Sua tarefa é demarcar um transecto, a área para levantamento da paisagem. Começam por assinalar uma árvore de porte facilmente identificável na mata rala e fixar nela uma plaquinha de metal. É o ponto de referência, marcado no GPS.
A partir dele se estende a trena por 20 m (numa pesquisa real são 100 m), iniciando a demarcação do polígono com 10 m de largura. Fincam-se estacas a cada 5 m, para fixar barbantes perpendiculares que dividirão a área em quatro setores, para facilitar a contagem.
O ângulo é definido com auxílio de bússolas de fundo transparente, que permitem enxergar o fio por baixo e alinhá-lo. Van der Veld pergunta quanto é um ângulo reto, para marcar o canto do retângulo do transecto. A primeira resposta é 50, logo corrigida para 90 -não sem algum debate.
Os alunos têm então de somar ou subtrair os 90 da orientação registrada para a trena (230), e a barreira da abstração volta a materializar-se. Fazem e refazem contas a caneta na palma das mãos, até chegar às respostas corretas (320 e 140). Quando surgem quantidades negativas, então, a dificuldade cresce de forma exponencial, conta o professor holandês.

De volta à tanga

Juntos, os rapazes acabam resolvendo todos os problemas que Van der Veld propõe. No processo, ganham ferramentas e habilidades para entender melhor e manejar a dinâmica natural de um recurso decisivo para os tuiucas e seus vizinhos. Já se foi o tempo em que os jovens tinham de aprender com livros -dos padres salesianos ou do MEC- que falavam de maçãs e uvas, frutas que nunca chegam ali.
"Abrimos opção para cada jovem buscar qual tipo de conhecimento vai buscar fora para solucionar os problemas da comunidade", afirma o líder Higino Tenório. Os projetos de pesquisa sempre têm relação com o sustento material e cultural dos tuiucas e dos povos vizinhos (entre os quais buscam mulheres para casar): a palha do caraná, peixes e piscicultura, meliponicultura, roça -mas também mitos, cantos, adornos e benzimentos.
A ideia por trás da nova escola sempre foi casar a "ciência dos brancos" com a valorização do conhecimento indígena. E, no caminho, aproximar moços e velhos, revivendo regras cujo cumprimento estava se tornando exceção. "Nossos antepassados [homens] passavam três meses acampados na mata, aprendiam a fazer cestaria", conta Tenório. "[Eram] regras para dotá-los de conhecimento, força e espírito."
Na própria comunidade de São Pedro houve resistência à proposta de educação indígena e alfabetização em língua tuiuca. Fiéis ao ensino rígido dos salesianos, que os ensinaram a ler, escrever e contar até mais que 20 e os ajudaram a libertar-se das dívidas com os patrões da borracha e comerciantes dos regatões, muitos pais acharam que seria um retrocesso.
"Nossos próprios parentes não chegavam a entender", rememora o professor José Ramos. "[Achavam que] atrapalharia, traria atraso, os filhos não poderiam aprender português, voltariam para trás e a usar tanga como nossos antepassados", diz o outro Poani, sempre de calça comprida, cinto e camisa polo.
"Os padres mandavam bater nas crianças. Isso acabou", comemora. "A escola agora tem computador, tecnologia, oficinas, bússola e GPS. Nossos filhos só falavam tucano, custou dois, três anos para voltarem a falar tuiuca. Quando um aluno está doente, manda carta [para o professor] escrita em tuiuca."

Ensino superior indígena

As resistências comunitárias foram pouco a pouco vencidas. Hoje, a língua tuiuca ganhou algo que nunca teve: uma literatura própria. Fruto de duas décadas de trabalho do casal Flora Dias Cabalzar e Aloisio, o "Arusu" (arroz).
Eles foram "peças fundamentais", segundo Higino Tenório. "Eu penso várias ideias, mas não sei colocar as palavras certas", diz o coautor tuiuca. "Eles sabem escrever, ouvindo nossas ideias."
Já são oito livros publicados no idioma em uma década. Um ainda está no prelo: "Utapinopona Kuye Poseminiã Niromakaraye" (Adornos Cerimoniais dos Tuiucas). Resultou de um projeto temático da escola em que alunos recolheram entre os mais velhos descrições, usos e explicações sobre a origem dos ornamentos.
A experiência "sui generis" de educação indígena na região da Cabeça do Cachorro, que inclui os tucanos do Tiquié e os baniuas do rio Içana, gerou também várias teses e publicações em português. O livro mais recente é "Manejo do Mundo - Conhecimentos e Práticas dos Povos Indígenas do Rio Negro, Noroeste Amazônico" (organizado por Cabalzar, do ISA), lançado num seminário com o mesmo título, que se realizou de 8 a 13 de abril em São Gabriel da Cachoeira.
O seminário reuniu representantes dos vários povos da região, inclusive da Colômbia, para trocar experiências de educação baseadas em projetos de pesquisa sobre a natureza e delinear como poderia ser um ensino superior indígena. Trata-se de formar professores de ensino básico com nível universitário, como exige a lei, mas com currículo que vá além da formalização muitas vezes medíocre oferecida por universidades da Amazônia.
O encontro resultou numa lista com 13 desejos para um ensino superior indígena. Coisas como ser inovador, ter relação com o território da bacia do rio Negro e conexão direta com as comunidades. "Qual seria o conhecimento mesmo, de nível superior, para o jovem conseguir viver aqui?", pergunta Higino Tenório. "É inviável querer transformar o índio em intelectual. Quem faz curso superior quer ir para a capital."
Mais sintomática é a lista do que os índios não querem que ele seja: só uma licenciatura intercultural, numa única língua, com predominância do conhecimento científico ocidental e estruturas burocratizadas. A burocracia estatal, aliás, é no momento a grande pedra no caminho das experiências educacionais do rio Negro.
Enquanto se limitavam ao ensino fundamental, as peculiaridades da educação comunitária foram sendo acomodadas com as regras municipais de São Gabriel da Cachoeira, onde cerca de 90% da população de 42 mil habitantes e até o prefeito são indígenas. Ao alcançar o nível médio, porém, passaram para a alçada da Secretaria Estadual de Educação amazonense, e o reconhecimento oficial das turmas já formadas ainda não saiu.
Da duração -quatro e não três anos- à inexistência de avaliação com notas ou de conteúdo curricular padronizado, pouca coisa se enquadra nas normas do Conselho Estadual de Educação do Amazonas.
"[O ensino médio tuiuca] é um projeto avançado, até para a educação indígena", afirma o professor de física e matemática Inafran da Silva Bastos, técnico da Gerência de Educação Escolar Indígena da secretaria estadual. "Na hora de reconhecer, a própria Seduc não estava preparada. É só uma questão de tempo e de se adequar -no mínimo dois a três meses."
A nova gerente da área, Alva Rosa, da etnia tucano, tomou posse em 19 de abril, Dia do Índio. Bastos informa que a gerência trabalha na adaptação do currículo estadual para a educação indígena, mas que o processo ainda está "no início".

Aracu, acará e araripirá

No último dia de março, a reportagem desce o Tiquié até a comunidade tucano em Cachoeira do Caruru, menos de meia hora de voadeira com o motorzinho de popa de 15 HP. Vamos conhecer a estação de piscicultura montada em 1999 por uma associação de 12 comunidades tucanas e tuiucas no Alto Tiquié.
O guia da visita é o coordenador-gerente do projeto, Lucas Alves Bastos. A escola, em paralelo ao projeto de piscicultura, desenvolveu uma pesquisa relacionando enchentes e vazantes, chuvas, piracema (desova dos peixes) e constelações que "caem" do céu no poente, como a da Jararaca (em novembro).
O projeto tem por meta reproduzir e distribuir para as comunidades espécimes das espécies nativas aracu-riscado (Leporinus agassizii), aracu-três-pintas (L. friderici), acará-trovão (Satanoperca jurupari) e araripirá (Chalceus macrolepidotus). Machos e fêmeas maduros são capturados e têm a hipófise retirada para extração de hormônio, depois injetado debaixo da nadadeira peitoral de outros peixes para estimular a produção de gametas (espermatozoides e óvulos).
Controlando a temperatura dos animais, os técnicos indígenas definem o momento de espremer os peixes e colher o material para fertilização em bacias, que exigem trocas de água de dez em dez minutos. Transfere-se o material para incubadoras com água corrente, durante sete dias, para que os embriões eclodam e se desenvolvam. Eles são depois contados e transferidos para os viveiros, tanques de 10 m x 20 m x 1,5 m escavados no terreno.
No momento, as incubadoras estão vazias. Uma semana antes, 34.300 pós-larvas de araripirás, com três milímetros, foram produzidas em Caruru. Cerca de 2.000 sobreviverão nos tanques e alcançarão dez centímetros, quando serão enviadas para engorda nos viveiros comunitários e familiares, como os de São Pedro.
O dia anterior fora de mutirão para cavar um terceiro viveiro na vizinha aldeia tuiuca, parceira dos tucanos de Caruru. Meia centena de homens, mulheres e crianças trabalhavam juntos, sob o sol a pino. Já há dois lagos, mas um está vazando. É preciso abrir outro, trabalho para cinco dias.

Palavra de índio

"Nossa ideia é fazer criação para o rio descansar", explica Higino Tenório, líder dos trabalhos. "Com tecnologia -pilha, zagaia, malhadeira- a pesca deixou de ser seletiva e inteligente, como era feita com pari [armadilha de varas], e se tornou predatória."
Tuiucas e tucanos do Tiquié entendem que foram gente-peixe, antes de se transformarem em gente-verdadeira, e assim escolheram permanecer. Para isso, precisam de flautas do jurupari (que mulheres e crianças só podem ouvir, não ver), de folhas do caraná, aracus, acarás e araripirás -além de uma tecnologia que fuja à norma da superexploração.
Em duas palavras, buscam na prática as tão faladas "inovação" e "sustentabilidade" e elegeram o ensino como canoa para realizar a travessia. "[A escola] é a instituição externa que eles conseguiram manejar", resume Aloisio Cabalzar.
A regra do senso comum vale também para os índios: educação é a garantia de algum futuro. Um futuro índio.

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