Por Marcos César de Oliveira Pinheiro [Historiador], para o Diário da Liberdade
"Alguns me consideram um demônio, outros quase um santo. Não quero ser mártir nem herói. Acredito ser simplesmente um homem médio, que tem suas convicções profundas e não as troca por nada no mundo." Carta de Gramsci, do cárcere, a seu irmão Carlo, em 12 de setembro de 1927.
Gramsci morreu em 1937, vítima do ditador fascista Benito Mussolini. Em 1926, foi condenado por um tribunal fascista a 20 anos de detenção, num processo no qual o promotor, com a brutalidade típica dos fascistas, mencionava a necessidade de "evitar que esse cérebro continue funcionando". Apesar das duras condições da prisão, Gramsci deixou ao morrer uma obra de grande importância escrita no cárcere: 33 cadernos manuscritos, totalizando 2.848 páginas, conhecidos como os Cadernos do Cárcere.
Coube ao dirigente revolucionário italiano um papel extraordinário no que diz respeito à teorização do Estado, do poder e da política. Contudo, a leitura dos escritos de Gramsci não é uma tarefa fácil. Indiscutivelmente, nas reflexões dos Cadernos do cárcere está presente a proposição básica de que as classes sociais, o conflito de classes e a consciência de classe existem e desempenham um papel na história.
Para entender Gramsci
Para compreender um autor, é necessário conhecer profundamente o contexto histórico-político-cultural com o qual está envolvido. Um pensador da envergadura de Antonio Gramsci requer entender o processo de formação da sua personalidade política e intelectual. A vivência dos momentos mais dramáticos das lutas que agitaram a Europa e, particularmente, das mobilizações sociais, políticas e econômicas que levaram, ao menos na Rússia, à vitória da Revolução em 1917. O progressivo deslocamento de Gramsci da esfera de influência do neo-idealismo, destacando o distanciamento crítico e a superação em relação ao pensamento de Benedetto Croce e Giovanni Gentile. Seu referencial marxista assumido, que o leva a formular propostas interpretativas voltadas para a explicação de modos de dominação social em meio à dinâmica do conflito, da luta de classes. A espinhosa interlocução crítica de Gramsci no interior do próprio marxismo e os embates travados com as correntes mecanicistas, dogmáticas e messiânicas [1]. A problemática gramsciana de "explicar a dominação de classes, recusando determinismos de cunho mecanicistas e procurando explicitar mecanismos culturais (sem reivindicar-lhes exclusividade ou determinismo de pólo inverso) que alimentam a dominação, bem como espaços de resistência a esta dominação que se constroem em meio às lutas de classes" [2].
Tanto os leitores já familiarizados com Antonio Gramsci quanto os novos, a meu ver, dispõem da necessidade de contato com os chamados "especialistas" ou intérpretes dos escritos gramscianos. Justamente por apresentar-se – nas palavras do próprio autor – como um conjunto de notas "escritas ao correr da pena, como rápidos apontamentos para ajudar a memória" [3], a obra da maturidade de Antonio Gramsci – os Cadernos do Cárcere – tem proporcionado as mais variadas interpretações teóricas e políticas da mesma – e até contrastantes leituras [4]. Decerto, as condições peculiares nas quais os Cadernos foram escritos parecem corroborar para que muitos leitores acentuem além da conta o caráter fragmentário da obra, acarretando um instrumental gramsciano distorcido e, de todo, retirado do contexto em que faz sentido. Acaba-se, em muitos casos, contando menos o que Gramsci disse do que aquilo que os seus leitores julgam encontrar em sua obra – o anacronismo é frequente. Daí a necessidade de uma correta contextualização e um estudo filológico dos textos, ou seja, uma leitura "genética" dos Cadernos do Cárcere, considerando a riqueza de seus contrastes, de suas ambiguidades e até de seus limites [5]. Isso permite aos leitores de Gramsci, veteranos ou novatos, encontrar o trajeto unitário e coerente do seu pensamento, possibilitando ler os Cadernos como resultado de uma concepção de mundo orgânica e unitária.
O conjunto de categorias desenvolvidas por Antonio Gramsci constitui um campo aberto de criação histórica, apesar dos limites inerentes a qualquer conceito. Mas o que explica essa "adoção" de Gramsci é a análise da validade operatória de muitas de suas categorias para formular interpretações mais aprofundadas da realidade concreta no âmbito nacional ou internacional.
Notas do Autor
[1] Para compreender o processo de formação política e intelectual de Gramsci ver: LOSURDO, Domenico. Antonio Gramsci: do liberalismo ao "comunismo crítico". Rio de Janeiro: Revan, 2006; MAESTRI, Mário e CANDREVA, Luigi. Antonio Gramsci: vida e obra de um comunista revolucionário. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2007.
[2] MATTOS, Marcelo Badaró. "Os historiadores e os operários: um balanço". In: ____ . (coord.). Greves e repressão policial ao sindicalismo carioca: 1945-1964. Rio de Janeiro: APERJ / FAPERJ, 2003, p. 33.
[3] GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. V. 1. Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 85.
[4] Por exemplo, há muita polêmica em torno das interpretações dos usos de "sociedade civil", "sociedade política" e Estado em Gramsci.
[5] Muitos estudos atendem a esse propósito, entre eles: BARATTA, Giorgio. As rosas e os Cadernos: o pensamento dialógico de Antonio Gramsci. Rio de Janeiro: DP&A, 2004; BIANCHI, Álvaro. O laboratório de Gramsci: filosofia, história e política. São Paulo: Alameda, 2008; COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; LIGUORI, Guido. Roteiros para Gramsci. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007; SEMERARO, Giovanni. Gramsci e a sociedade civil: cultura e educação para a democracia. 2 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.
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