terça-feira, 4 de outubro de 2011

As palavras de Carlos Heitor Cony


Por Marcelo Jucá, do portal Vida Simples

Não são poucos que proclamam Carlos Heitor Cony um poeta do jornalismo. É, também, um grande escritor, intelectual ou boa praça. Mas o próprio personagem de si mesmo é como o início deste parágrafo: Cony tem mesmo qualquer coisa de indefinível.

Ao tratar de assuntos de ordem e progresso, por outro lado, os textos de Cony devem ser lidos com atenção. As palavras são ditas sem censura, mas mesmo assim é possível refletir a respeito dos dizeres escritos. Como quando comentou sobre a instauração da ditadura, escrevendo: "O ato não foi um ato: foi um fato, fato lamentável mas que, justamente por ser um fato, já contém, em si, os germes do antifato que criará o novo fato".

E assim, depois que se começa a entender a primeira pronúncia, basta acompanhar o desenvolver da trama e se surpreender com suas análises e observações da vida contemporânea. Em alguns, pode até doer. E que doa, em linhas gerais, e tumultue as mentes ainda adormecidas de muita gente.

Nascido no Rio de Janeiro em 1926, coleciona desde o primeiro romance (O Ventre) títulos e prestígios que o levariam a receber, em 1996, o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra. A personalidade irrequieta, contudo, não sossegou mesmo depois de tamanha homenagem. Pelo contrário, as palavras continuam a fluir com naturalidade e estilo.

Em março de 2000 Carlos Heitor Cony foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Como se suas palavras e episódios que se confundem com a história do país já não fossem suficientes para lhe conferir esse título de rara nobreza.

A voz e a letra

Desde muito cedo, Cony enfrentou um problema de saúde que prejudicava sua fala. A dificuldade com a dicção de algumas letras apenas o incentivou a optar pela palavra escrita. "Por isso, foi mudo até os 5 anos, não conseguia pronunciar nenhuma palavra, nenhum som articulado. E, quando falou, falou errado (...) falar errado ou nada falar era um recurso para não assumir a vida que não quis nem pediu", reconta no texto "Autorretrato".

Uma operação ainda enquanto cursava o seminário resolveu afinal a complicação. E a partir daquele momento não parou mais de se expressar. Impossível desassociar as curiosas escolhas do jovem: a opção do silêncio quando não havia voz; a liberdade de expressão quando a ganhou; e o uso das palavras que sempre o comunicaram quando tentaram lhe calar.

Agudo e lírico

Por estar imerso na efervescência do Rio dos anos 1960, roçou cotovelos com muitos personagens centrais da cultura brasileira da segunda metade do século 20, e, com isso, teve a oportunidade de conhecer figuras ilustres como Nelson Rodrigues, Paulo Francis, Clarice Lispector, Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade etc.

Escritor seguro, usou a seu favor a prosa fácil e sintética para contar outras histórias de que faziam parte apenas de seus pensamentos, com o cinerromance Paranoia, adaptações de clássicos, biografia e obras infanto-juvenis.

Além disso, Cony é um de nossos mais consistentes ficcionistas. A começar pelo primeiro romance, O Ventre, escrito em 1955, quando Cony, então com 29 anos, o inscreveu para concorrer ao Prêmio Manuel Antônio de Almeida de romance.

Fala, memória

Em 1995, depois de uma mudez de 22 anos, Cony lança Quase Memória, romance de feições machadianas, que mistura memória e ficção para falar desse personagem singular que era o pai do autor. Os sentimentos apresentados, vividos e argumentados revelam muito de Cony, o filho, e a compreensão ou apenas entendimento da cumplicidade sanguínea dessa figura paterna que o autor tanto reivindica, apesar de não ser fã confesso de Freud e suas teorias psicanalíticas.

Quase Memória abriu um novo capítulo na trajetória de Carlos Heitor Cony. Tido pela crítica como figura importante de um certo neorrealismo, corrente que esteve em voga a partir dos anos 1950, o autor se reinventou. O grotesco (ainda que brilhantemente bem-humorado) de Pilatos, ainda da década de 1970, converteu-se, nas páginas do romance que reinaugurou seu percurso, em lirismo. Pois Quase Memória é um romance que herda de Machado de Assis a observação sobre o Rio, a ênfase na memória e a prosa escorreita que deslumbra e deixa com inveja nove entre dez escritores e jornalistas. O livro vendeu bem e trouxe (novamente) a admiração ampla da crítica. A partir dele, Cony iria retomar seu fôlego narrativo em obras como O Adiantado da Hora e A Tarde de Sua Ausência. E assim ele continua, trazendo para a literatura, a crônica e o jornalismo a marca de sua crítica presença e de seu flamejante estilo. Sempre ele mesmo, sempre único.

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