Delírio - Pintor espanhol Salvador Dali explorou o tema em quadro de 1935
Título da obra ilustrativa: Paranoid Visage
Por Christian Dunker, da Revista Cult
“Pai, nunca deixe o computador saber que você está com pressa.” Fui surpreendido por esse comentário no contexto que o leitor pode facilmente adivinhar. Sabemos que as máquinas não têm vontade própria nem desejo de nos prejudicar. Estamos cientes de que o trânsito não piorou repentinamente só porque temos um compromisso, mas, mesmo assim, se os óculos sumiram… é porque alguém pegou de propósito só para nos atrapalhar. O sentimento de perseguição prevalece sobre fatos, motivos ou razões. Ele produz a certeza de que alguém nos subtraiu aquele pedacinho de satisfação que falta para que nossa vida realmente valha a pena e sejamos afinal reconhecidos em nossa predestinada grandiosidade. E, ademais, não é porque você se sente paranoico que não tem alguém de fato te perseguindo.
A paranoia não é apenas compatível com a inteligência, mas pode aparecer como uma elevada capacidade cognitiva. Salvador Dalí propôs que a paranoia era um fenômeno de hipertrofia do conhecimento e que poderia ser usada como método crítico para a criação artística. Lacan, antes de se tornar psicanalista, descreveu uma nova forma de paranoia, mais benigna que a de Kraeplin, que ele chamou de paranoia de autopunição. Nela vigora o sentimento de agressividade e desconfiança que aspira se resolver em um ato que ataca a imagem mesma que o sujeito cultiva como seu ideal – talvez como o assassino de John Lennon.
Biopolítica
A paranoia clínica nos ajuda a entender algo sobre a paranoia sistêmica de nosso cotidiano. Sentimo-nos perseguidos por objetos ou circunstâncias que representam, eles mesmos, “o sistema”. Processos informáticos, sistemas de circulação (como o trânsito) e automatismos mentais (no sentido de discursos que repetimos sem nos darmos conta) são metáforas que sintetizam nossa forma de vida baseada na administração de si como uma empresa, ao modo do que Foucault chamou de biopolítica. Ou seja, sentimos que as máquinas se voltam contra nós não porque elas são alienígenas que representam uma forma de vida destituída de humanidade, graça ou espontaneidade, disposta a vampirizar invejosamente nossas almas, mas porque elas passam a representar o ideal acabado de nós mesmos – como coisas que funcionam ou não funcionam. Coisas que aspiramos que venham nos punir para nos lembrar de nossa humanidade perdida.
Sistemas abstratos falham na única hora em que não podiam falhar. Fazem greve, adquirindo magicamente um desejo de resistência que não encontramos mais em nós mesmos. Dessa forma, não precisamos nos revoltar contra horários de trabalho estúpidos, processos impessoais de exploração ou rotinas imorais de convivência: as máquinas se revoltam por nós. Quanto mais nos sentimos apenas funcionando, de tal modo que nossa vida se resume à integração e ao ajustamento em processos sistêmicos, baseados no risco econômico, na conformidade social ou nas regras de biossegurança, mais a paranoia sistêmica tende a nos lembrar da inversão de papéis que estamos a produzir. Daí que ela seja um fenômeno crescente entre pessoas que vivem suas vidas de forma excessivamente institucionalizada (voluntária ou involuntariamente). Talvez não seja um acaso que um dos paranoicos mais famosos, Daniel P. Schreber, tenha sido um jurista em meio ao altamente complexo, impessoal e burocrático sistema estatal alemão do século 19. Coincidência ou não, seu pai foi um pedagogo crente e confiante nas máquinas de ensino e nos métodos para viver a vida.
Ao contrário da paranoia clínica, o tratamento da paranoia sistêmica é fácil de prescrever, mas difícil de executar. Bastaria recuperar a capacidade de nos reconhecermos nos processos, métodos e sistemas que construímos para nossa própria existência, inventando experiências produtivas de indeterminação. Mas quem vai querer assumir riscos em vez de permanecer casado com sua própria paranoia doméstica?
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