quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A disputa jurídica e literária em torno do espólio de Franz Kafka

Retrato - Kafka, por Andy Warhol (1980)

Por Elif Batuman - tradução de Paulo Migliacci - do Caderno Ilustríssima

RESUMO
O destino do que resta do espólio do escritor Franz Kafka (1883-1924), conservado por seu amigo Max Brod e de conteúdo ainda desconhecido, é objeto de batalhas jurídicas em Israel. A discussão pela posse dos papéis, reivindicados pela Biblioteca Nacional israelense, se desdobra no questionamento do caráter supostamente sionista de sua obra.
Ao longo de sua vida, estima-se que Franz Kafka tenha queimado cerca de 90% de sua obra literária. Depois de sua morte, por tuberculose, aos 41 anos, em 1924, foi encontrada uma carta endereçada ao amigo Max Brod, em sua escrivaninha em Praga. 
"Querido Max", a carta principiava. "Meu último pedido: tudo que eu venha a deixar [...] na forma de diários, manuscritos, cartas (minhas e de terceiros), desenhos e assim por diante, deve ser queimado sem que ninguém leia". Menos de dois meses mais tarde, desconsiderando o pedido de Kafka, Brod assinou contrato para preparar uma edição póstuma dos romances inéditos do amigo.
"O Processo" foi publicado em 1925, seguido por "O Castelo" (1926) e "O Desaparecido" (ou "Amerika", 1927). Em 1939, levando uma valise repleta de papéis de Kafka, Brod partiu para a Palestina, no último trem a deixar Praga, cinco minutos antes que os nazistas fechassem a fronteira tcheca. Graças, em larga medida, aos esforços de Brod, as parcas e enigmáticas obras de Kafka gradualmente vieram a ser reconhecidas como um dos monumentos da literatura do século 20.

DISPUTAS 
O conteúdo da valise de Brod, enquanto isso, se tornou tema de quase 50 anos de disputas judiciais. Cerca de dois terços do espólio acabaram chegando ao acervo da Bodleian Library, na Universidade de Oxford, e o restante -ao que se sabe, desenhos, diários de viagem, cartas e esboços- ficou em poder de Brod até sua morte, em Israel, em 1968; depois passou para o controle de sua secretária e suposta amante, Esther Hoffe.
Após a morte de Esther, aos 101, em 2007, a Biblioteca Nacional de Israel contestou a validade do testamento dela, pelo qual lega o acervo a suas filhas septuagenárias, Eva Hoffe e Ruth Wiesler. A biblioteca alega ter direito aos documentos, nos termos do testamento de Brod. A contenda vem se arrastando pelos tribunais há mais de dois anos.
Caso seja decidida em favor das irmãs, elas estarão livres para rea-lizar o plano declarado de Esther e vender o acervo, parcial ou integralmente, ao Arquivo de Literatura Alemã, em Marbach.
Também poderão manter a porção que acabe não sendo vendida nos múltiplos cofres bancários que abrigam a papelada, na Suíça e em Israel, bem como no apartamento de Tel Aviv que Eva divide com seus incontáveis gatos.

ÚLTIMA VONTADE
A situação vem sendo repetidamente definida como kafkiana, o que reflete, talvez, a estranheza da ideia de que Kafka possa se tornar propriedade privada de alguém. Pois não foi isto que Brod provou ao desconsiderar a última vontade do autor -o fato de que as obras do amigo pertenciam à humanidade?
Em maio, assisti a uma sessão do tribunal distrital de Tel Aviv sobre o destino da papelada. A Biblioteca Nacional de Israel alega que Brod deixou os papéis de Kafka para Esther como testamenteira, não como herdeira, ou seja: depois da morte dela, voltaram a fazer parte do espólio de Brod. O testamento dele, datado de 1961, especifica que seu espólio literário seja colocado "na biblioteca da Universidade Hebraica de Jerusalém, na Biblioteca Municipal de Tel Aviv ou em outro arquivo público em Israel ou no exterior".
A Biblioteca Municipal de Tel Aviv renunciou a quaisquer direitos sobre o espólio, o que torna a biblioteca da Universidade Hebraica de Jerusalém -hoje Biblioteca Nacional de Israel- a única instituição herdeira especificamente nomeada por Brod.
Os argumentos da biblioteca são prejudicados pela carta de doação que Brod assinou em 1952 e que parece transferir diretamente a Esther Hoffe os papéis de Kafka. As irmãs apresentaram ao tribunal uma fotocópia de duas páginas da carta. Em seguida, a Biblioteca Nacional apresentou ao juiz uma versão da mesma carta, mas com quatro páginas, na qual as duas páginas ausentes da versão inicial pareciam esclarecer as limitações na doação de Brod. Quando o tribunal ordenou uma perícia, as irmãs não apresentaram a carta original.

BUSCAS 
Em 2009, o tribunal atendeu ao pedido da Biblioteca Nacional para que a papelada ainda em posse das irmãs fosse inspecionada e catalogada. Alguns indícios sugerem que os cofres bancários contêm outros documentos que esclareceriam as intenções de Brod quanto aos papéis. As irmãs recorreram, alegando que o Estado não tem direito de realizar buscas em propriedade privada para encontrar documentos cuja existência não possa ser comprovada de antemão.
A audiência à qual compareci não trouxe boas notícias para Eva e Ruth. Seu recurso foi recusado pelo Tribunal de Primeira Instância e pela Corte Suprema, no mês seguinte. No final de julho, um cofre bancário em Tel Aviv e os quatro cofres de Zurique foram inspecionados e tiveram seu conteúdo catalogado.
De início, cinco dos cofres bancários em Tel Aviv resistiram à inspeção. Algumas das chaves, obtidas depois de trabalhosas negociações com Eva, não se encaixaram nas fechaduras. Agora, a maioria desses cofres já foi aberta. De acordo com o jornal israelense "Haaretz", o trabalho nos bancos resultou num "grande volume" de material original de Kafka, incluindo cadernos e o manuscrito de um conto já publicado. O conteúdo específico, incluindo quaisquer documentos que possam vir a esclarecer a questão da propriedade, será tornado público depois que a catalogação for concluída -processo que deve durar mais um mês. Enquanto isso, o mundo continua a esperar.

ESPÓLIO 
A maioria dos especialistas concorda que é improvável que o espólio contenha grandes obras desconhecidas. Por outro lado, Kafka muitas vezes incorporava parábolas lapidares e contos curtos em cartas e diários. Brod publicou tudo o que quis, mas talvez restem algumas "pérolas literárias".
O espólio também interessa muito aos historiadores. O mais recente e ambicioso dos biógrafos do escritor, Reiner Stach, já publicou o segundo e o terceiro dos três volumes de sua biografia. Disse-me que há anos espera pelo acesso ao material contido nos cofres, necessário ao volume 1.
Quatro anos depois da morte do escritor, Brod publicou um romance, "O Reino Encantado do Amor", protagonizado por um personagem moribundo e parecido com Kafka, chamado Richard Garta: "um santo de nossa era" cujo irmão vai parar num kibutz na Galileia oriental e desmascara Richard, postumamente, como sionista fervoroso.
Em 1937, Brod escreveu sua biografia de Kafka, que inclui não só percepções brilhantes sobre sua vida e obra como extensas citações das descrições de Richard Garta em "O Reino Encantado do Amor", propondo a tese de que o escritor estava "a caminho" de se tornar "um perfeito santo", e que suas obras mais ambíguas seriam uma visão religiosa sobre o deslocamento transcendental dos judeus na Europa.
Ainda que a perda de Kafka e da Europa, em poucos anos, pudesse ter conduzido Brod ao desespero, em vez disso ele resolveu fazer dela a fundação de um novo futuro, adotando a duradoura determinação de combinar seus dois temas prediletos -Kafka e o sionismo- numa entidade unificada e capaz de engendrar o futuro.

JÓ DO SÉCULO 20 
Em 1941, Brod publicou um texto no jornal "Davar", que circulava em hebraico, no qual relata sua chegada à Palestina "com apenas um plano": "Defender a memória de meu amigo Franz Kafka, neste país que ele não chegou a conhecer".
Tendo transportado os manuscritos a solo sionista, escreveu Brod, ele já conhecera alguns companheiros "para os quais Kafka é mais do que qualquer outro escritor moderno: é o Jó do século 20".
A relação real de Kafka com o sionismo e a cultura judaica, assim como sua relação com quase tudo o mais, era um tanto ambivalente. Ainda que as tentativas de Brod para converter o amigo ao sionismo fossem fonte de tensão nos anos iniciais de sua amizade, com o tempo a simpatia do escritor pela causa cresceu.
Em 1918, ele expressou sua imagem de um kibutz. A alimentação seria composta apenas de pão, tâmaras e água; não haveria tribunais de justiça.

ESCRITOR SIONISTA 
A interpretação que Brod faz de Kafka, de um sionista "manqué", está sob ataque: se não tecnicamente nos Tribunais de Justiça, certamente no tribunal da opinião pública. "Por que o lugar de Kafka é aqui?", pergunta Mark Gelber, professor de literatura na Universidade Ben Gurion, no Negev. "Porque a empreitada sionista era importante para ele."
Muitos críticos europeus, porém -entre os quais Stach-, têm objeções à visão de Kafka como "escritor sionista ou religioso". "O fato de referências especificamente judaicas serem refletidas em suas obras não o torna um protagonista de uma 'literatura judaica', a despeito da crença de Brod", disse-me Stach. Em vez disso, "sua obra existe no contexto da modernidade literária europeia, e seus textos estão entre os documentos fundadores dessa modernidade".
Para os defensores da venda do espólio à biblioteca de Marbach, o debate gira em torno das condições de armazenagem. "Em Israel, não existe um local que permita conservar os documentos tão bem quanto na Alemanha", declarou Eva Hoffe; Stach corrobora que "os estudiosos de toda parte, exceto Israel, concordam" que seria melhor que a papelada ficasse em Marbach. O arquivo alemão já detém os originais de "O Processo", e seria mais conveniente para os estudiosos contar com todo o acervo num só lugar.
Na batalha entre conveniência e ideais, porém, cada lado fala um idioma diferente. Otto Dov Kulka, professor emérito de literatura cuja especialidade é a situação dos judeus durante o Terceiro Reich, vê o argumento de que Israel não dispõe de recursos para cuidar do espólio como "ultrajante e hipócrita".
Oded Hacohen, advogado de Eva Hoffe, sustenta que "posições morais" sobre a Alemanha são irrelevantes. "As pessoas me perguntam se me incomodo se os manuscritos forem parar na Alemanha", disse. "Mas me incomoda muito mais que refugiados do Holocausto não possam pagar suas contas de luz aqui em Israel."

EVA HOFFE 
Numa tarde, durante minha temporada em Tel Aviv, fui ao apartamento de Eva Hoffe, na rua Spinoza, na esperança de encontrá-la em casa e disposta a conversar com a imprensa.
Localizada num silencioso bairro comercial, a rua Spinoza é ladeada por edifícios de estuque e telhado plano. A fachada do número 23, malcuidada e de um rosa desmaiado, fica parcialmente oculta por uma árvore cujas folhas imensas e lustrosas pareciam estar sendo devoradas por alguma praga. Debaixo da árvore, havia um carrinho de supermercado quebrado e uma bicicleta velha. Por trás de uma grande janela que se projetava da parede, protegida por duas camadas de grades metálicas, via-se uma pilha indistinta de gatos. O alvoroço causado por um passarinho numa das árvores fez com que meia dúzia de gatos olhassem para ela, alongando o pescoço. O vento virou e fui atingida por uma onda de fedor.
Dentro do prédio, o cheiro era ainda mais forte. Bati várias vezes na porta. Havia algo ou alguém se movendo lá dentro, mas ninguém atendeu.
Do lado de fora do edifício, me peguei pensando no que Brod teria achado sobre aquilo. A situação me parecia triste. Era triste que Esther tivesse envelhecido e morrido, e que Eva, a linda menina a quem Brod um dia ensinou piano, agora estivesse atraindo manchetes na França como "a septuagenária maníaca por gatos" que armazena os papéis de Kafka em meio a "miasmas felinos e toxoplasmose angorá". Em seu esforço ostensivo por defender sua privacidade e seus interesses financeiros, Eva vem sendo perturbada dia e noite por jornalistas, e presumivelmente acumulando imensas despesas judiciais.
E é inconcebível que Brod tivesse se deliciado em ver os papéis de Kafka como fonte de décadas de cizânia e se tornado objeto de disputa entre advogados. Talvez se sentisse satisfeito pela fama extraordinária conquistada pelo amigo; mas é graças a essa fama que o escritor deixou de pertencer a Brod. Este sempre soube que não seria possível reter Kafka para sempre, mas jamais se dispôs a encarar o fato; o resultado é a situação que temos.

DOCUMENTÁRIO 
Na minha última noite em Tel Aviv, voltei à rua Spinoza, com o cineasta Sagi Bornstein, que está trabalhando num documentário sobre o caso de Kafka. Encontramo-nos no final do quarteirão, ao anoitecer. Bornstein tinha com ele dois membros de sua equipe e um cachorro de porte médio. Sentamo-nos num banco e a equipe filmou nossa conversa, do outro lado da rua, em meio a alguns arbustos.
"Pois então", disse Bornstein. "Quer bater na porta dela?"
Eu não queria, para ser franca, mas trabalho é trabalho. A equipe saiu dos arbustos e nos encaminhamos até a rua Spinoza. As luzes estavam acesas, embora já passasse das 22h. Bornstein me acompanhou até a porta, mas se postou de modo que não pudesse ser visto pelo olho mágico. Disse que, caso Eva o visse, não abriria a porta.
"Não acho que ela vá abrir", eu disse -e tinha razão. Ouvíamos vozes do lado de dentro. "Está no telefone", disse Bornstein.
Saímos de novo e ele pegou seu iPhone e ligou para Hacohen, o advogado de Eva; os dois conversaram por alguns minutos.
"Faz um ano que estamos tendo a mesma conversa", disse Bornstein, ao desligar. "Ele repete que não posso falar com ela agora. Não diz que 'nunca' vai ser possível -diz 'agora, não'. É como 'Diante da Lei'. A mesma coisa, exatamente."

PARÁBOLA 
Bornstein estava aludindo à famosa parábola, em "O Processo", sobre o homem que quer se ver diante da lei, mas tem a entrada recusada pelo porteiro. O homem pergunta se poderá entrar mais tarde. "É possível", diz o porteiro, "mas agora não", explicando que é apenas o primeiro de uma série de porteiros, cada qual mais forte e temível.
O homem passa horas, dias, anos, sentado à porta, esperando admissão perante a lei. Com seu último suspiro, faz uma pergunta ao guarda: se a lei está aberta a todos, por que ninguém procurou aquela porta durante todos aqueles anos? O guarda diz: "Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora vou embora e fecho-a".1
Bornstein me deu carona até em casa, em sua lambreta. Enquanto acelerávamos em meio ao trânsito, eu pensava em "Diante da Lei" -especificamente nos sentimentos que o homem projeta em relação ao porteiro.
"Durante todos esses anos", escreve Kafka, "o homem observa o porteiro quase sem interrupção. Esquece os outros porteiros e este primeiro parece-lhe o único obstáculo para a entrada na lei."
Quem é Eva Hoffe se não o porteiro, a pessoa a quem observamos sem cessar e que nos parece o único obstáculo à nossa compreensão de Kafka? Na verdade, porém, por trás de Eva há uma sucessão de porteiros, o mais importante dos quais é Brod. E então, quando passarmos por ele, teremos de enfrentar o mais poderoso de todos os porteiros, Kafka em pessoa.

FETICHE
"Quando se trata de Kafka, as pessoas querem loucamente o manuscrito original -não uma cópia ou reprodução fac-similar", me disse certa vez Meir Heller, advogado da Biblioteca Nacional de Israel. "No caso da maioria dos escritores, desde que haja cópias, ninguém mais se importa." Transformamos os manuscritos originais em fetiche porque eles parecem nos oferecer acesso ao Kafka definitivo -o Kafka além de Brod.
Isso, porém, também é uma ilusão. Os manuscritos não são definitivos, porque versões definitivas bem ou mal resultam de prazos, revisores, editoras: coisas que Kafka sempre se esforçou em evitar, ou terminou não tendo, devido ao azar, à tuberculose e à Primeira Guerra Mundial (1914-18).
Mesmo assim, como o homem na parábola, sempre retornamos à nossa fé na lei. Nas próximas semanas, um grupo indicado pelo tribunal vai concluir a catalogação dos cofres restantes, bem como do material armazenado no apartamento da rua Spinoza.
É apenas questão de tempo para que uma lista seja divulgada e a maior parte do material seja encaminhada a um ou a outro arquivo. Com o último porteiro fora de caminho, estaremos tão perto de Kafka quanto é possível chegar.

NOTAS
- A parábola encontra-se no capítulo 9 de "O Processo", "Na catedral", e aqui é citada conforme a tradução de Modesto Carone, publicada pela Companhia das Letras.

- Este texto foi originalmente publicado no jornal "The New York Times", em 22/9.

- O conteúdo da valise de Brod se tornou tema de quase 50 anos de disputas judiciais. Cerca de dois terços do espólio acabaram chegando ao acervo da Bodleian Library, na Universidade de Oxford, e o restante ficou em poder do amigo até sua morte, em Israel, em 1968

- A maioria dos especialistas concorda que é improvável que o espólio contenha grandes obras de Kafka desconhecidas. Por outro lado, ele muitas vezes incorporava parábolas lapidares e contos curtos em cartas e diários

- "O fato de referências judaicas serem refletidas em suas obras não o torna um protagonista de uma 'literatura judaica', a despeito da crença de Brod", afirma o crítico Reiner Stach. "Sua obra existe no contexto da modernidade literária europeia"

- Por trás de Eva Hoffe há uma sucessão de porteiros, o mais importante dos quais é Max Brod. E então, quando passarmos por ele, teremos de enfrentar o mais poderoso de todos os porteiros, Franz Kafka em pessoa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário