quarta-feira, 13 de outubro de 2010

A incompreensibilidade do mal


Por Franklin Leopoldo e Silva, da Revista Cult

Se a filosofia é a tentativa de compreensão da condição humana, então a questão do mal ocupa o centro das preocupações – e a marca profunda que a tradição socrático-platônica deixou na constituição da herança filosófica bastaria para atestá-lo. Mesmo quando o questionamento se dá por via de uma racionalidade mais formal e orientada por paradigmas que desprezam as orientações ditas “metafísicas”, o mal não deixa de aparecer como uma constatação inseparável de certa perplexidade, oculta sob a aceitação dos limites da razão e do rigor da argumentação. Mais do que isso, ainda que o cinismo, contemporaneamente tão difundido, nos faça aceitar o mal como realidade dada ou como banalidade, essa pretensa certeza primária não nos isenta do incômodo presente na má-fé inerente ao conformismo e à indiferença ética.

Concepções tradicionais do bem e do mal
A fabulação mítico-religiosa, de que fala Bergson em As Duas Fontes da Moral e da Religião, isto é, o conjunto de representações imaginárias que procuram responder a questões situadas além do alcance da vocação pragmática do entendimento, não possuiria função explicativa, mas, sobretudo, vital: possibilitar a convivência com os acontecimentos incompreensíveis que nos afetam, que nos transformam, que nos fazem sofrer e que podem nos destruir. As adversidades naturais, a ira dos deuses, a culpa originária, os ciclos em que se manifesta a fatalidade: tudo aquilo que não podemos prever ou controlar naturalmente, mas que podemos, talvez eventualmente, conjurar por meio da invocação de forças que nos superam e da observância de interditos que nos lembram da posição relativa que ocupamos no universo.

Mas há também as decisões e ações que derivam de nossa liberdade. Desde Aristóteles, persiste a ideia de que a prática é muito mais complexa do que a teoria, porque no universo das ações não podemos mobilizar e esgotar todos os elementos que nos proporcionariam a certeza do acerto das escolhas. O bem não é demonstrável como a verdade. Tudo que podemos fazer é contar com um discernimento, espécie de sabedoria prática, que empregamos na tentativa de que nossas opções se orientem pelo critério do melhor possível, sem esperar a segurança proporcionada pela dedução da verdade teórica. Por isso o mal nos espreita como presença proporcional ao grau de imprudência a que estamos, inevitavelmente, sujeitos.

A filosofia cristã enfrenta ainda outra dificuldade. Como Deus só pode ser considerado como o bem e causa do bem, a criação está necessariamente impregnada de bondade e perfeição, o que torna o mal inexplicável do ponto de vista da criação divina. A rigor, o mal não deveria existir. Para dar conta de sua presença na experiência humana, Santo Agostinho apela para a diferença entre o relativo e o absoluto. Criaturas limitadas que somos, e inclinadas à corrupção desde o pecado original, não discernimos, em nossas escolhas, o bem absoluto que deveria ser a nossa meta, mas nos contentamos com os bens relativos, exacerbando-lhes a dimensão e o significado, de modo que apareçam como absolutos. Em outras palavras, não distinguimos, via de regra, o fim supremo dos meios relativos pelos quais poderíamos atingi-lo. Assim nunca escolhemos o mal, porque ele em si mesmo não existe; escolhemos um bem menor e o elegemos como o que de maior poderíamos desejar.

O mal no pensamento cartesiano

No racionalismo cartesiano encontramos uma versão moderna dessa concepção. A trajetória de reconstrução da filosofia em Descartes é bem conhecida: a afirmação da existência do eu pensante como evidência que resiste a qualquer dúvida; a prova da existência de Deus, princípio da verdade por ser a garantia das representações claras e distintas a que chega o sujeito. Diante de tão fortes referências metodológicas e metafísicas, como o erro ainda pode acontecer? De modo mais amplo: a partir de Deus como afirmação absoluta da verdade e do bem, como pode ter lugar a negatividade do erro e do mal? A solução de Descartes é engenhosa, muito significativa do ponto de vista da promoção de valores modernos, e consiste numa aplicação peculiar do racionalismo como estratégia de justificação. A faculdade pela qual nos assemelhamos a Deus, já que fomos feitos à sua imagem, não é, como se poderia pensar, o entendimento, e sim a vontade, cujos limites não se pode assinalar, já que o poder de afirmar e de negar estende-se indefinidamente. Se acentuarmos os traços dessa concepção, poderemos dizer que a liberdade humana é infinita. Isso produz um desequilíbrio: sendo o entendimento finito – e mesmo bastante limitado –, a liberdade, isto é, a vontade ilimitada, nos leva a produzir juízos sobre coisas que estão além da compreensão intelectual, caso em que podemos errar e pecar.

A tese é paradoxal: aquilo que nos faz semelhantes a Deus é também aquilo que nos leva ao erro e ao pecado. Mas é também uma estratégia eficiente quanto ao poder explicativo da dificuldade em pauta: Deus nada tem que ver com o erro e o mal, já que não podemos contestar a dimensão finita do entendimento, o que é natural e coerente em criaturas finitas; e muito menos podemos lamentar a liberdade absoluta, que é em si mesma um bem, pois nos remete à nossa origem divina. Com efeito, a desproporção entre intelecto limitado e vontade ilimitada diz muito sobre a nossa natureza: somos criaturas e, nesse sentido, não somos perfeitos; mas somos criaturas de Deus e, nesse sentido, trazemos em nós a marca da perfeição do criador. Ontologicamente, a natureza da criatura traz em si uma divisão: de um lado, a absoluta perfeição do criador, isto é, sua realidade infinita; de outro, o nada de que fomos feitos, ausência de ser e negatividade. Isso permite entender por que podemos desejar tudo e podemos saber muito pouco. E nos ajuda a entender também o aspecto ético da divisão que nos afeta: o ser em plenitude, isto é, o bem, e o não ser, o nada, ausência do bem.

Mas essa desproporção não nos condena ao erro e ao mal. A completa liberdade de que dispomos não apenas nos conduz a afirmar ou a negar qualquer coisa, mas também a suspender o juízo nas circunstâncias em que o entendimento não oferece suficiente respaldo para emitir um juízo. Lembremo-nos do principal preceito metódico: só devo aceitar como verdade representações claras e distintas. Quando não disponho delas, a prudência recomenda permanecer no estado de suspensão de juízo, para não cair em erro. Ora, há que se observar que as verdades da fé estão além do entendimento e, no entanto, são necessárias para orientar eticamente a conduta, pois justificam escolhas e ações que muitas vezes não poderiam ser submetidas à racionalidade do juízo objetivo. Nesse caso, se admito que tais verdades se situam além do poder de conhecimento e, portanto, além da dúvida, devo aceitá-las por via de outros critérios, aqueles que regulam a crença, mesmo porque os fundamentos da crença, como por exemplo a existência de Deus, podem ser submetidos ao crivo da razão.

Aparência racional à prática do mal

Como se vê, a solução cartesiana consiste em mostrar que a liberdade de errar é também a liberdade de não errar; que o estatuto do mal é negativo, posto que provém do que em nós se opõe ao ser e ao bem; e que, se a liberdade for regulada pela razão, valorizaremos aquilo que em nós é positivo, isto é, a verdade e o bem. Esse poder atribuído à razão é coerente com um humanismo racionalista. Mas a experiência histórica indica que a liberdade pode produzir opções que a razão é levada a justificar a posteriori, fenômeno que se designa como racionalização e que, paradoxalmente, faz com que a razão justifique condutas irracionais, caracterizadas pela escolha do mal. Isso porque do fato de que a razão pode limitar a liberdade não decorre que sempre o faça e, portanto, a razão pode desempenhar nessa relação outro papel: conferir aparência racional à prática do mal.

Mas isso não ocorre apenas por via de um equívoco racional; a causa é também uma contradição que pode acontecer no uso da liberdade, quando o indivíduo abdica de sua condição de sujeito da própria liberdade, entregando-a a poderes que o sobrepujam absolutamente. Os grandes exemplos, como se sabe, foram as manifestações de violência do século 20 que produziram os genocídios, isto é, o mal racionalmente administrado: Auschwitz, Gulags, Hiroshima.

Perplexidade e ação
Tais experiências levam-nos a duvidar de que o mal seja apenas a ausência de ser e de realidade, que ele só possa ser indiretamente definido como falta ou privação. Os argumentos racionais, nesse caso, não logram se sobrepor à realidade dos fatos e a situações em que o mal aparece não apenas como dotado de efetividade, mas até mesmo tendendo para o absoluto. Isso acontece principalmente quando o mal governa as relações humanas. O que há de perturbador, nos episódios que citamos, é a dificuldade em distinguir a loucura da razão, a civilização da barbárie, já que eles parecem ser uma fantástica confluência dos dois elementos.

Assim, é a reflexão que nos leva ao espanto, e é este que nos leva às interrogações angustiadas. Como poderíamos reduzir a meras aparências ações como a tortura, o assassinato, a opressão e a dilapidação da dignidade? Se nos sentimos constrangidos e incomodados quando temos de admitir a naturalidade de catástrofes como inundações ou terremotos, como poderíamos considerar que o sofrimento que um ser humano inflige a outro seria apenas a aparência localizada do bem em sua totalidade? Se temos dificuldade em admitir que o castigo pode ser fruto da justiça divina, como poderíamos entender que a dor e a morte provocadas pelo próprio homem possam estar inseridas numa arquitetônica racional do mundo?

Talvez devamos aceitar o caráter incompreensível do mal, isto é, que, diante dele, o que está em jogo não é explicação ou compreensão, mas sim revolta ou resignação. E que o mal e o bem, na medida em que se referem à nossa liberdade, dizem respeito à afetividade, à relação não reflexiva que mantemos com nós mesmos e com o que nos transcende, sejam os outros, seja Deus. Nesse tipo de relação, em que a negatividade aparece por vezes como uma potência assustadora, é provável que a perplexidade predomine sobre o entendimento, mas é possível também que ela nos mova e nos faça agir tanto ou mais do que o conhecimento.
 

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