Por Perry Anderson, da Revista Piauí
O antropólogo mais famoso do século XX poderia intimidar qualquer candidato a biógrafo. Claude Lévi-Strauss, que morreu há dois anos, negava que sua pessoa tivesse qualquer interesse. Dizia que lembrava pouco de seu passado e tinha a sensação de que não havia escrito os próprios livros. Segundo suas palavras, ele era apenas uma “encruzilhada passiva” onde “coisas aconteciam”: “Eu nunca tive, e ainda não tenho, a percepção de sentir minha identidade pessoal. Eu me vejo como o lugar onde alguma coisa está acontecendo, mas não existe um ‘eu’.”
Essas afirmativas tampouco eram meras confissões pessoais. Seu sistema intelectual baseava-se numa rejeição radical da significação do sujeito e até mesmo de sua realidade. Essa dupla barreira seria obstáculo suficiente para uma biografia. Mas há outro obstáculo, ainda mais difícil: paradoxalmente, Lévi-Strauss é também autor de um livro de memórias, Tristes Trópicos, uma obra-prima literária incontestável, na qual ele definiu as experiências que considerava decisivas de sua vida. Quem poderia fazer melhor? Com certeza, nenhum cronista convencional. Na cultura francesa, onde há muito tempo a arte da biografia é notoriamente fraca, a única tentativa de traçar um retrato de corpo inteiro do antropólogo, feita por Denis Bertholet em 2003, é testemunho suficiente dessa deficiência.
Patrick Wilcken desafiou todas as dificuldades. A obra "Claude Lévi-Strauss: O Poeta no Laboratório" é ao mesmo tempo uma biografia e um estudo crítico do pensador do mais alto nível. Gracioso e vívido como narrativa, é também um modelo de apreciação intelectual. Livre tanto do impulso reverencial como da tentação de desmascarar, Wilcken produziu um relato maravilhosamente tranquilo e lúcido da vida e do pensamento de seu biografado.
A história que ele conta pode ser dividida em cinco partes. Nascido em 1908, filho de um pintor – que logo ficou démodé– e apreciador de música, Lévi-Strauss foi um socialista militante em sua juventude. Atraído pelas artes, formou-se em filosofia numa época de fermento vanguardista e ausência de fronteiras disciplinares rígidas. Seu primeiro artigo publicado foi sobre Babeuf, o precursor do comunismo, e sua dissertação, sobre o marxismo. Aos 26 anos, era professor de um liceu provincial quando lhe ofereceram subitamente a oportunidade de se juntar a um pequeno grupo de estudiosos franceses, do qual fazia parte Fernand Braudel, que iria dar aulas na recém-fundada Universidade de São Paulo. O patrono deste convite foi seu ex-orientador, o sociólogo Célestin Bouglé, colaborador de Émile Durkheim, e a matéria que escolheu para lecionar em São Paulo foi sociologia.
Mais tarde, ele iniciaria Tristes Trópicos, com as célebres palavras: “Odeio as viagens e os exploradores.” Mas isso era pura provocação. Entediado e inquieto na França, como muitos intelectuais de sua geração (André Malraux e Paul Nizan já tinham feito seus nomes com façanhas no exterior), Lévi-Strauss confessou honestamente em entrevista a Didier Eribon: “Eu estava em um estado de excitação intelectual intensa. Sentia-me revivendo as aventuras dos primeiros viajantes do século XVI. Por minha conta, descobria o Novo Mundo. Tudo me parecia fabuloso: as paisagens, os animais, as plantas.”
Nesse ponto, Wilcken, autor de um belo estudo sobre a corte portuguesa no Rio de Janeiro, tem a enorme vantagem de ter um conhecimento profundo do país em que Lévi-Strauss desembarcou. Pela primeira vez, a experiência que o transformou em antropólogo é contextualizada de forma mais adequada. Na França, a sociologia de Durkheim, e depois a de Mauss, tratava indiferentemente de sociedades modernas e “primitivas” – isto é, pré-letradas –, de um modo que o trabalho de mentalidade mais histórica de Weber ou Sombart na Alemanha não se permitia. A etnologia era mais um campo frouxo da sociologia do que uma disciplina distinta. Desse modo, o estudo de tribos locais era, em certo sentido, o caminho óbvio para Lévi-Strauss, se ele quisesse capitalizar seu tempo no Brasil para avançar sua carreira na França. Também se sentia atraídopelas artes – não demorou para que ele e sua esposa passassem a frequentar a roda em torno de Mário de Andrade, poeta líder do Brasil modernista, de quem o casal se tornou amigo – e alimentava ambições políticas – embora indiferentes à cena local, onde um levante comunista explodiu após sua chegada e uma ditadura modelada nos regimes de Salazar e Mussolini se instalou não muito tempo depois. Em 1936, quando a Frente Popular chegou ao poder na França, ele ficou decepcionado por não ser chamado pelo Ministério socialista. Foi então que decidiu abandonar a ideia de uma carreira política. A exploração etnográfica do interior do Brasil tornou-se a alternativa.
Vinte anos mais tarde, com a publicação de Tristes Trópicos, as incursões aos kadiwéu, bororo e nambikwara se tornaram lendárias. A reconstrução meticulosa que Wilcken faz dessas incursões, objetiva mas nunca insensível, mostra a realidade. Pelos padrões contemporâneos, foram visitas breves, itinerantes, que envolveram tanto um trabalho de conjectura quanto de pesquisa de campo, num sentido moderno. Pouco familiarizado com o português, Lévi-Strauss não conhecia nenhuma língua indígena e não passou muito tempo com qualquer dos grupos nativos que encontrou. Tampouco sua expedição principal, em 1938, teve alguma semelhança com a peregrinação solitária implicitamente sugerida por seu livro de memórias. Nas palavras de Wilcken:
Quando o grupo e os equipamentos foram finalmente reunidos em campos dos arredores de Cuiabá, os animais de carga, as caixas, os sacos e as selas, os homens barbudos de calções folgados de algodão e botas de couro pareciam mais uma feira ambulante de interior do que uma expedição científica. Nas páginas de Tristes Trópicos, esse grande elenco de apoio muitas vezes desaparece no fundo da cena. Na realidade, a expedição da serra do Norte estava tão longe do padrão etnográfico de Malinowski – o solitário do início do século xx que aprendia meticulosamente a língua local e mergulhava em sua cultura – quanto possível. Em contraste com a jornada conradiana aos extremos da humanidade, na maior parte do tempo, o séquito de Lévi-Strauss era mais numeroso do que os nativos que ele tentava estudar.
Mas o tom de Wilcken não é reprovador. Quaisquer que sejam suas falhas, a expedição não foi somente complicada e perigosa, mas produtiva, fornecendo a Lévi-Strauss uma quantidade de hipóteses imaginativas que lhe seriam muito úteis quando chegou ao seu verdadeiro campo de pesquisa, milhares de quilômetros longe dos arbustos ou da selva.
De volta à França na primavera de 1939, com 30 anos recém-completados e o cérebro ainda ocupado com o que tinha visto, estava tão despolitizado que não percebeu a iminência da guerra na Europa, nem se deu conta das realidades da vitória nazista e do governo colaboracionista de Vichy: em 1940, tentou – e felizmente não conseguiu – voltar para a Paris ocupada como professor, quando os judeus já estavam em risco. Demitido pelo regime de Pétain, teve o visto de regresso ao Brasil negado, mas conseguiu um convite da New School for Social Research de Nova York, e (ajudado pelas conexões de uma tia rica nos Estados Unidos) partiu de Marselha em um navio onde estavam, entre outros refugiados, André Breton e Victor Serge, aventura retratada em um dos episódios mais saborosos de Tristes Trópicos. Ao chegar finalmente a Nova York, Manhattan foi, nas palavras de Wilcken, mais do que o Mato Grosso, “seu verdadeiro choque cultural”.
Ali, em meio a uma comunidade de expatriados franceses bem maior do que a de São Paulo, ele se incorporou ao ambiente vanguardista dos surrealistas – Max Ernst, Yves Tanguy, André Masson, Roberto Matta, para não falar do próprio Breton – para os quais a antropologia e a psicanálise eram as chaves para as fontes inconscientes da existência. Ele havia pintado quando menino; no Brasil, começara a escrever uma peça no espírito de Corneille; na França, iniciara um romance no estilo de Conrad. Em Nova York, desistiu dessas ambições, mas aprendeu a investir a sensibilidade que estava por trás delas (agora moduladas pelo novo cenário: “Os surrealistas enriqueceram e refinaram meu gosto estético”) em formas que seriam discursivas, em vez de criativas.
A mudança decisiva, no entanto, veio de duas outras direções: o encontro com a riqueza empírica da etnologia americana, em grande parte reunida por Franz Boas, que ainda estava vivo em Nova York, e as perspectivas teóricas do círculo linguístico de Praga, trazidas para a América por Roman Jakobson, que se tornou seu amigo íntimo. Nada disso era conhecido na França. Enquanto dominava a primeira na Biblioteca Pública de Nova York, Lévi-Strauss absorvia a segunda, que passou a ser a estrutura fundamental de seu pensamento a partir de então.
Cerca de sete anos mais tarde – era então adido cultural francês, instalado numa mansão da Quinta Avenida – sua fusão das duas rendeu As Estruturas Elementares do Parentesco, publicado logo após seu retorno a Paris, em 1948. Nesse enorme compêndio, que procurava sistematizar em um conjunto de padrões inter-relacionados uma vasta gama de sistemas de matrimônio do mundo pré-letrado conhecido, ele sustentava que o tabu do incesto era um universal antropológico que marcava a ruptura entre a natureza e a cultura que tornava possível a sociedade humana. Embora nem todos os achados sobre os quais o livro se baseava fossem corretos, e nem todas as suas interpretações fossem sempre confiáveis, nada como as Estruturas Elementares havia sido tentado antes. Nas palavras de Wilcken: “Sua originalidade, a firmeza de suas afirmações, o senso de uma reorientação teórica há muito tempo necessária fizeram dele um ponto de referência de seu tempo.”
A maior parte dessa obra talvez fosse impenetravelmente técnica, mas sua tese central era de fácil compreensão, por incrível que pareça. Demoraria algumas décadas para que sua premissa básica se mostrasse errada: historicamente, não houve proibição universal do incesto e algumas sociedades, como a Pérsia e os Egito antigos, até mesmo o fruíam.
Quando Estruturas Elementares foi publicado, Lévi-Strauss ainda era, do ponto de vista acadêmico, um estranho na França. O livro ganhou fortuna pública graças a uma resenha brilhante feita em Les Temps Modernes por Simone de Beauvoir, outrora colega de Lévi-Strauss, que havia consultado o manuscrito ao escrever O Segundo Sexo. Sua aceitação acadêmica foi mais lenta. Tendo sido rejeitado duas vezes pelo Collège de France, Lévi-Strauss mudou seu foco do parentesco para os mitos e, em 1952, publicou seu primeiro ensaio voltado diretamente para um público mais amplo, Raça e História. Nele, esvaziava a pretensão ocidental de superioridade cognitiva sobre as sociedades pré-letradas; a chegada da indústria e da ciência modernas era resultado de combinações aleatórias na mesa de roleta do tempo, em vez de consequência de alguma dinâmica interna histórica.
Três anos depois, veio a revelação de seu excepcional talento literário, com os soturnos fogos de artifício de Tristes Trópicos– uma meditação filosófica tanto quanto, ou mais do que, um livro de memórias antropológicas. Sob o signo de Lucrécio e Rousseau, em vez de Durkheim, ele mostrava seu período no Brasil como uma destruição implacável de ilusões românticas, mas que era também um rito de passagem fabuloso para verdades sobre a humanidade e seu lugar no universo, reprimida pela húbris metropolitana. De sua segunda e mais significativa formação como etnólogo, em Nova York, ele não dizia nada. Para o método, reconhecia três “amantes”: Marx, Freud e a geologia, cada um explorando estratos escondidos sob a superfície da realidade. Em 1955, tratava-se de um credo que não diminuía o charme de seu livro. Por unanimidade, e compreensivelmente, Tristes Trópicos foi saudado como um clássico das letras francesas.
Naquela época, impressiona como eram íntimos os laços – por mais paradoxal que possa parecer, tendo em vista o antagonismo entre o estruturalismo e o existencialismo – que ligavam Lévi-Strauss à usina da cultura de esquerda liderada por Sartre. Não foi somente Simone de Beauvoir que se esforçou para pôr Estruturas Elementares no mapa. O Les Temps Modernes publicou um capítulo prévio de Tristes Trópicos, assim como textos posteriores bem conhecidos, como “A gesta de Asdiwal”.
A entrada de Lévi-Strauss no Collège de France, dez anos após sua primeira tentativa, foi orquestrada por Merleau-Ponty. A sensibilidade de Lévi-Strauss para perceber de onde sopravam os ventos desempenhou sem dúvida um papel nisso. Mas era também uma configuração intelectual não rara da Quarta República, marcada por alianças muitas vezes imprevisíveis e debates calorosos, que cairiam abruptamente em declínio com a instauração da Quinta República e a ascensão de De Gaulle ao poder.
Com essa mudança de regime, nasceu o estruturalismo propriamente dito. Em 1958, Lévi-Strauss publicou seu manifesto, na coletânea de ensaios intitulada Antropologia Estrutural. “Durante séculos as humanidades e as ciências sociais se resignaram a contemplar o mundo das ciências naturais e exatas como uma espécie de paraíso onde nunca entrariam”, ele declarou, mas “de repente, há uma pequena porta que se abre entre os dois campos, e é a linguística que fez isso”. Não apenas mitos ou lendas populares, mas, em princípio, qualquer fenômeno do mundo social ou cultural poderia ser mapeado e decodificado com o rigor dos fonemas. Desde Comte, o pensamento francês sempre teve uma vertente significativa de cientificismo. Ao anunciar uma antropologia equipada com a autoridade da linguística, Lévi-Strauss tentava torná-la dominante.
Por um tempo, ele fez isso com considerável sucesso, enquanto espíritos empreendedores se esforçavam para emular ou estender seu programa a uma ampla gama de áreas do conhecimento, enquanto ele consolidava sua hegemonia a partir de seu posto de comando no ápice da erudição francesa. Em uma performance de virtuose, O Pensamento Selvagem (1962) pretendia mostrar, simultaneamente, o estruturalismo inato dos sistemas classificatórios das sociedades pré-letradas e a futilidade das pretensões do marxismo – para não falar do existencialismo –, na pessoa de Sartre. Tratava-se, no entanto, de um edifício teórico que repousava sobre um alicerce frágil: a noção de que a linguagem oferecia uma analogia para o estudo de qualquer outro campo da vida social. O próprio Saussure, criador da linguística estrutural, havia expressamente advertido contra essa ilusão. Assim como a genética de hoje gerou esperançosos aplicadores da teoria da evolução a todos os campos imagináveis das humanidades e ciências sociais, independentemente da falta de qualquer outra conexão entre elas que não seja metafórica, do mesmo modo, há meio século, a linguística cativou uma ampla gama de entusiastas que viram nela o “abre-te, sésamo” para a compreensão do mundo.
A contribuição do próprio Lévi-Strauss para essa expansão foi Mitológicas (1964-71), sua monumental tetralogia sobre os sistemas de mitos nas Américas: cerca de 2 mil páginas que supostamente põem a nu as propriedades universais da mente humana, idênticas nos mitos e seus analistas, desdobradas por ele em uma composição científica, melódica e autorreferente como a música.
No final dos anos 70, a onda estruturalista havia refluído e, por fim, Lévi-Strauss recuou das extravagâncias que havia ajudado a lançar, observando – quinze anos depois de O Pensamento Selvagem– queo estruturalismo não era mais que uma “imitação muito fraca e pálida do que as ciências duras estão fazendo”. E afirmou que havia simplesmente tentado encontrar algum tipo de ordem por trás da aparente desordem de seus materiais, sem impor quaisquer conclusões a eles.
Mais proeminente do que a retração teórica, talvez apenas tática, foi seu retrocesso político e cultural. Na velhice, o outrora simpatizante do socialismo e do surrealismo tornou-se cada vez mais conservador – um dos pilares da Académie Française, inimigo da arte moderna, eleitor moderado, admirador de Gobineau. Ainda assim, eram preferências de fundo, nas quais Lévi-Strauss não insistia muito. A estrela subsequente do estruturalismo inverteu essa trajetória, mas sem efeito intelectual melhor: Michel Foucault passou quase sem intervalo de uma “nova filosofia” bem-vista no Palácio do Eliseu [sede da Presidência da República] a uma “justiça popular” pregada pela Gauche Prolétarienne. Lévi-Strauss certamente sabia como promover a divulgação de suas ideias e defender seus próprios interesses, mas fazia isso dentro dos limites de certa reserva tradicional e dignidade antiquada. As piruetas do jovem exibicionista e sua sede de publicidade eram estranhas a ele. Consciente de como eram arbitrárias as arqueologias de Foucault, ele negou qualquer apoio institucional ao seu admirador.
O veredicto final do delicado e comovente livro de Patrick Wilcken é impecável. “Em um mundo de áreas do conhecimento cada vez mais especializadas, talvez não venha nunca mais a existir um corpo de trabalho de alcance e ambição tão estimulantes”; mas embora “as ideias de Lévi-Strauss tivessem grande amplitude e abrangência”, elas estavam em última análise instaladas em um “espaço intelectualmente claustrofóbico” – um “empreendimento de um único homem que se tornou tão absolutamente idiossincrático que era impossível se basear nele”. Como sistema, “o estruturalismo implicava profundidade, mas com seu jogo de signos sem referência, muitas vezes se parecia com derrapagem sobre vidro polido”. No entanto, “o que dava vida à produção de Lévi-Strauss, e introduzia o lirismo que confundiu seus críticos anglo-saxônicos, era um profundo interesse pela expressão e apreciação estética que corria em paralelocom o lado cognitivo de seu trabalho”. O antropólogo se via como um artista manqué. Mas Lévi-Strauss não era apenas um grande colecionador e tecelão de narrativas – “os mitos são objetos muito lindos”, observou ele, “e nunca nos cansamos de contemplá-los, manipulá-los”. O segundo verbo fala por si mesmo. Ele foi também um grande escritor na arte, longe de ser menor, da retórica.
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