quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Gal Costa - A Voz e o Computador

Por Pedro Alexandre Sanches, da Revista Bravo
Crédito da Foto: Gabriel Rinaldi

Até 2011, o mais célebre duelo com a tecnologia protagonizado por Gal Costa se chamava Meu Nome É Gal. A canção, de Roberto e Erasmo Carlos, está gravada na última faixa de seu disco de 1979, Gal Tropical. Então com 34 anos, ela usava a composição para esgrimir a própria voz com os acordes da guitarra de Robertinho de Recife, a garganta humana desafiando e superando os sons agudos produzidos pelo instrumento. Hoje com 66 anos, a cantora baiana atualiza a batalha de Meu Nome É Gal em seu novo trabalho, Recanto, um álbum todo tomado pelo confronto entre mulher e computador. Onde a guitarra elétrica esteve um dia, agora se encontram softwares como o Auto-Tune (um programa afinador de vozes e instrumentos), sintetizadores e baterias eletrônicas. Das 11 faixas que integram o CD, apenas uma não se utiliza desses recursos.
Mas a mais poderosa das máquinas com que Gal digladia é um homem: Caetano Veloso. Principal porta-voz do compositor conterrâneo desde as primeiras gravações, em 1965, ela havia registrado até aqui mais de oito dezenas de canções do amigo. Recanto expande a parceria: é o primeiro álbum de Gal formado exclusivamente por criações inéditas de Caetano. Aos 69 anos, o músico também atua como diretor artístico e produtor do projeto, dividindo a segunda função com seu filho mais velho, Moreno Veloso. Só havia ocupado tais posições num disco anterior de Gal, em 1974, o hippie e idílico Cantar.
De sonoridade bastante contemporânea, Recanto conduz a intérprete a um ambiente parecido com o que Caetano construiu em seus dois discos solo de estúdio mais recentes, Cê (2006) e Zii e Zie – Transambas (2009), invadidos por músicos da geração de seus filhos. Entre os jovens alquimistas que acompanham e modernizam a voz da “Vaca Profana” (como Caetano a nomeou em 1984), estão Moreno e Zeca Veloso (outro filho do baiano), Kassin, Pedro Sá, Davi Moraes (filho do cantor Moraes Moreira) e Donatinho (filho do pianista João Donato). Na seção “velha guarda”, bem mais discreta do que a outra, figuram instrumentistas de gerações anteriores, como Jaques Morelenbaum, ao violoncelo.
Quatro décadas e meia atrás, a guerra entre as violas enluaradas e as guitarras envenenadas marcou a geração heroica da MPB universitária. Ao se centrar no embate voz-computador, Recanto alude àquele período. Mas os tempos de 1967 estão mortos, e o novo confronto evoca mais uma proposta de pacto do que uma declaração de guerra. Por isso, talvez seja mais preciso falarmos em diálogo, e não em duelo, batalha, embate ou confronto.
A faixa Autotune Autoerótico é a que melhor traduz o espírito do disco. Gal a inicia forçando a voz, de modo a lembrar uma matrona do Recôncavo Baiano. A garganta experimenta andar na corda bamba entre a afinação e a desafinação e termina reprocessada pelo Auto-Tune, num efeito robótico que a veterana cantora norte-americana Cher inaugurou em 1998, no álbum bem mais deslavadamente pop Believe. “Não, o Autotune não basta pra fazer o canto andar/ pelos caminhos que levam à grande beleza”, avisa Gal, de maneira espertamente contraditória. Por um lado, desanca o afinador de voz. Por outro, faz uso dele para obter efeitos que não alcançaria naturalmente.
Há, no entanto, muitos outros núcleos de tensão criativa em Recanto, e dois dos maiores são Miami Maculelê e Neguinho. O primeiro obriga Gal a brincar com os sons eletrônicos e extremamente pop do funk carioca e dos fliperamas, enquanto a voz faz malabarismos com as sílabas de “são Dimas, Robin Hood e o anjo 45/ todos dançando comigo”. As citações conectam o Jorge Ben de 1969 (“Charles, anjo 45/ protetor dos fracos e dos oprimidos/ Robin Hood dos morros, rei da malandragem”) com os Racionais MC’s de 2002 (“aos 45 do segundo, arrependido/ é Dimas, o bandido/ primeiro vida loka da história”). O compositor baiano segue Mano Brown e equipara são Dimas, “o bom ladrão” do imaginário cristão, aos meninos das favelas brasileiras, enquanto prega a reconciliação entre o hip-hop paulistano e o funk carioca.
Neguinho é provavelmente o maior pulo do gato de Caetano no novo disco. A princípio, os versos parecem se referir a alguém que não é nem o compositor, nem a cantora, nem o público supostamente refinado que costuma acompanhá-los – uma referência muitas vezes crítica: “Neguinho compra três TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz/ (...) neguinho vai pra Europa, States, Disney e volta cheio de si/ neguinho cata lixo no Jardim Gramacho”. Ao final, esclarece-se o enigma (“neguinho que eu falo é nós”) e a crítica vira autocrítica.
Outro ponto que aguça a reflexão em Recanto diz respeito tanto ao autor quanto a Gal (ou a qualquer um que os ouve). No disco Cê, Caetano despistava as dores de envelhecer com afirmações de potência sexual. Desta vez, porém, tais dores aparecem explícitas. “Tudo dói”, frase repetida inúmeras vezes pela cantora na faixa de mesmo nome, é exemplo que soaria quase engraçado, não fosse o tom soturno da gravação e os versos amaros: “Viver é um desastre que sucede a alguns”.

Tristeza Profunda
Se em 2005 a intérprete gravara uma composição de Caetano denominada Luto, hoje a canção Madre Deus vai mais longe. Mira a morte de frente, sem meios-tons, sob melodia monótona revestida de ruídos ríspidos, desagradáveis: “Meu corpo todo desmede-se/ despede-se de si”, “frente ao infindo/ costas contra o planeta/ já sou a seta sem direção/ instintos e sentidos extintos/ mas sei-me indo”.
Os temas de morte e envelhecimento são os mais nítidos, mas não os únicos a afirmar que a tristeza é um dos (muitos) legados tropicalistas – não estamos mais nos anos 1990, quando músicas como A Luz de Tieta (1996) diluíam a melancolia em profissão de fé na alegria feroz da axé music. Nessa linha, Recanto Escuro constitui outro dos núcleos nervosos do CD. A voz potente de Gal e a linda e grave melodia são perturbadas o tempo todo por interferências de rádio, ou agulhas raspando no vinil, ou coisa que o valha. “Eu venho de um recanto escuro”, “o álcool me faz chorar”, “só Deus sabe o duro que eu dei”, assume a voz sofrida da cantora.
“Tristeza profunda” é um termo que surge explícito em Segunda, a faixa de encerramento. É o único recanto totalmente orgânico, analógico de Recanto, com Moreno Veloso solando no violão, no violoncelo, no prato e na faca, num arranjo sertanejo-urbano, profundamente nordestino. A letra adota perspectiva proletária, de um(a) protagonista egresso(a) do processo de ascensão das classes C e D no Brasil. “Não vejo o nascer do dia/ mas pela Virgem Maria/ tenho dinheiro e patrão”, “eu mesmo sou mei galego/ o meu chefe no emprego/ é que é mulato pra negro:/ só ecos da escravidão”, “mas agora a minha sala/ tem geladeira de gala/ à dele quase se iguala/ muda o mundo em barafunda”.
Neguinho pode padecer de tristeza profunda, mas também luta bravamente para compreender a sociedade em que vive e para se transformar, como já fazia antes mesmo de se inventar tropicalista. Neguinho é Gal, é Caetano, é nós.

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