quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Como nasce uma ditadura

Por Eleonora de Lucena, da Ilustríssima

RESUMO Coletânea em três volumes, estruturados por regiões do planeta, busca explicar de que maneira regimes autoritários são legitimados e como seus valores transparecem nas sociedades. Ensaios abrangem da Alemanha nazista à Tunísia que, nos últimos anos, tornou-se precursora da Primavera Árabe.

NOS ÚLTIMOS MESES, a democracia tem sido colocada em xeque de forma explícita pelos mercados financeiros. Na Europa, a simples ideia de um plebiscito para aprovar medidas de arrocho à sociedade levou as finanças ao chilique. Governos foram derrubados, e os novos indicados prometem cumprir a cartilha para garantir os ganhos privados e os sacrifícios públicos.

Lideranças à direita ganham relevo. Manifestações e greves se esparramam. Nos Estados Unidos, os protestos contra a desigualdade -os vários Ocupe Wall Street- são enxotados dos espaços públicos. A Primavera Árabe apenas engatinha: as eleições começam, mas não esvaziam as praças nem detêm confrontos violentos.

No Brasil, foi criada a Comissão da Verdade para investigar os crimes das ditaduras. Enquanto isso, muitas empresas estão preocupadas com o crescimento na China. Uma desaceleração econômica e/ou uma desestabilização política puxada pela classe média ascendente poderia ter impacto significativo por aqui.

Todos esses temas encontram algum tipo de reflexão histórica na leitura de "A Construção Social dos Regimes Autoritários - Legitimidade, Consenso e Consentimento no Século 20", coletânea organizada por Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat. , ambas professoras. 

São três volumes, estruturados por regiões do planeta, que trazem 39 artigos, totalizando 1.340 páginas. Tratam da Alemanha nazista, da Espanha franquista, da Itália fascista. Falam da extinta URSS, da Coreia do Norte, do Uruguai. Discutem os papeis desempenhados por Alfredo Stroessner, António Oliveira Salazar, Alberto Fujimori. Debatem a ditadura militar no Brasil.

Na tentativa de costurar dessa colcha de retalhos, as organizadoras lançam duas perguntas: 1) Como um regime autoritário/uma ditadura obteve apoio e legitimidade na sociedade?; e 2) Como os valores desse regime autoritário/ditatorial estavam presentes na sociedade e, assim, tal regime foi antes resultado da própria construção social?

O resultado é irregular e incompleto. Alguns textos partem de aspectos laterais para buscar esse todo articulado da tese do autoritarismo como produto social. Poucos reúnem informações detalhadas sobre o país focado. Faltam dados sobre os autores escolhidos (38 no total). No conjunto, apesar das falhas, o mosaico é interessante.

CARICATURA O volume "África e Ásia" [392 págs.], por exemplo, traz dois artigos sobre a Tunísia. O mais vigoroso é de Michel Camau. Professor de ciência política da Universidade de Aix-en-Provence, na França, ele argumenta que o país africano, precursor da Primavera Árabe, transformou-se numa caricatura das "contradições da suposta democratização do mundo no contexto da intensificação e da liberalização do comércio".

Partindo da herança colonial na formação das elites do país, o autor desenvolve o conceito de "autoritarismo de mercado", que mescla repressão, mercado aberto aos produtos europeus, liberdade para os capitais e controle das migrações. Uma estratégia que Camau resume assim: "Os mercados, agora; a democracia, depois".

No outro artigo, a pesquisadora francesa Béatrice Hibou mostra as ligações entre o Estado de Ben Ali e os empresários, que receberam financiamentos e outras benesses no "milagre econômico" tunisiano. Os dois capítulos foram escritos antes da revolta que derrubou o ditador e destampou a panela de pressão de toda a região. Mas ajudam a entender as razões da revolta.

Já para compreender a situação chinesa, Jonathan Unger se debruça nos motivos que levam a classe média urbana do país a aderir ao regime. Diretor do Centro da China Contemporânea da Universidade Nacional da Austrália, ele descreve como o crescimento viabilizou aumentos de salários para professores, médicos, engenheiros e funcionários públicos.

Lembra que, num único ano, no final dos 1990, o salário de todos os professores das universidades públicas mais prestigiadas dobrou. "Se houver outra explosão como a de Tiananmen, muitos deles [os instruídos urbanos] vão preferir o outro lado das barricadas -o lado do governo", prevê.

ESFACELAMENTO Urger tem a avaliação de que a classe média chinesa se tornou um bastião do regime e passou a rejeitar a liberalização política ao olhar o exemplo da União Soviética de Mikhail Gorbatchov. Ali o esfacelamento, que acaba de completar 20 anos, trouxe queda vertiginosa do padrão de vida e corrupção. Por isso, para ele, não há espaço para mudanças.

A trama entre política e economia também aparece com força no artigo sobre o controvertido Jean-Bedel Bokassa, presidente da República Centro-Africana de 1966 a 1979. Brian Titley, professor da Universidade de Lethbridge em Alberta, no Canadá, descreve como os interesses coloniais, da elite local e do Estado se entrelaçaram.

Quando essa costura se rompeu e Bokassa nacionalizou petrolíferas e empresas francesas, passou a ser pintado como extravagante e monstruoso: seus inimigos eram jogados aos crocodilos e ele comia carne humana. Histórias inventadas pelo serviço secreto francês, conta Titley, para quem "só destruindo a reputação de Bokassa seria possível justificar a invasão que o derrubou".

Não há nada sobre Muammar Gaddafi na coleção.

O volume "Europa" [309 págs.] traz análise de Robert Gellately, professor de história da Universidade da Flórida, sobre a Alemanha. Ele aponta como "o desemprego minou a força dos trabalhadores organizados e muitos começaram a achar que deveriam dar uma oportunidade a Hitler".

Gellately recorda que os primeiros campos de concentração foram criados em 1933, saudados pela imprensa como "lugares para onde mandar os comunistas e outros inimigos do povo". Lembra a perseguição do regime a minorias e a campanha de esterilização em massa, que não teve resistência da Igreja Católica.

No mesmo volume, Marc Ferro, em texto de 1985, aborda a URSS. Já o regime de Vichy é avaliado por Marc Olivier Baruch. Professor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, ele destrincha como as elites francesas se acomodaram ao sistema de capitulação aos nazistas. Enfatiza as ambiguidades e de como esse lado da história teima em ser esquecido. Afinal, nem todos que alegaram ter participado da resistência a Hitler de fato estiveram nessa luta.

AMBIGUIDADES Questão semelhante é levantada em relação ao combate ao regime militar no Brasil: se todos se tornaram resistentes e democratas, como a ditadura durou 21 anos?, perguntam as organizadoras da obra. Na busca de respostas, há artigos sobre as marchas da Família com Deus pela Liberdade (foram 69, 80% delas após o golpe militar), a Associação Brasileira de Imprensa (que teve comportamento ambíguo em alguns momentos), a Arena (o partido da ditadura).

Mas o forte sobre esse período no volume "Brasil e América Latina" [606 págs.] é o enfoque cultural. Marcos Napolitano, professor de história da USP, tenta escapar da dicotomia entre resistência e cooptação e descreve uma produção artística cheia de meandros e contradições.

Napolitano mostra como a ditadura no início buscou dissolver as conexões entre a cultura de esquerda e os movimentos populares. Depois, com o Ato Institucional n° 5, ampliou a repressão, tentando atacar a mobilização da classe média. A partir de 1979, com a Anistia, quis controlar a desagregação do regime.

Usando conceitos do nacionalismo, a ditadura se aproximou de artistas e intelectuais de esquerda e financiou projetos (cinema, teatro, folclore etc.). A música popular dos festivais era uma válvula de escape para as críticas ao regime, que sonhava com uma reconciliação com a classe média. No final dessa época, o Estado atuou no processo de mercantilização cultural, nota o autor.

Seria bom acrescentar à análise o papel-chave que a televisão desempenhou durante todo o período. Também as conexões com o meio empresarial pouco aparecem nos textos.

No conjunto, os três volumes fazem um inesperado e difuso turbilhão de informações. Demonstram que não é possível explicar autoritarismos pela simples existência de populações infantilizadas ou medrosas. Apontam para os consensos e legitimidades -sem defendê-los, pedem as organizadoras. Registram nacos de "um século marcado por muitas ditaduras, em diversos países e continentes, com culturas, tradições e passados diversos, que tiveram apoio da sociedade".

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