Por Rizzatto Nunes, do Terra Magazine
Num de seus filmes, Woody Allen conta a seguinte piada: diz ele que jamais seria sócio de um clube que o aceitasse como sócio. Recentemente, virou notícia um site de relacionamentos do qual só podem participar pessoas consideradas "bonitas". E essa "rede social" como se intitula, ficou famosa porque rejeitou milhões de internautas de vários países que nela gostariam de ter entrado. Parafraseando Woody Allen, é de se perguntar porque alguém quer fazer parte de um clube assim.
Um dado que chama atenção é esse da imposição social que a cada dia mais afeta as pessoas para que elas "pareçam" bonitas. Não como de fato são: a pressão é para que elas se pareçam com aquilo que o "mercado" diz que é belo. Exatamente, como impõe esse site.
Há um quê de artificial nesse modo de se medir as pessoas. Aliás, não só artificial como falso. Na Inglaterra e também na França já há legisladores que pretendem obrigar que os publicitários sejam mais "realistas" na utilização de fotos de modelos. É que a utilização de modernas técnicas de manipulação de fotos, tais como o photoshop, permite a criação de imagens que nem sempre correspondem ao real. Muitas vezes, as próprias modelos têm se surpreendido com sua (falsa) beleza. Os anúncios estão muito distantes do real e, uma vez publicadas as fotos de "mulheres com corpos perfeitos", elas acabam influenciando os consumidores suscetíveis. Esses legisladores querem que as fotos sejam acompanhadas da informação de que se trata de efeito digital. Penso que ainda assim, não mudaria a imposição.
Pois a verdade é que, de um jeito ou de outro, nesta sociedade em que o ter é mais importante que o ser, onde a aparência é mais importante que a essência, o que se percebe é que algumas pessoas são prisioneiras de seus símbolos: roupas de marca, jóias, relógios preciosos, carros último tipo, o corpo idem. O que o mercado acaba vendendo é uma ilusão de segurança e felicidade nos símbolos oferecidos nas vitrines e em anúncios publicitários, e o que o esse tipo de consumidor adquire é uma falsa idéia de si mesmo, muitas vezes gerando frustração e um vazio que o obriga à voltar às compras, às transformações etc num círculo vicioso sem fim.
Na segunda metade do século XX, pudemos assistir ao incrível incremento da tecnologia, do avanço das telecomunicações, da microinformática, do surgimento dos telefones celulares, da internet, enfim, a sociedade capitalista começava a alcançar a ficção científica. Aliás, prometia, um conforto jamais imaginado (pena que ele jamais chegará para a maior parte da população do planeta).
Muito bem. O desenvolvimento das ciências naturais aliada à tecnologia de ponta, se deve em larga medida a existência de um enorme mercado de consumo. A maior parte dos cientistas do final do século XX, início do século XXI não é mais aquele romântico pesquisador que pretende, com suas descobertas, trazer melhores condições de vida às pessoas. O mercado tudo engole e adotou o pesquisador como empregado, ávido por descobertas patenteáveis capazes de enriquecê-lo e a seus patrões com os correspondentes royalties. Se não há mercado, não há pesquisa. Esse é o lema. Para quem duvida, lembro aqui mais uma vez o filme "O óleo de Lorenzo", que conta a história verídica da luta dos pais do menino Lorenzo na tentativa de descobrir uma solução para a sua doença. Eles percebem que a cura não surge por falta de mercado: havia um número insuficiente de crianças doentes na relação com o custo do investimento na pesquisa.
Ou, como disse um famoso médico brasileiro: "No mundo atual está se investindo cinco vezes mais em remédios para virilidade masculina e silicone para mulheres do que na cura do Mal de Alzheimer. Daqui a alguns anos, teremos velhas de seios grandes e velhos de membro ereto, mas eles não se lembrarão para que servem".
A imposição pela beleza e pela estética é tamanha que, um dos aspetos mais evidentes dos avanços da ciência tecnológica é a venda e reforma de partes do corpo humano. Quase como no filme de Franquenstein, existe a possibilidade da ficção virar realidade. Evidente que há muita coisa boa. O avanço da biologia e da medicina permitem os transplantes de órgãos que salvam muitas vidas, que devolvem funções de partes do corpo humano que estavam perdidas ou que dão a visão às pessoas etc. Tudo isso é muito bem vindo. E há mais: as várias próteses, as operações corretivas com ajuda de micro instrumentos e uma numerosa quantidade de procedimentos outrora impensáveis. Isso tudo é muito bom.
Ao lado disso, o mercado passou a oferecer toda sorte de cirurgias estéticas. Não só é possível deixar de usar óculos, fazendo uma fantástica, muito rápida e indolor operação oftálmica (que, aliás, é executada praticamente em série, uma atrás da outra), como homens e mulheres podem literalmente comprar partes do corpo humano, ou fazer trocas no próprio corpo com enxertos.
A busca do corpo perfeito, da forma sempre esguia e jovem, esses produtos tão bem vendidos no mercado de consumo, fez surgir um enorme mercado de reposição de "peças" humanas. Naturalmente, não há nenhum mal em que as pessoas queiram fazer as correções que entenderem necessárias, desde que façam conscientes e com acompanhamento médico adequado. Podem querer fazer lipoaspiração para jogar fora as gorduras indesejáveis e difíceis de perder; ou desejar eliminar as papas dos olhos; as mulheres podem querer aumentar seus seios ou corrigi-los etc. É mero exercício do direito de cada consumidor.
O mercado já cuida desse assunto com alta prioridade e qualquer um pode ver. Basta ligar a tevê para perceber a quantidade de produtos e serviços ligados à forma e à beleza existentes. O marketing, por sua vez, em todas as suas vertentes, o tempo todo, mostra as pessoas de um modo que vai se impondo no imaginário e desejo dos consumidores. Nos filmes do cinema, nos canais de televisão, nas novelas etc são apresentados atrizes e atores magros e "sarados" com formas desenhadas, que depois os consumidores tentam "copiar" adquirindo os produtos e serviços oferecidos.
Há também muita coisa esquisita. No ano passado comentei que alguns canais de tevê e vários sites na internet vinham apresentando mulheres com seios exagerados. Havia, ao que parece, uma "campeã" brasileira, que detinha seu recorde com nada mais nada menos que 5,5 litros de silicone em cada seio. (A recordista mundial, segundo constava, era uma americana que possuía 7 litros em cada mama!). Olhando para aquela recordista brasileira, que, quando se levanta, é obrigada a ficar segurando os litros de silicone, sente-se pena, porque, sua decisão está fora do padrão psíquico das demais pessoas. Até poder-se-ia garantir a ela um eventual direito de fazer o que fez (certamente questionável, como penso).
Quanto ao uso de photoshop e todas as demais formas de enganação do marketing e da publicidade nem preciso referir, pois são conhecidos de todos os métodos utilizados e que não têm fundamento ético: parte desse setor não fala a verdade (e também nem sempre mostra!). Todavia, volto a colocar algo que me parece grave, que é o do procedimento médico subjacente nessa questão: os excessivos seios de silicone foram colocados por um cirurgião médico, acompanhado de sua equipe com outro médico anestesista e seus assistentes. Pergunto: não há limite ético para o médico fazer tal operação? Não deve ele se negar a fazê-la e aconselhar a interessada que procure ajuda psicológica? A mim parece que os órgãos de medicina responsáveis devem cuidar desse tema, estabelecendo esse limites.
Não é só porque a ciência moderna e a incrível tecnologia que a acompanha seja capaz de construir corpos humanos com fantásticas próteses, enxertos e reformas, que se pode fazê-lo. Do ponto de vista ético, a possibilidade real de uma execução não significa necessariamente o direito de exercê-la. Não falo apenas do problema dessa mulher de seios enormes. Refiro a questão em sentido mais amplo, porque se for deixado que o mercado tome a decisão, com o alto faturamento que o segmento gera, poderemos assistir a muitas aberrações. Ao lado dessas doenças típicas da sociedade capitalista, surgirão outras gerando um consumidor cada vez mais alienado e, muitas vezes, infeliz.
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