segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Charles Dickens, dono de jornal




Por Tracy McVeigh, do "Guardian"
Tradução de Clara Allain

Em 1866, a atriz vitoriana Ellen Terry disse que uma revista era "'a' coisa que me fazia sentir saudades de Londres".

Durante 20 anos, uma publicação semanal administrada e editada por Charles Dickens e vendida a um valor irrisório era aguardada ansiosamente por leitores. Toda quarta-feira, eles encontravam ali não só relatos ricamente construídos dos fatos da época mas também capítulos avulsos daqueles que mais tarde se tornariam os livros mais famosos do escritor.

Acadêmicos modernos esperam que o apelo popular da revista - cujo título quando foi lançada, em 1850, era "Household Words" (palavras de família), mas que passou a se chamar "All the Year Round" (o ano todo) em 1859, quando Dickens rompeu com o publisher e passou a publicá-la por conta própria - possa ser recuperado.

Voluntários foram convidados para ajudar a levar a íntegra das 1.101 edições da revista para a era digital, tornando-as acessíveis a um público tão amplo quanto os 300 mil vitorianos que compravam o periódico semanalmente.

"O alvoroço provocado nos anos 1860 pela chegada de cada novo Dickens só pode ser entendido por pessoas que o testemunharam na época", escreveu Ellen Terry em sua autobiografia. "Meninos vendiam a revista nas ruas e frequentemente eram perseguidos por uma multidão ansiosa, como se estivessem portando notícias sobre o 'último vencedor' [da corrida de cavalos, presumivelmente]".

Voluntários

O bicentenário do nascimento de Dickens é em 7 de fevereiro de 2012. A pequena equipe da Universidade de Buckingham esperava ter todas as revistas on-line até essa data, mas, embora as páginas já tenham sido escaneadas, elas agora precisam ser revistas para que sejam removidos os inevitáveis erros causados pelos computadores - e isso é algo que apenas o olho humano poderá fazer.

O número enorme de páginas - 30 mil - cria um problema para a conclusão do trabalho no prazo desejado. Por conta disso, foi lançado a todos os editores de texto amadores com acesso a computadores um chamado.

"Todas as transcrições lidas por máquinas precisam ser corrigidas. Nestes tempos de cortes de verbas, o custo seria considerável, de modo que decidimos abrir o trabalho aos interessados", disse o professor sênior de inglês em Buckingham John Drew. "Mas apenas 15% do trabalho com os arquivos foi distribuído [até agora], principalmente entre pós-graduandos e acadêmicos."

Depois de uma carta a esse respeito ter sido publicada pelo "Guardian" na semana passada, mais voluntários se apresentaram, e agora quase 20% das edições estão em processo de revisão.

A revista era extremamente respeitada na época de sua circulação e publicou capítulos de "Grandes Esperanças", "Tempos Difíceis", "North and South" e "A Mulher de Branco", além de poesia, jornalismo investigativo, relatos de viagens, ciência de alcance popular, história e comentários políticos.

Em três bilhões de palavras, há tanto joias históricas que detalham a vida, os problemas sociais e a política dos vitorianos quanto um tesouro literário das obras de Wilkie Collins (1824-89), Elizabeth Barrett Browning (1806-61), George Sala (1828-95) e Elizabeth Gaskell (1810-65).


Talentos desconhecidos também tinham espaço. "Charlie, um irmão de Wilkie Collins, escreveu alguns depoimentos de testemunha ocular extraordinariamente vívidos. Ele é um indivíduo que a história perdeu, apesar de ter se casado com a filha de Dickens e de ter redigido boa parte da revista nos primeiros dez anos", disse Drew.

"Dickens começou como repórter que cobria o Parlamento, e 'The Pickwick Papers' foi originalmente um livro de esquetes divertidos, alguns deles sobre moda. O fato de ter escrito suas obras de ficção para um público semanal de revista ajuda a explicar como Dickens sobreviveu até os tempos modernos. É um trabalho muito visual, repleto de imagens que se traduziram bem para a televisão e o para cinema, de uma maneira que nunca foi o caso de um [William] Thackeray (1811-63), por exemplo."

Mas Dickens também cobriu assuntos de que outros jornais se negavam a tratar: não apenas as condições vigentes nos moinhos, fábricas e - um de seus temas favoritos - prisões mas também notícias do exterior. Ele encarregou Thomas Trollope, irmão do escritor Anthony Trollope (1815-82), de fazer uma cobertura extensa dos massacres da segunda guerra de independência italiana (abril-julho de 1859) contra o império austríaco, no momento em que a Grã-Bretanha, constrangida por lealdades da família real, se abstinha do conflito. Os relatos vivos do enviado contradiziam boa parte da cobertura da época, politicamente neutra. "Eu estava editando esses despachos no mesmo momento em que o noticiário internacional revolvia em torno da intervenção na Líbia, e foi interessante conhecer o contexto histórico [pregresso]", comentou Drew.

Manetas x Pernetas

Um dos textos favoritos dele, entretanto, diz respeito a um evento menos dramático. "É uma reportagem instigante, que, ao mesmo tempo em que se abstém de qualquer condescendência, constitui uma leitura profundamente incômoda. Ela revela tanto sobre nossos valores e atitudes atuais quanto sobre o apreço vitoriano pelo excêntrico e pelo [chamado] grotesco", observou Drew.

Sob o título "A Prática do Críquete sob Dificuldades", Dickens escreveu: "Sei que nós, ingleses, somos um povo angular e excêntrico - um povo cujas rugas e dobras o grande ferro de passar da civilização levará muito tempo para aplainar  - , mas eu não estava preparado para o seguinte anúncio que vi outro dia na vitrine de uma tabacaria nas proximidades do Elephant and Castle: 'No sábado, será disputada uma partida de críquete no Rosemary Branch, em Peckham Rye, entre onze homens manetas e onze homens pernetas'."

"'Bem, já ouvi falar de coisas excêntricas', pensei, 'mas creio que isso supera a todas. Sei que somos um povo robusto e muscular, que requer exercício vigoroso, de modo que preferiríamos combater a não fazer nada'... Tais eram meus pensamentos patrióticos quando percorri a Old Kent Road ... e segui o caminho sinuoso até Peckham. Passando sob presuntos dourados dependurados, grelhas douradas, concertinas balançantes a preços baixos, ao lado de feixes de atiçadores de lareira enferrujados, rolos de tapetes sujos e empoeirados colchões recheados de penas, passando por manjedouras de aparência deserta e estalagens suburbanas, segui meu caminho de peregrino até o não muito florido campo de Peckham."

"Os pernetas eram bastante hábeis com o taco, mas levavam a pior quando se tratava de apanhar a bola. Havia algo de horrivelmente e hogarthiamente [referência ao trabalho do gravurista e pintor inglês do século 18 William Hogarth] divertido na maneira como eles tropeçavam, trotavam e saltavam atrás da bola. Uma fileira convergente de muletas e pernas de pau avançava sobre a bola por todos os lados, enquanto os homens de um braço só, agitando seus ganchos e tocos, corriam loucamente de wicket para wicket, os 'uneiros' rapidamente, os 'doiseiros', mais rapidamente. Um sujeito magro, jocoso, um tanto quanto embriagado, de calças brancas, era o bufão do time dos pernetas. 'Peggy' ('Toquinho') evidentemente se regozijava com o fato de ser o homem mais manco no campo, já que sua única perna era rígida do quadril para baixo."

Dickens não tratou a partida tanto como uma questão de ciência quanto como diversão pura.

Para descobrir suas próprias joias vitorianas, acesse djo.org.uk, onde você pode se cadastrar para editar uma edição de sua escolha (não é necessário ter conhecimentos de Dickens). 


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