terça-feira, 9 de agosto de 2011

Bolaño enfrenta os fantasmas da história latino-americana

Bolaño- Nem espanhol, nem chileno ou mexicano, mas latino-americano


Por Eduardo Sterzi, da Ilustríssima

RESUMO
O romancista chileno Roberto Bolaño morreu precocemente deixando uma obra em grande parte inédita, que vem sendo publicada postumamente. Num panorama tão terrível quanto bem-humorado da vida latino-americana no século 20, sobressai a imagem do crime, elemento constante em suas narrativas.

A JORNALISTA Mónica Maristain, naquela que seria uma das últimas entrevistas do escritor Roberto Bolaño (1953-2003), pergunta-lhe: "Você é chileno, espanhol ou mexicano?". "Sou latino-americano", responde ele. A resposta esquiva pode nos conduzir à raiz da singularidade de sua obra.
O que significava, para Bolaño, ser latino-americano, quando isso se confundia com ser "exilado" ou, como ele preferia, "nômade" ou "sonâmbulo"? Significava, antes de tudo, encarar o aspecto infernal ou, no mínimo, purgatorial do continente, que não se explicaria só pela desastrosa organização interna de suas sociedades mas também por sua inserção num sistema universal de exploração e loucura. Numa conferência, Bolaño resumiu sua concepção da história mundial: "A América Latina foi o manicômio da Europa, assim como os EUA foram sua fábrica. A fábrica está agora em poder dos capatazes, e loucos fugidos são sua mão de obra. O manicômio, há mais de 60 anos, está queimando em seu próprio óleo".

LATINO É "significativo" -e "inquietante", como frisa o narrador- que tudo o que se saiba do passado de um personagem decisivo, embora marginal, de "O Terceiro Reich" [trad. Eduardo Brandão], romance póstumo cuja trama transcorre na Espanha, com protagonistas alemães, seja sua procedência latino-americana. Sua característica definidora é que seu corpo acha-se coberto por horríveis queimaduras, prováveis sequelas de tortura. Não tem nome: é conhecido como "o Queimado".
(Uma situação que já se esboçava, com consequências próprias, num dos primeiros romances de Bolaño, "Monsieur Pain" [trad. Eduardo Brandão], de 1999, publicado agora pela sua editora brasileira, a Companhia das Letras. No livro, outro latino-americano exilado, desta vez numa Paris às vésperas da Segunda Guerra [1939-45], ocupa uma espécie de centro deslocado da narrativa. "Monsieur Vallejo" está hospitalizado, vítima de uma insanável crise de soluços, e um praticante do mesmerismo, Pierre Pain, é contratado para curá-lo; logo depois, é subornado para desistir do tratamento. Temos aí, no insistente soluço de Vallejo, a figuração enigmática de uma voz que já não pode falar, mas tampouco silenciar. Uma alegoria do exílio mas também da poesia, sobretudo tal como a concebia Bolaño: uma forma de resistência e heroísmo.)
Em seus dois grandes romances, "Os Detetives Selvagens" e "2666", ambos traduzidos por Eduardo Brandão, essa percepção da persistência dos vínculos coloniais -assim como dos vazios advindos de sua superação- é convertida em gatilho para a elaboração de tramas ficcionais planetárias. Ambos os romances partem de um inventário dos restos da modernidade, da noção de que as excepcionais energias que animaram aquele período histórico se esgotaram. 
Por um lado, esse é um olhar distanciado e mesmo analítico: o "sonho da revolução" parece já não perturbar o sono de ninguém. Por outro, é um olhar amoroso e nostálgico, cônscio das esperanças que embalaram aquele sonho.

MÁSCARAS Em "Detetives", acompanha-se a errática peregrinação dos poetas Arturo Belano, chileno, e Ulises Lima, mexicano. São duas tênues máscaras sob as quais Bolaño não se esforça em ocultar a si mesmo e a seu melhor amigo, Mario Santiago. A narrativa, que começa e termina na forma de um diário escrito por outro jovem poeta, acompanha, de início, a busca de Belano e Lima por Cesárea Tinajero, obscura escritora de vanguarda desaparecida desde a década de 1920.
Embora nesse livro o humor de Bolaño esteja em seu auge, é constante a sensação de que, de um momento para outro, tudo pode acabar muito mal. Bolaño mostra-se hábil em captar aquilo que, num conto de "El Secreto del Mal" (o segredo do mal, de 2007), chama de "estática do inferno": o incessante ruído de fundo da vida latino-americana. É exemplar dessa convergência de festa e terror o final da primeira parte do romance: é 31 de dezembro e, dentro de casa, celebra-se o Ano-Novo; do lado de fora, pistoleiros espreitam a ceia.
Essa mesma convergência também estará presente na parte central do livro, em que se recontam 20 anos de aventuras de Belano e Lima, por meio de depoimentos de personagens que os conheceram. 
Bolaño oferece aí um magistral exemplo de polifonia literária. De narrador a narrador, de relato a relato, as figuras de Belano e Lima tornam-se cada vez mais fantasmáticas, como se sua radical inapreensibilidade fosse a liberdade possível diante da proliferação de ditaduras na América Latina.
O sentido político profundo de "Detetives" fica explícito quando se lê o discurso que Bolaño preparou para receber um prêmio, precisamente por esse livro: "Em grande medida, tudo o que escrevi é uma carta de amor ou de despedida à minha geração, os que nascemos na década de 50 e os que escolhemos, num dado momento, o exercício da milícia, neste caso seria mais correto dizer da militância, e entregamos o pouco que tínhamos, o muito que tínhamos, que era nossa juventude, a uma causa que acreditávamos a mais generosa das causas do mundo e que de certa forma o era, mas que, na realidade, não o era. 
"Nem é preciso dizer que lutamos com unhas e dentes, mas tivemos chefes corruptos, líderes covardes, um aparato de propaganda que era pior do que um leprosário, lutamos por partidos que, se tivessem vencido, teriam nos enviado de imediato a um campo de trabalhos forçados, lutamos e pusemos toda a nossa generosidade num ideal que fazia mais de 50 anos já estava morto, e alguns de nós o sabíamos, e como não o saberíamos se havíamos lido Trótski ou éramos trotskistas, mas do mesmo modo o fizemos, porque fomos estúpidos e generosos, como são os jovens, que tudo entregam e não pedem nada em troca, e agora desses jovens já não resta nada, os que morreram na Bolívia, morreram na Argentina ou no Peru, e os que sobreviveram foram morrer no Chile ou no México, e os que não foram mortos ali foram mortos depois na Nicarágua, na Colômbia, em El Salvador. Toda a América Latina está semeada com os ossos desses jovens esquecidos."

2666 Ao morrer, o chileno deixou diversos textos inéditos. Vários deles foram publicados postumamente. Mas nenhum se equipara ao colossal "2666". Ali, ele leva ao máximo a retomada de personagens e situações de textos anteriores e o entrelaçamento de narrativas aparentemente isoladas, assim como a experimentação.
O livro compõe-se de cinco partes relativamente independentes, que constroem uma espécie de vasta imagem do horror. O leitor acompanha inicialmente quatro críticos europeus em busca de um enigmático escritor alemão, Benno von Archimboldi; depois, assiste ao enlouquecimento de um professor chileno de filosofia que vive na cidade mexicana de Santa Teresa; conhece, então, o jornalista americano enviado àquela cidade para cobrir uma luta de boxe, mas que termina bem mais interessado nos assassinatos de mulheres que ali se sucedem há anos; lê, em seguida, uma espécie de longo relatório em que cada assassinato é registrado contra o esquecimento; por fim, vê um soldado nazista, Hans Reiter, transformar-se, ao término da Segunda Guerra, em Archimboldi.
Na já citada entrevista a Mónica Maristain, Bolaño revela que teria gostado de ser "detetive de homicídios, muito mais que ser escritor": "Um policial de homicídios, que pode voltar sozinho, de noite, à cena do crime e não se assustar com os fantasmas". "2666", no qual Bolaño extrai o máximo rendimento poético de sua ideia de que "o crime parece ser o símbolo do século 20", apenas deixa mais evidente uma concepção que percorre toda a sua obra. Afinal, o que é a literatura para Bolaño senão uma forma de voltar à cena do crime -de todos os crimes que se confundem com a história mesma da América Latina- e deixar-se atravessar pelos fantasmas? 


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