quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

"Fermez La Bouche!"

Em meio de uma situação caótica, de uma tragédia, algo nesta catástrofe do Haiti me pareceu diferente do que se podia esperar. Alguém, no meio de uma multidão (porque tudo agora no Haiti é multidão – só é indivíduo o morto), para ajudar uma sobrevivente gritou para o povo: “Fermez la bouche!” (Calem a boca!).Uso-a apenas como mote.

A cronologia vai longe. Primeiro, os espanhóis. Mandaram nos índios Aruaque, se calarem como o rei da Espanha fez recentemente com Hugo Chaves “por que não te callas!?” Mas os nativos continuaram a falar o nome de sua terra Ahiti e passaram a seus herdeiros de sofrimento, os escravos. Depois vieram os franceses e devem ter implantado por dois séculos o 'fermer la bouche' sobre os crioulos, os quais, por vingança ou não, transformaram o francês língua em criolle. Mas houve um dia em que Toussaint Louverture mandou os franceses fermer la bouche também. Não ficou um só vivo naquela parte da ilha de Hispaniola. Os franceses estrebucharam porque perdiam a melhor das colônias e lá veio Dom Napoelon e arrasou os haitianos. Eles deram o troco (change?) em 1802/04, tornando-se a primeira colônia (fora os Estados Unidos) a ficar independente. Foi uma luta que começou publicamente em 1758 onde se destacaram Mackandal, Boukman, o próprio Toussaint, Dessalines, e Henri Christophe. O nome deste último inspirou revoltas pelas ruas do Recife, em 1824 numa rebelião liderada pelo comandante mestiço Mundurucu, que gritava: “Qual eu imito a Cristóvão/ Esse imortal haitiano/ Eia! Imitai ao seu povo,/ Ó meu povo soberano!”.


Os haitianos também devem ter desconfiados daqueles muy amigos que chegaram em 1915. Não diziam “fermez la bouche!” e sim “Shut up!” e que ficaram até 1934. Daí por diante, os haitianos tentaram ouvrir la bouche, se constituir como Estado, nação, país sempre em meio a discordâncias e distúrbios, como ocorreu também com os países da América Latina. Em 1957, foi eleito Duvalier que ficou no poder ditatorialmente até a morte em 1971, deixando seu filho Jean-Claude como ditadorzinho (era chamado de Baby Doc) mas mantendo a truculenta polícia 'tonton macoute' (nome derivado ironicamente de uma expressão, algo como 'meu irmão, escute”... e tome porrada). Foi derrubado, até que enfim, em 1986. Em 1990, houve eleições e assumiu o padre Jean-Bertrand Aristide que foi derrubado um ano depois. Voltaria a ser eleito em 1994 e em 2001, mas foi derrubado em 2004, quando havia dissolvido exército, marinha e aeronáutica. Além deste caos político, o país com seu irmão República Dominicana, tem sido o epicentro de tufões e terremotos.

Por que tanta pobreza, tanto atraso? O mundo ocidental relegou o Haiti a sua própria sorte. Trata-se de um país totalmente africano no Caribe. Não houve mestiçagem nem para com os indígenas nem para com os africanos, não houve libertos, ao que parece. Era uma grande fábrica de açúcar dos franceses. Parece que, como país negro e que cultua quase que oficialmente religiões afro-haitianas (o Vodu) o mundo cristão lhe virou as costas. Não é novidade o que andou agora dizendo um reverendo protestante norte-americano de que este terremoto era castigo de Deus. Ignorância e racismo. Mas que o ocidente virou as costas, virou. Como diz o estudante haitiano no Recife, Franck Seguey, no Diário de Pernambuco de 16/01/10 por que, nestes anos em que a Missão da ONU tem ocupado o país (desde 2004) com mais de 10 mil pessoas, não reconstruíram ainda o Haiti?


Voltando ao mote do título, não era de se esperar que diante de tal tragédia, simplesmente alguém pedisse: “Silence, s'il vous plaît!”. É a memória coletiva que se constituiu por repressão e por acomodação, no caso de lá. Calar a boca tem muitas vertentes e o sentido é o da entonação. Ali, ao contrário da história, não era uma submissão, mas uma chamada à solidariedade, nem que seja por uma só vida. No entanto, pode agora o mundo se calar e arregaçar as mangas para reconstruir esta República negra no Caribe?


Por Josemir Camilo,  professor visitante da UEPB. Texto gentilmente cedido pelo Paraibaonline

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