quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Design Vitorioso



Nunca dantes, talvez no mundo, no Brasil com certeza, foi realizada uma inclusão social por meio de um único e simples objeto de vestuário.

Praticamente todos os segmentos da sociedade se reuniram numa mesma tribo: a dos que usam Havaianas.

Faz 50 anos que as primeiras foram fabricadas, em Campina Grande (PB). Ali se situa a única fábrica de Havaianas do mundo, onde são produzidos 162 milhões de pares ao ano. Só 22 milhões deles são exportados -o restante faz parte da nossa particular revolução de inclusão.

Não aconteceu tudo de repente. Desde a inauguração da fábrica, venho viajando sistematicamente de automóvel, jipe e ônibus para o Nordeste pelas mais variadas estradas.

Naqueles velhos tempos, viam-se pelas estradas dois tipos de pessoa: os descalços e os calçados. Era o tempo do amarelão do jeca-tatu. Nesses 40 anos, tudo mudou. O Jeca Tatu, figura emblemática do homem descalço, criada por Monteiro Lobato, praticamente desapareceu. Pobre Monteiro Lobato, virou figura datada. Escreveu sobre o que vimos desaparecer.

De São Paulo ao Nordeste, ricos, pobres e remediados calçam uma placa de borracha, de onde saem tiras que prendem o pé, eliminando os desconfortos. Poeira, água, pedrinhas, assim como entram, saem. Serve para caminhar no plano e no levemente inclinado. Não se atrapalha no estribo do jegue nem na bicicleta. Pode existir algo melhor para a geografia do nosso país?

Para nosso clima, nosso cerrado, nossos imensos planaltos, ela é perfeita. Serve na praia, no campo, em casa e dura uma eternidade, o que não é pouco para uma população pobre.

Não é um calçado universal -não atende às necessidades dos esquimós ou de alpinistas. Para dar conta da nossa diversidade, não poderíamos ter recebido presente melhor do que as Havaianas, inspiradas na sandália de dedos japonesa.

Outros povos desenvolveram tamancos, tênis e botas. Quase nunca -se é que alguma vez- esses calçados atravessaram tão amplamente todas as classes sociais. Sem minimizar a importância do tamanco na Europa ou do tênis americano, minha intenção é chamar atenção para um fato que, contado assim, parece que estamos chovendo no molhado.

Minha experiência vem sendo mais do que isso. Tenho visto o lento desaparecimento do homem descalço. Após minha viagem mais recente, que terminou ontem, senti vontade de dar valor ao que vale muito.

Não sou capaz de aferir a importância mercadológica dos 10% da produção que é exportada. Prefiro lembrar uma foto de Rodrigo Petrella que focaliza um grupo de índias jovens, pintadas para alguma festa. Se olharmos para o chão, ei-las de Havaianas. Nem os índios se sentem aviltados ao se proteger do contato direto com o chão.

E as Havaianas vão entrando, ficando, sem que se preste muita atenção a esse segundo pé de todos nós. Elas chegaram de mansinho e, quando acordei, o jeca-tatu já estava morto.


Da Folha de São Paulo - Por Anna Veronica Mautner, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora) amautner@uol.com.br

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