quarta-feira, 2 de março de 2011

Florbela Espanca, um amar perdidamente


Por Gustavo Ranieri, da Revista Cult


Florbela Espanca trancou-se no quarto. Já passava das 2 da manhã. Que presente poderia querer ela naquele 8 de dezembro de 1930, seu 36º aniversário? Ninguém sabe. Ao marido, Mário Lage, deixou a recomendação de que não fosse incomodada até a manhã seguinte. E de fato nenhuma pessoa o fez, nunca mais. Naquela madrugada, deitada na cama, sem “haver gestos novos nem palavras novas” – como dias antes escrevera pela última vez no que havia intitulado de Diário do Último Ano – a poeta portuguesa suicidou-se ingerindo dois frascos do barbitúrico Veronal.

Desde então, ela é alvo de extensos estudos e biografias. A fama de transgressora, por ter desafiado os preceitos da sociedade – casou-se três vezes e frequentava a boemia, fumando e bebendo, por exemplo – transformou-se nas nomenclaturas precursora e feminista. E, se o reconhecimento, justamente por ser mulher, foi inferior ao que tiveram seus contemporâneos Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, hoje ocupa imenso destaque nos círculos literários.

Uma flor

Dores e dúvidas, às centenas, sobre díspares perspectivas da existência são tão recorrentes na vida e na obra de Florbela que até norteiam seu primeiro poema, “A Vida e a Morte”, escrito com precoces 8 anos de idade. Em outra frente, engano é reduzir a sofrimentos sua história. A menina miúda, de olhos negros e mente inquieta, experimentou as pequenas e grandes alegrias reservadas a qualquer ser humano.

Quando pequena, compartilhou com satisfação a vida em família, período em que vivia em Vila Viçosa, cidade onde nasceu. Mãe tinha duas: Antónia da Conceição Lobo e Mariana Toscano. A primeira, de sangue; a segunda, de criação.

Acontece que Mariana, a mulher legítima de João Maria Espanca, não podia engravidar. Para ser pai, ele recorreu a uma regra medieval, muito aceita pela sociedade portuguesa da época, que permitia ao homem, nesse tipo de situação, ter com outra os descendentes que seriam adotados pela esposa. A escolhida foi Antónia, empregada da residência, com quem João teve também outro fruto, Apeles Espanca, dois anos mais jovem que Florbela.

Embora trabalhasse na mesma casa, o contato íntimo entre mãe biológica e filha só existiu nos primeiros meses de vida, quando era amamentada. Para a docente e pesquisadora Renata Soares Junqueira, autora do livro Florbela Espanca – Uma Estética da Teatralidade, tal fato contribuiu muito para o direcionamento artístico da escritora. “Ela transpôs para os seus poemas a imagem da mulher triste, abandonada pela sorte desde o nascimento”, enfatiza ao mesmo tempo em que adverte para não se cometer o equívoco, todavia, de pressupor que seus relatos são invariavelmente biográficos. “Durante muitos anos a crítica se assenhoreou, com poucas exceções, em identificar nas entrelinhas de toda a poesia eventos da biografia de Florbela. Criou-se, assim, uma enorme confusão entre realidade e ficção. Temos de tomar cuidado para não confundirmos a vida com a obra.”

Primeiros passos

Para a escritora portuguesa, nunca importou se a mulher era vista com inferioridade pela sociedade machista. Se para a maior parte delas cabia apenas concluir a escola primária, Florbela aspirava por mais. Em 1908, aos 11 anos, foi uma das primeiras a ingressar no curso secundário do Liceu de Évora, cidade alentejana para onde seus pais se mudaram a fim de facilitar os estudos da filha.

Nesse mesmo ano, recebeu a notícia da morte de sua mãe Antónia da Conceição, de quem, mais do que características físicas, herdou a doença que viria a lhe perturbar todos os próximos anos: a neurastenia, causadora de transtornos psicológicos e muitas dores de cabeça.

Ainda adolescente, três eram as suas paixões: o irmão, com quem mantinha profundos laços fraternos; o pai, com quem dividia o gosto pela fotografia; e o colega de estudo Alberto Moutinho, um ano mais velho e o primeiro marido, em cerimônia oficializada em 1913, na data do aniversário de 19 anos da escritora.

Amar perdidamente

De matrimônio estabelecido, não é surpresa que Florbela não fosse a esposa subserviente. Dona de um temperamento forte, só fazia o que lhe agradava, principalmente escrever. “Ela era incapaz de viver submissa a um homem, por mais que o amasse. Não aceitava que o amor fosse o confinamento da mulher. E, mesmo casada, sempre lutou para publicar seus versos, atividade condenada por seus maridos”, destaca o brasileiro Fabio Mario da Silva, autor de Da Metacrítica à Psicanálise: a Angústia do “Eu” Lírico na Poesia de Florbela Espanca  e doutorando em literatura pela Universidade de Évora, Portugal, onde reside.

Mas amar, justamente, era o motor propulsor da escritora. Seja o que demonstrou nos versos, no esforço para publicar o primeiro título, Livro de Mágoas, em 1919, seja o carnal propriamente dito. Certo é que as maiores transformações de sua vida vieram à tona a partir dos 23 anos.

Em Lisboa, onde ingressou na Faculdade de Direito, viveu com intensidade a boemia e travou contato com outros autores, como José Schimidt Rau e Vasco Caméliet. Mas foi lá, todavia, que sofreu um grande dissabor: um aborto espontâneo. O acontecimento, seguido de uma profunda crise neurastênica e a instabilidade emocional da autora, resultou no fim do casamento, em 1921.

Recuperada, Florbela apaixonou-se por António Guimarães, oficial de artilharia da Guarda Republicana. Foi com ele que se casou em junho do mesmo ano. Mais uma vez, o amar a alimentava. Sentimento este que é agudo em sua obra e inato nas publicações subsequentes, Livro de Soror Saudade (1923) e Charneca em Flor (1930), em versos como: “Eu quero amar, amar perdidamente! / Amar só por amar: Aqui… além… / Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente… / Amar! Amar! E não amar ninguém!”.

Mas o novo casamento durou pouco mais de três anos, até 1925, período marcado por um segundo aborto involuntário e novas crises de saúde. O amar, embora contido em toda a obra, revelava-se na vida real mais turbulento do que nos versos.

Antes mesmo de oficializar o segundo divórcio, porém, Florbela passou a dividir uma casa com sua mais nova paixão: o médico Mário Lage. Em sua companhia, sofreria a maior perda: a morte do irmão, Apeles, em 1927, em um acidente com o hidroavião que ele pilotava.

Sou eu!

Florbela está entregue às graves crises da doença que lhe acomete desde a adolescência. E, se não bastasse, é diagnosticada com edema pulmonar. Mesmo assim, fuma e emagrece demais. Alegra-se com flores e livros. O ano é 1930, o último.

Sem querer pertencer a qualquer estilo literário, continua a produzir incessantemente contos, traduções de romances franceses, e a colaborar em revistas femininas. Em seus versos, deixa perpassar o erotismo que revoluciona ao trazer a mulher ao domínio da relação. O que também provoca um olhar de desconfiança e preconceito da crítica.

Todavia, a Florbela Espanca de carne e osso não se importa com mais nada. É dela a melhor definição de quem foi e ainda existe: “O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudades… sei lá de quê!”

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