Por Gustavo Ranieri, da Revista Cult
Florbela Espanca trancou-se no quarto. Já passava das 2 da manhã. Que presente poderia querer ela naquele 8 de dezembro de 1930, seu 36º aniversário? Ninguém sabe. Ao marido, Mário Lage, deixou a recomendação de que não fosse incomodada até a manhã seguinte. E de fato nenhuma pessoa o fez, nunca mais. Naquela madrugada, deitada na cama, sem “haver gestos novos nem palavras novas” – como dias antes escrevera pela última vez no que havia intitulado de Diário do Último Ano – a poeta portuguesa suicidou-se ingerindo dois frascos do barbitúrico Veronal.
Desde então, ela é alvo de extensos estudos e biografias. A fama de transgressora, por ter desafiado os preceitos da sociedade – casou-se três vezes e frequentava a boemia, fumando e bebendo, por exemplo – transformou-se nas nomenclaturas precursora e feminista. E, se o reconhecimento, justamente por ser mulher, foi inferior ao que tiveram seus contemporâneos Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, hoje ocupa imenso destaque nos círculos literários.
Uma flor
Dores e dúvidas, às centenas, sobre díspares perspectivas da existência são tão recorrentes na vida e na obra de Florbela que até norteiam seu primeiro poema, “A Vida e a Morte”, escrito com precoces 8 anos de idade. Em outra frente, engano é reduzir a sofrimentos sua história. A menina miúda, de olhos negros e mente inquieta, experimentou as pequenas e grandes alegrias reservadas a qualquer ser humano.
Quando pequena, compartilhou com satisfação a vida em família, período em que vivia em Vila Viçosa, cidade onde nasceu. Mãe tinha duas: Antónia da Conceição Lobo e Mariana Toscano. A primeira, de sangue; a segunda, de criação.
Acontece que Mariana, a mulher legítima de João Maria Espanca, não podia engravidar. Para ser pai, ele recorreu a uma regra medieval, muito aceita pela sociedade portuguesa da época, que permitia ao homem, nesse tipo de situação, ter com outra os descendentes que seriam adotados pela esposa. A escolhida foi Antónia, empregada da residência, com quem João teve também outro fruto, Apeles Espanca, dois anos mais jovem que Florbela.
Embora trabalhasse na mesma casa, o contato íntimo entre mãe biológica e filha só existiu nos primeiros meses de vida, quando era amamentada. Para a docente e pesquisadora Renata Soares Junqueira, autora do livro Florbela Espanca – Uma Estética da Teatralidade, tal fato contribuiu muito para o direcionamento artístico da escritora. “Ela transpôs para os seus poemas a imagem da mulher triste, abandonada pela sorte desde o nascimento”, enfatiza ao mesmo tempo em que adverte para não se cometer o equívoco, todavia, de pressupor que seus relatos são invariavelmente biográficos. “Durante muitos anos a crítica se assenhoreou, com poucas exceções, em identificar nas entrelinhas de toda a poesia eventos da biografia de Florbela. Criou-se, assim, uma enorme confusão entre realidade e ficção. Temos de tomar cuidado para não confundirmos a vida com a obra.”
Primeiros passos
Para a escritora portuguesa, nunca importou se a mulher era vista com inferioridade pela sociedade machista. Se para a maior parte delas cabia apenas concluir a escola primária, Florbela aspirava por mais. Em 1908, aos 11 anos, foi uma das primeiras a ingressar no curso secundário do Liceu de Évora, cidade alentejana para onde seus pais se mudaram a fim de facilitar os estudos da filha.
Nesse mesmo ano, recebeu a notícia da morte de sua mãe Antónia da Conceição, de quem, mais do que características físicas, herdou a doença que viria a lhe perturbar todos os próximos anos: a neurastenia, causadora de transtornos psicológicos e muitas dores de cabeça.
Ainda adolescente, três eram as suas paixões: o irmão, com quem mantinha profundos laços fraternos; o pai, com quem dividia o gosto pela fotografia; e o colega de estudo Alberto Moutinho, um ano mais velho e o primeiro marido, em cerimônia oficializada em 1913, na data do aniversário de 19 anos da escritora.
Amar perdidamente
De matrimônio estabelecido, não é surpresa que Florbela não fosse a esposa subserviente. Dona de um temperamento forte, só fazia o que lhe agradava, principalmente escrever. “Ela era incapaz de viver submissa a um homem, por mais que o amasse. Não aceitava que o amor fosse o confinamento da mulher. E, mesmo casada, sempre lutou para publicar seus versos, atividade condenada por seus maridos”, destaca o brasileiro Fabio Mario da Silva, autor de Da Metacrítica à Psicanálise: a Angústia do “Eu” Lírico na Poesia de Florbela Espanca e doutorando em literatura pela Universidade de Évora, Portugal, onde reside.
Mas amar, justamente, era o motor propulsor da escritora. Seja o que demonstrou nos versos, no esforço para publicar o primeiro título, Livro de Mágoas, em 1919, seja o carnal propriamente dito. Certo é que as maiores transformações de sua vida vieram à tona a partir dos 23 anos.
Em Lisboa, onde ingressou na Faculdade de Direito, viveu com intensidade a boemia e travou contato com outros autores, como José Schimidt Rau e Vasco Caméliet. Mas foi lá, todavia, que sofreu um grande dissabor: um aborto espontâneo. O acontecimento, seguido de uma profunda crise neurastênica e a instabilidade emocional da autora, resultou no fim do casamento, em 1921.
Recuperada, Florbela apaixonou-se por António Guimarães, oficial de artilharia da Guarda Republicana. Foi com ele que se casou em junho do mesmo ano. Mais uma vez, o amar a alimentava. Sentimento este que é agudo em sua obra e inato nas publicações subsequentes, Livro de Soror Saudade (1923) e Charneca em Flor (1930), em versos como: “Eu quero amar, amar perdidamente! / Amar só por amar: Aqui… além… / Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente… / Amar! Amar! E não amar ninguém!”.
Mas o novo casamento durou pouco mais de três anos, até 1925, período marcado por um segundo aborto involuntário e novas crises de saúde. O amar, embora contido em toda a obra, revelava-se na vida real mais turbulento do que nos versos.
Antes mesmo de oficializar o segundo divórcio, porém, Florbela passou a dividir uma casa com sua mais nova paixão: o médico Mário Lage. Em sua companhia, sofreria a maior perda: a morte do irmão, Apeles, em 1927, em um acidente com o hidroavião que ele pilotava.
Sou eu!
Florbela está entregue às graves crises da doença que lhe acomete desde a adolescência. E, se não bastasse, é diagnosticada com edema pulmonar. Mesmo assim, fuma e emagrece demais. Alegra-se com flores e livros. O ano é 1930, o último.
Sem querer pertencer a qualquer estilo literário, continua a produzir incessantemente contos, traduções de romances franceses, e a colaborar em revistas femininas. Em seus versos, deixa perpassar o erotismo que revoluciona ao trazer a mulher ao domínio da relação. O que também provoca um olhar de desconfiança e preconceito da crítica.
Todavia, a Florbela Espanca de carne e osso não se importa com mais nada. É dela a melhor definição de quem foi e ainda existe: “O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudades… sei lá de quê!”
Sempre prazeiroso ter contato com a alma gigante de Florbela.
ResponderExcluirSim. Revigorante!
ResponderExcluirObrigada pelo comentário!
abs