quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Egito vive rebelião romântica, diz escritor


Por Samy Adghirni (Enviado ao Cairo pela Folha de São Paulo)

"Fazer uma revolução é como estar apaixonado por alguém. É algo que nos torna pessoas melhores e capazes de qualquer coisa, inclusive o que parecia impossível."
A comparação é de um dos mais proeminentes e engajados intelectuais egípcios, o escritor Alaa Al Aswany, 54, cuja obra já foi traduzida para pelo menos 12 línguas, incluindo o português.
"Toda revolução é romântica, o Egito é a maior prova disso", afirmou o autor, ao receber a Folha e um pequeno grupo de outros jornalistas no apertado gabinete do centro do Cairo onde atende como dentista.
Para ilustrar esse romantismo, Aswany cita a coragem e o civismo dos manifestantes antigoverno acampados na praça Tahrir.
"Eu estava na praça quando a polícia atirou na multidão, no último dia 28. Vi um homem do meu lado ser baleado na cabeça. Mesmo assim, ninguém recuou um centímetro sequer diante das balas", afirma.

REVOLUÇÃO LIMPA
O escritor, fluente em inglês e francês, também cita o que vê como um despertar espontâneo de solidariedade e respeito.
"Dias atrás, joguei um papel no chão da praça. Uma senhora de 70 anos me parou e disse: essa revolução é por um país melhor, e isso supõe um país mais limpo. Por favor, recolha o papel e jogue-o no lixo", relata.
O autor se diz impressionado com as doações de alimentos aos manifestantes e com a capacidade dos voluntários de coordenar segurança, atendimento médico e até o trânsito no Cairo.
"Todos os egípcios querem o fim deste regime, que é um dos mais repressores do mundo. Só defendem Mubarak aqueles que tiram algum benefício pessoal do governo", afirma.

REAÇÃO PADRONIZADA
Aswany diz não ter dúvidas de que as marchas de apoio ao ditador foram orquestradas pelo governo e alerta para o que chama de contrarrevolução.
"Ditadores, que passam décadas sem contato direto com a realidade da população e possuem egos gigantes, reagem de forma padronizada diante de revoluções", expõe o autor.
"Primeiro, eles negam a realidade. Depois, atribuem os distúrbios a elementos isolados a serviço de inimigos externos. Em seguida, negociam, sem nunca atender à reivindicação principal. Por fim, quando a ficha cai, eles se tornam muito agressivos, como um tigre ferido."
Hosni Mubarak, segundo o autor, mostrou-se capaz de tudo para levar adiante a contrarrevolução, inclusive ordenar que a polícia atirasse na população.
Aswany afirma que as ordens de massacrar os rebeldes só foram interrompidas após pressão dos norte-americanos -o regime egípcio é aliado da Casa Branca.
O escritor afirma que as conversas em curso entre governo e oposição são um modo de Mubarak ganhar tempo e diz que, quando houver eleições livres, votará em Amr Moussa, ex-ministro das Relações Exteriores, hoje secretário-geral da Liga Árabe.
"Ao atirar no próprio povo, Mubarak perdeu a força moral. A pressão interna e externa fez com que ele perdesse também a força política. Ainda resta a ele um pouco de força prática, que desaparecerá", avalia Aswany.

Saiba Mais
Autor de sucesso é dentista e lidera grupo de oposição

Um dos autores árabes contemporâneos de maior sucesso, Alaa Al Aswany já foi comparado pelo estilo realista a Naguib Mahfouz (1911-2006), o único egípcio a receber o Nobel de Literatura, em 1988.
Seu romance mais conhecido, "O Edifício Yacubian" (2002), vertido para 12 idiomas, ganhou adaptação cinematográfica e foi lançado no Brasil pela Companhia das Letras, que também planeja publicar "Friendly Fire" (fogo amigo), livro de contos.
Nascido em 1957 e formado em odontologia, Aswany, que já morou nos EUA, ganha a vida como dentista -seu consultório no centro do Cairo é próximo ao lugar dos tumultos.
Autor de textos políticos para jornais e revistas, o escritor é um dos fundadores do movimento oposicionista Kifaya ("basta").
Entenda o Caso: A Crise no Egito
1 
Como tiveram início os protestos antirregime?
Manifestações são inspiradas na onda de protestos que derrubou ditador da Tunísia Zine el Abidine Ben Ali em janeiro

2
Quem é Hosni Mubarak?
Vice do antecessor Anwar Sadat e ex-chefe da Força Aérea, governa um regime autoritário há 30 anos com o apoio dos EUA; tem hoje 82 anos

3
Por que ele é um ditador?
Mubarak esmagou a oposição, promoveu eleições amplamente fraudulentas, restringiu liberdades e baniu o grupo Irmandade Muçulmana

4
Quais as chances de ele deixar o poder?
Tudo dependerá da persistência dos protestos e da pressão dos EUA. O presidente Barack Obama confirmou que seu governo está negociando uma transição.

5
Quais os cenários para o pós-Mubarak?
Hoje, o mais provável é sua substituição por Omar Suleiman, seu vice, que comandaria a transição até eleições em agosto. Figuras da oposição poderiam fazer parte. Não pode ser descartada também uma revolução, no entanto, em que a oposição assumiria o poder imediatamente.

6

Quem são e que papel têm os grupos muçulmanos?

O mais importante é a Irmandade Muçulmana, grupo banido que defende um Estado baseado nas leis do islã. Tem importantes facções moderadas, no entanto.

7
Quem é ElBaradei?
Ex-presidente da agência atômica da ONU, que tem tido papel de destaque na oposição. Poderia assumir Presidência se Mubarak cair.

8
Como as Forças Armadas se comportaram?
São pilar do regime, mas se recusaram a reprimir protestos; militares ganharam força no governo após a reforma do gabinete e têm se abstido de conter confrontos

9
Qual impacto econômico dos protestos até agora?
Crise paralisou comércio, afetou turismo e motivou rebaixamento de nota por agência de risco; o preço do barril do petróleo ultrapassou US$ 100

Nenhum comentário:

Postar um comentário