quarta-feira, 28 de abril de 2010

"A Rita Como Ela É"

por Marcus Preto, do Caderno Serafina, da Folha de São Paulo
Serafina passa um fim de semana com a artista e assiste à mutação da mulher de 62 anos -noveleira, carente, insegura - na rainha do rock nacional

"Eu devia ter dado outro nome pra ela. Ter separado bem onde começa uma e termina a outra, como fez a Fernanda Montenegro [o nome de batismo da atriz é Arlette Pinheiro]. Não dá pra dizer 'eu sou uma e a Rita Lee é outra' -estamos juntas o tempo inteiro. Eu tenho controle, não é mediunidade. Mas eu não sou 'ela'. Sou boazinha, obedeço, tenho medo de ser rejeitada. E a Rita Lee é o oposto disso. Tem domínio absoluto da situação -o que me mata de inveja. Pra ser sincera, acho que gosto mais dela do que de mim.

Belo Horizonte, 17 de abril de 2010

12h17
Quando abriu os dois olhos azuis, tudo o que viu em volta era nuvem. Esticou a mão até o criado-mudo e, tateando, reconheceu o joguinho eletrônico portátil que lhe fizera companhia na madrugada, a garrafinha d'água mineral, o maço de cigarros e, agora sim, os óculos de grau. Encaixou as lentes no rosto, desbravando os cabelos vermelhos com as hastes de metal. Olhou de novo em volta e percebeu onde estava: a suíte presidencial de um hotel em Belo Horizonte, Minas Gerais. Sentiu imediatamente um frio bem conhecido na barriga. Era dia de estreia e, apesar de ter ensaiado exaustivamente por quase um mês para esse momento, estava, como sempre, muito insegura.

Olhou o relógio na cabeceira: já passava um pouco do meio-dia. Fez as contas e concluiu que ainda carregaria essa sensação desconfortável por pelo menos mais dez horas, até finalmente pisar no palco do estádio mineiro onde faria a estreia de seu show. Já sabe bem como esse processo funciona: sofre sozinha até entrar em cena, o último momento em que é ela mesma. Atrás das cortinas, como uma Cinderela, transforma-se em alguém que sabe exatamente o que fazer dali em diante. Alguém que, ao contrário dela, não tem medo de barata. Não tem muita autocrítica nem sente o fisgar das duas hérnias de disco. O palco pode até desabar. "Alguém dentro de mim é mais eu do que eu mesma", escreveu em uma canção, pensando nisso. Alguém que o Brasil conhece melhor do que ela.

Rita Lee, aquela do palco, gosta de mentir a idade -para mais. Anuncia sempre ter 65 anos, contra os 62 comprovados no documento de identidade da Rita original. Odeia cigarro. Diz que ele lhe rouba o fôlego, que limita o desempenho cênico. Já a outra Rita não se importa com isso. De todos os vícios que já constaram de sua longa lista, o tabaco é o único do qual não pretende se livrar jamais. De todo modo, não fuma no quarto -nem em casa, nem no quarto do hotel.

Calçou os chinelos e levou o maço para o banheiro, onde acendeu o primeiro do dia.

13h13
"Mazinho, já acordei", disse ao telefone para um dos produtores que sempre a acompanham em viagens. Ele encomenda o desjejum. Café com leite, granola, pão de sete grãos, queijo branco e um ovo cozido. Junto, chegam os jornais. Passa o olho nas páginas, roendo as unhas compulsivamente. Até que sangram, e ela ri. Sozinha, já que o quarto está vazio. Viaja em família, mas passa boa parte do tempo longe deles. Roberto de Carvalho, 57, marido e parceiro, dorme em suíte igual, do outro lado do corredor. Beto Lee, 33, o filho e guitarrista, em um hotel mais simples, junto com os outros integrantes da banda.

Volta para a cama. Os lençóis, trouxe de casa. Também as fronhas e dois dos quatro travesseiros que usa -o par que apoia a cabeça é seu. Os controles remotos estão sempre por perto, mas a televisão -como o ar-condicionado- permanece desligada. Ela prefere retomar o livro que estava lendo em casa, um romance policial do americano Harlan Coben. As histórias dele são boas, ela acha. Mas todas sofrem do mesmo problema: o desfecho previsível deixa a desejar. Seu escritor preferido nessa seara é, de longe, Rex Stout, que morreu em 1975. Em seus livros, não há como adivinhar o assassino antes que o autor o revele, e é disso que ela gosta. Mas, pena, já leu a obra completa de Stout. Não ouve música.

"Meu, o [maestro] Rogério Duprat é que estava certo. Um dia, ele me disse: 'Rita, descobri que não gosto de música, mas agora é tarde demais'. Fiquei igualzinha. Não acompanho nada dessas novidades -nem aqui dentro, muito menos lá fora. Os gringos, quando investem num lançamento que, acreditam, irá vender, cercam-se dos melhores produtores, arranjadores, instrumentistas, figurinistas, bailarinos etc. Não dá para sair um trabalho ruim. A Lady FormiGaga -reparou como ela tem cara de formiga?- é fabricada, sim, mas desempenha bem o papel. A piada é se dizer uma mulher contestadora. Alguém tem que lembrar a ela que Sinead O'Connor também se dizia uma mulher guerreira. Afff...

Passados cinco capítulos do livro, Roberto chega para o almoço: comida vegetariana, como é regra. O carro passaria às 17h para levá-los à passagem de som. Comeram e cada um voltou para o seu quarto. Ela acendeu outro cigarro. Ao mesmo tempo, vestiu uma touca plástica (os cabelos tinham sido lavados na noite anterior), arrancou a camiseta e a calcinha que usa para dormir e entrou no banho. A água quente ajudou a relaxar um pouco, mas não deu conta de liquidar com a ansiedade. As toalhas, vale frisar, também vieram de casa.

17h33
Roberto se senta no banco da frente do carro blindado, ao lado do motorista. Ela vai atrás, jogando paciência no Iphone. Outro carro menor os segue, levando o segurança e dois produtores. "Olha, Gungun, tem um monte de gente comprando ingresso para o seu show", diz Roberto quando chegam à porta do ginásio.

A Gungun a quem ele se dirige é outra das personalidades de Rita, "uma órfã de três anos e meio, carente e chatinha", segundo definição da própria. Há outras, que surgem em diferentes ocasiões, cada uma com características bem delineadas. A roqueira vampira Lita Ree, a solteirona Regina Célia ("que, dizem, teve um romance com Ulisses Guimarães"), o corintiano mulherengo Aníbal ("ele morre de tesão na Gal Costa"). Além, é claro, da própria Rita Lee, a principal de todas elas.

"Como você pode ser uma pessoa só? Ninguém é. Mas as pessoas não se dão conta de que estão usando um personagem pra cada situação -um com o marido, um com a sogra, um com o chefe... E uma persona equilibra a outra, elas se cuidam e se provocam o tempo todo. Quer um exemplo? Rompi os tendões do ombro, recentemente -essas coisas de corpo usado, a parte chata da velhice. Estava fazendo aquele papel de vítima, cheia de autopiedade, 'não quero mais nada, é hora de aposentar'. E, como não podia tocar [o violão], fiquei morrendo de medo de fazer show daquele jeito. Mas, quando a Rita Lee se viu no palco com aquela tipoia, tirou vantagem total da situação. Usou o ombro quebrado como piada, charme, riu da própria cara. E depois pra eu voltar pra casa fazendo a coitadinha de novo? Ninguém acreditava mais no meu drama, né?"

18h01
O camarim é espaçoso. Uma geladeira pequena guarda alguns tipos de suco, água mineral e sanduíches naturais. Na mesa ao lado, queijos, frutas, pães de muitos tipos, bebida isotônica, mais água. Em frente ao espelho, está armado uma espécie de "altar", com dezenas de embalagens de cosméticos. Enquanto fala, vai desenhando a boca com um lápis vermelho, que depois será recheado com batom da mesma cor. Passa rímel preto em torno dos cílios e um pouco de sombra azulada nas pálpebras e em volta. Vavá, o camareiro, entra para ajudá-la com a chapinha, que alisa ainda mais os cabelos finos. Ela deita em seguida no sofá forrado de toalhas (também trazidas de casa) e vai pingando, até acabar, um pequeno tubo de soro fisiológico nas narinas. A voz sai com mais facilidade depois desse processo de desentupimento. É agora, na maquiagem, que as duas Ritas começam a se confundir.

"Eu sei a boca que ela gosta, a roupa... É um divãzinho de Freud que ninguém faz ideia. O que às vezes me assusta é a importância que as pessoas dão pra Rita Lee [a do palco]. Vêm me dizer: 'Ah, você mudou a minha vida, escutei 'Ovelha Negra' e resolvi sair da casa do meu pai, por sua causa eu casei, separei...' Fico pensando: será que conto a verdade? Que não sou quem elas pensam que sou, que não tenho a segurança da Rita Lee, que mal sei o que fazer da minha vida e não sirvo pra guiar a de ninguém? Mas acabo nunca falo nada disso.

21h45
Pouca coisa acontece no camarim entre o final da maquiagem e a entrada em cena. Beto entra algumas vezes e puxa conversa. Fala de Ziza, 4, filha dele e neta dela, um dos temas prediletos da família. Sai em seguida. Vavá volta ao camarim e a ajuda a vesti-la de Rita Lee. Está pronta, com uma hora de antecedência. A espera pré-show costuma ser menos cansativa quando a novela das 21h é boa. Mas ela não está achando a menor graça na trama que está no ar agora, "uma chatice". "Até Lilia Cabral está canastrona, como isso é possível?". Mas a TV fica ligada com o volume bem baixo, quase no mudo, e ela dá umas olhadas enquanto não chega a hora. Fuma um cigarro atrás do outro.

22h19
Dez minutos antes de ir para as coxias, chama toda a banda para a "concentração" no camarim. Acende uma vela branca e todos se abraçam. É o único ritual que têm nessas ocasiões. Os músicos saem em direção ao palco, posicionam-se e atacam os primeiros acordes. As cortinas se abrem. O segurança a acompanha até seu ponto de entrada. Ela se senta ali atrás, fazendo caretas para alongar os músculos do rosto -método ensinado pelos professores de técnica vocal. Ainda tem tempo de tragar o cigarro algumas vezes antes que ela o entregue na mão do segurança.

Entra em cena aos pulos. "Um belo dia resolvi mudar/ Fazer de tudo o que eu queria fazer/ Me libertei daquela vida vulgar/ Que eu levava estando junto a você..." O povo delira com a entrada de uma, enquanto a outra, aliviada, volta sozinha ao camarim e retoma o capítulo da novela.

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