terça-feira, 27 de abril de 2010

Confessionário: Matheus Nachtergaele

Por Armando Antenore, da Revista Bravo


NEM ''AMARCORD'', nem Casablanca. O filme mais bonito que já viu não tinha nome. Uns parentes insistiram em exibi-lo. O curta-metragem caseiro, antiqüíssimo, retratava uma reunião de família, absolutamente trivial. Em meio à banalidade, uma menina de 12 ou 13 anos se destacava, miúda e tão morena que, às vezes, parecia negra. "Sabe como se chama aquela pretinha?", perguntaram. "Não, não sei." Chamava-se Maria Cecília. Era a mãe de Matheus.
A garota corria, pulava, sorria. Um assombro indescritível para o filho crescido que quase não conheceu a mãe. Ele estava com míseros três meses quando Maria Cecília morreu. Agora, num lance de mágica, podia observá-la em movimento, elétrica e brincalhona. Uma criança linda que, dizem, virou uma mulher igualmente linda, idêntica à que Matheus sempre imaginou.

QUEM MAL conheceu a mãe precisa inventá-la. A mãe que ele inventou não esbanjava só beleza. Também se mostrava muito corajosa e covarde demais. Covarde porque o deixou, corajosa porque ousou desafiar os deuses e proclamar: "Para mim, chega!". Maria Cecília, a construída e a real, se suicidou.

DE ASCENDÊNCIA belga, herdou dos antepassados paterno o sobrenome flamengo. "Nachtergaele, Nachtergaele...", costumava repetir o tio Kiko diante dos sobrinhos. "Lembra uma palavra judaica, não? Talvez tenhamos sangue judeu." Matheus e os primos, todos moleques, se enchiam de curiosidade: será? Para tirar a dúvida, ocultavam-se nas imediações do banheiro e tentavam espiar o avô urinando. Um dia, conseguiram surpreendê-lo. Não havia nada de judeu ali.
Mais ou menos na mesma época, Matheus odiava que o tratassem assim. "Assim como?", indagava o pai, engenheiro. "Por Matheus!'', respondia, e depois arrematava, sério: "O que deu em você para me batizar de Matheus se existe Rodrigo?". Hoje se apaziguou com o nome, que julgava demasiadamente adulto.

CONTINUA, no entanto, detestando cafunés e afagos do gênero. Acontece que, em razão de medir apenas 1m64, freqüentemente lhe acariciam a cabeça. A gentileza dos desavisados o desnorteia. Derruba-lhe a  pressão, e uma inexplicável tontura o assalta de imediato.
Há cinco anos, em companhia do cantor Seu Jorge, tomava uns goles no Boteco Taco, lendário pé-sujo do Rio de Janeiro. Às tantas, um fã se aproximou e, sem nenhuma cerimônia, ultrapassou a delicada fronteira corporal. O cantor, solidário com o mal súbito do amigo, se queimou. Escorraçou o fulano e ainda o alertou: "Nunca mais bote a mão no cocoruto de um filho de Oxalá".

MATHEUS, de fato, supõe que o santo o ilumina. Certa vez, lhe contaram que, se ninguém quer uma criança, Oxalá a acolhe. Ele acreditou.
Acredita também que Hamlet, Dom Quixote, Jó e outros ícones da literatura e do teatro existem de verdade. Como os orixás, passeiam por aí, à espera de um "cavalo'' que os aceite e incorpore.
João Grilo, por exemplo. Os acadêmicos afirmam e reafirmam que o protagonista ardiloso de O Auto da Compadecida deu as caras em 1955, quando Ariano Suassuna redigiu a peça. Matheus, que encarnou o personagem no cinema, pensa diferente. Acha que Grilo já perambulava pelo mundo bem antes de Suassuna sonhar em viver.

O MUNDO, aliás, não está completamente perdido. O que ocorre é o seguinte: a Terra anda à deriva apenas porque Deus se ocupa demais em fazer os aviões funcionarem. Ou alguém presume que boeings e assemelhadosse mantenham no céu sem ajuda divina? Para Matheus, poucos fantasmas se revelam piores do que viagens aéreas. O terror só não o afasta definitivamente dos aeroportos graças à benevolência de Deus, que descuidou de todo o resto em nome da segurança nos vôos.
O céu com letra minúscula, dos aviões, impõe-se como uma realidade inescapável. O outro, com letra maiúscula, dos cristãos, talvez não se concretize no post mortem. Quem sabe se materialize dentro do invólucro uterino. Matheus carrega a remota desconfiança de que o Paraíso é antes, não depois.

A IDÉIA de suicídio, claro, o aterroriza e fascina desde sempre. Mas ele nunca cogitou abortar o próprio caminho. Prefere o suicídio vagaroso.
Fuma dois maços de Marlboro por dia e foge de exercícios físicos. Caso não fique de olho, bebe mais do que deveria. Suspeita-se um alcoólatra em potencial. "Viver acaba nos fazendo morrer", ouviu do ator Paulo José. Considera a frase irretocável.

VAI COMPLETAR 39 anos e ainda alimenta a possibilidade de se tornar biólogo. Lê muito sobre o assunto. A biologia é sua verdadeira religião e Charles Darwin, o seu pastor.
Só entra em cena após entoar baixinho O Compositor me Disse, de Gilberto Gil: "O compositor me disse que eu cantasse ligado no vento/ Sem ligar/ Pras coisas que ele quis dizer/ Que eu não pensasse em mim nem em você/ Que eu cantasse distraidamente como bate o coração".
Por influência dos avós belgas, aprendeu o francês antes do português. A primeira palavra que balbuciou foi guarda-chuva (parapluie). Não se atreve a apontar o motivo. Mas cultiva uns palpites: guarda-chuvas protegem, especialmente àqueles que, como ele, nasceram em São Paulo, a capital das tempestades. Vai ver é isso; vai ver a primeira palavra que desejou falar tenha sido proteção.

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