sexta-feira, 29 de abril de 2011

A voz de Jorge Luiz Borges

Por Julio Bressane, da Revista Agulha

A voz de Jorge Luiz Borges eu conheci. A voz; ele, em pessoa, nunca. Sua voz, já velha, com certo ruído de cascalho, hesitante, mas mansa, sem afetação, o que já é uma afetação em si mesma. Voz compreensiva.

Foi por meio de uma lenda, a lenda de "Billy the Kid", que cheguei até ele. Sua versão inovadora, breve, da lenda do assassino desinteressado Bill Harrigan, fascina-me. Este conto está em seu livro História Universal da Infâmia. Procurei Jorge Luiz Borges para comprar os direitos autorais de uma lenda…

Borges disse-me, imediatamente, que não poderia vender os direitos autorais deste conto, pois, este texto, não lhe pertencia, não era seu!

Ele teria, segundo me disse, apenas copiado umas linhas, de algumas páginas, de certos livros… E me indicou 2 ou 3 livros como suas fontes. Um dos livros eu tinha, The Gangs of New York, de Herbert Asbury.

Foi delicioso ouvir tudo isso através de sua voz hesitante, pontuada por "quiças", curiosa, muito delicada. Depois, em outro momento, porém, disse-me, para falar com o dono da editora Emecé, que era quem tratava deste assunto e seu editor. Mas, ao mesmo tempo, me desencorajava a fazer isto, não era justo etc…

Este mote (compra dos direitos autorais da lenda de Billy the Kid) nos levou a longas e muitas conversas… telefônicas. Longas, sim, o que resultou, certa vez, em uma delicada ironia sua: "Você, disse-me, com o dinheiro gasto nesses telefonemas teria comprado minhas obras completas…"

E a conversa continuou…

Até que, em uma tarde, tarde triste, na rua Timóteo da Costa, nome de um pintor, ouvi, pelo telefone, daquela voz, que sempre trouxe força e vida, para não mais lhe telefonar: "estou muito doente… gracias" e desligou.

Dias, dias depois, liguei, ainda, uma última vez, para 312 28 01, que era o número do telefone da calle Maipu 994, 6º piso. E, atendeu, a governanta, Fani.

"Por favor, o senhor Borges está?" perguntei eu.

"Não…", respondeu, lacônica e firme, a governanta.

Terrível palavra é um non, dizia o padre Antônio Vieira. Este "não" perturbou-me…

Este "não", foi, para mim, naquele momento, como o percebi, um "nunca mais". "Never more", "nunca mais", "jamais plus", e, assim, nessa forma, chegou-me à cabeça, repetidas vezes, o sinal aziago…

Passada uma semana, talvez menos, li, nos jornais, a notícia de sua morte…

Rompeu-se a voz, foi-se o fio fortuito da fortuna, ficou uma lembrança, que, em vão, procuro reter…

Gostaria de desprender da memória e trazer para aqui o próprio "senhor Borges". "Senhor Borges", disse minha filha Tande, ainda menina, ao atender o telefone, chamando de Buenos Aires, aquela voz inconfundível…

Uma curiosidade biográfica, para encerrar esta minha saudade borgiana: conheci em Buenos Aires, com minha mulher Rosa Dias, um farmacêutico, dono de uma velha farmácia. O sujeito, tinha conhecido muito a Jorge Luiz Borges. Conheceu também sua mãe, D. Leonor. Da impressão que ele tinha de Borges nunca me esqueci. Dizia: "Imagine um homem que só se alimenta de arroz e leite. É um homem muito infeliz…"

Infeliz, talvez, mas paciente.

Escreve Borges: "…fui criado em um ambiente onde não se falar francês era ser praticamente analfabeto. Depois veio o inglês, passamos do francês para o inglês e do inglês para a ignorância…"

Borges, monstro do livro, tinha a paixão do livro e, o que é mais e mais raro, sabia ler. Conhecia os rigores desta arte, a temerária, arte de ler. Ler, cujo preceito primeiro é reler, abriga em sua arte o método, único, de acesso, de contemplação, ao que J. Kristeva, anos atrás, chamou "matriz geradora de significantes". O texto, visto como uma superfície, onde vem à tona, surge, cifrado, rigorosamente, em letra, apenas, alguns sinais, vagos, de seu significado. Sendo, pois, o entendimento de um texto sempre interino e, todo tempo, enigmático, esparso, mutável.

"Os grandes leitores são cisnes ainda mais negros que os grandes autores", escreve Borges em um prefácio. O escritor, experimentou, em toda sua obra, uma forma, um procedimento, que foi o de recortar frases, parágrafos inteiros, de diferentes autores, incrustá-los, mesclá-los, com perícia de relojoeiro, à sua escritura, e fazê-los viver, parecer viver, fora do assédio do tempo. O escritor provoca, com este processo, um colapso no tempo e uma despersonalização. Esse formalismo, sugiro, faz parte de sua arte de ler. Entender o instante fatal, quando, em uma dobra, o ler, escreve. Escrevendo, o ler, escrito…

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Marley & Eu

Por Zeca Baleiro, para a Revista Serafina

Quando Robert Nesta Marley nasceu, sob o signo zodiacal de Aquário, a 6 de fevereiro de 1945, nem dona Cedella, negra da pequena Nine Miles, cidadezinha do interior da Jamaica, nem o senhor Norval, militar branco de sangue inglês, poderiam imaginar que aquele menino faria parte de uma seleta galeria de gênios musicais que mudariam o mundo –alguns dos quais também se chamavam Robert.
Febril como Mr. Plant, rebelde como Mr. Johnson, messiânico como Mr. Zimmerman e ultramusical como Mr. McFerrin, o garoto Bob não só seria um dos maiores artistas do século 20 como ainda espalharia pelos quatro cantos do mundo o reggae e a filosofia rastafári, anunciadores de uma nova era para a nação africana dispersa pelo mundo.
Foi no Maranhão dos anos 70, dominado por forças políticas obscuras –triste história feudal que perdura até os dias de hoje–, que ouvi pela primeira vez sua música e quedei-me entorpecido. Mal sabíamos o que dizia aquele inglês cheio de sotaque, mas a mágica e o calor de sua voz, o baixo gravíssimo fazendo o coração acelerar, as melodias que ecoavam no oco mais fundo da alma, aquilo tudo era como um grito de guerra, algo que nos enchia de entusiasmo e vontade de viver.
        
Groove afiado
Bob Marley tornou-se o ícone de uma saborosa música de cadência leve, dançante e mântrica, grito contra as injustiças do mundo cruel. Aliados ao som contagiante e versos de boa cepa, havia os preceitos de uma vida natural tornada por anéis de fumaça de marijuana e mergulho espiritual.
De Nine Miles para Trench Town, a célebre favela de Kingston. Foi lá que o jovem Bob começou a fazer um som com os amigos Bunny Livingstone e Peter McIntosh, influenciado pelos ídolos negros do rock, do soul e do rhythm’n’blues que ouvia no rádio e pelo ska, ritmo em alta na Jamaica dos anos 60. Assim nasceriam "The Wailing Wailers", que depois se tornariam os legendários "The Wailers", cuja excelência moldaria pérolas do gênero.
Para o êxito do grupo muito contribuiu a parceria com o gênio produtor Lee Perry. "Catch a Fire", o primeiro álbum internacional da trupe rasta, anunciava um novo som, um reggae de groove afiado, riffs mortais e letras combativas, e fez grande barulho na mídia.
A gravação de "I Shot the Sheriff" pelo deus branco da guitarra Eric Clapton, que em 1974 esteve no topo das paradas musicais americanas, fez o mundo ajoelhar-se aos pés deste jamaicano mestiço apaixonado por música e futebol. Até maio de 1981, há 30 anos, quando morreu vitimado por um câncer aos 36 anos, Marley produziu canções e discos que se tornariam universais.
Meses atrás fui presenteado com a audição da sessão aberta de "Is This Love", ou seja, pude ouvir, canal por canal, todos os instrumentos tocados na gravação original da música (febre destes tempos tecnológicos e piratas, rolam por aí sessões de Beatles, Led Zeppelin etc). Ouvidos isoladamente, cada instrumento parecia meio desafinado, algo precário –guitarra, vocais, metais, baixo...
Mas, ao ouvirmos tudo junto, dava-se então o milagre. A música soava bela, fluente, íntegra, como se ninguém a houvesse feito, como se ela estivesse ali desde que o mundo foi criado, como se fosse obra de Deus. Obra do deus Robert Nesta Marley.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Prêmios Santander Universidades premiará docentes, alunos e pesquisadores

Estudantes, docentes e pesquisadores-doutores de todo Brasil já podem se inscrever nos Prêmios Santander Universidades – Edição 2011. Os Prêmios estimulam o empreendedorismo, a pesquisa científica, a extensão universitária e a busca pela excelência das universidades, sempre com foco no desenvolvimento sustentável.

Para participar, os interessados devem acessar o site: www.santanderuniversidades.com.br/premios e fazer a inscrição até 13 de setembro de 2011. No hotsite, também é possível conferir cases das edições anteriores, com o histórico dos projetos vencedores.

Além do total de R$1 milhão em prêmios e bolsas de estudos internacionais, todos os inscritos, de todas as categorias, poderão realizar um curso on-line exclusivo da Babson College, instituição norte-americana, referência mundial no assunto. O curso tem o objetivo de proporcionar aos participantes uma formação básica, com certificação em empreendedorismo voltado à criação de novas empresas.

A internacionalização continua sendo uma das premissas do concurso. Os quatro melhores projetos das modalidades serão indicados a concorrer ao Prêmio Ibero-Americano de Inovação e Empreendimento. O evento é organizado pela Secretaria Geral Ibero-americana - SEGIB e inclui finalistas da Argentina, Peru, Colômbia, Chile e Espanha. Na fase final, quatro trabalhos serão vencedores e repartirão uma premiação total de 100 mil euros.

Os vencedores dos Prêmios Santander Universidades 2011 serão conhecidos no dia 21 de novembro, em cerimônia a ser realizada na Sala São Paulo, na capital paulista.

 Prêmio Santander de Empreendedorismo

O Prêmio Santander de Empreendedorismo é destinado aos alunos de graduação e pós-graduação, e tem por objetivo apoiar e reconhecer a criação e o desenvolvimento de projetos de estudantes com perfil e postura empreendedora. São quatro categorias: Indústria; Tecnologia da Informação, Comunicação, Cultura e Educação; Produtos e Serviços; e Biotecnologia e Saúde.

A premiação total é de R$ 200 mil, que representa R$ 50 mil por categoria, além de bolsas de estudos presenciais na Babson College para os líderes dos projetos vencedores e para o professor orientador. As bolsas incluem além do curso, a passagem aérea, hospedagem e alimentação, a serem utilizadas até julho de 2012 ou conforme grade curricular da Babson College.

Os finalistas receberão feedback de seus projetos e terão a oportunidade de apresentá-los para uma banca de executivos de renome no Brasil, com todas as despesas de deslocamento e estadia por conta da organização dos Prêmios.

Todos os projetos serão avaliados por dois parceiros do Santander Universidades: a Fundação Dom Cabral, com a colaboração da Endeavor,

 Prêmio Santander de Ciência e Inovação

O Prêmio Santander de Ciência e Inovação reconhece pesquisadores-doutores com pesquisas científicas de caráter inovador nas categorias: Indústria; Tecnologia Comunicação, da Informação e da Educação para Sustentabilidade;  Biotecnologia; e Saúde. O vencedor de cada categoria receberá o valor de R$50 mil, sem a obrigatoriedade de vincular o uso do prêmio à execução do projeto. É um reconhecimento à contribuição do cientista para o desenvolvimento da pesquisa brasileira.

A avaliação e o julgamento dos projetos serão realizados por uma comissão de pesquisadores ligados a instituições científicas, sob a coordenação da Academia Brasileira de Ciências (ABC), parceira do Santander Universidades.

 Prêmio Santander Universidade Solidária

Criado em 1996 pelo Banco Real, em parceria com a Universidade Solidária - UniSol, é um programa que tem como objetivo estimular a extensão universitária e a formação cidadã do futuro profissional. E além disso, visa disseminar o conhecimento das universidades à favor de comunidades com condições socioeconômicas desfavoráveis. Cada um dos 8 projetos de desenvolvimento sustentável com ênfase em  geração de renda vencedores receberá o valor de R$50 mil, para implementação do projeto. Além do apoio financeiro, cada projeto contará com a consultoria especializada da Unisol e da equipe técnica do Banco Santander, a fim de maximizar os resultados e promover o diálogo na busca das melhores soluções.

Prêmio Guia do Estudante - Destaques do Ano

Realizado em parceria com a Editora Abril, o Prêmio reconhece quatro instituições de ensino superior que se destacaram em 2011 com iniciativas da gestão das universidades para o desenvolvimento da educação do País, em busca de uma sociedade mais justa, equilibrada e sustentável.

Todas as instituições de ensino superior reconhecidas pelo MEC poderão participar respondendo ao questionário enviado pela Editora Abril . Os vencedores receberão troféu e divulgação de suas iniciativas nos principais veículos de comunicação do Brasil.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Sesc Centro Camina Grande abre inscrições para oficina de iluminação

Da Assessoria do Sesc/CG
 
O Projeto Oficinarte 2011 terá prosseguimento com a realização da oficina de Iluminação, que será realizada de 2 a 6 de maio, das 18 às 21 horas, no Sesc Centro Campina Grande. As inscrições já estão abertas e podem ser efetuadas com a doação de 3 quilos de alimento não perecível, que serão direcionados ao Banco de Alimentos do Sesc. Os projeto é voltado a comerciários, dependentes, artistas e à comunidade em geral.

A oficina será ministrada pelo iluminador e ator Napoleão Gutemberg, que já recebeu vários prêmios nacionais como iluminador de espetáculos teatrais e dança. No curso, que terá a duração total de 15 horas, serão repassadas as teorias e práticas da criação da luz de espetáculos a partir da concepção do texto, trabalhando seus símbolos e signos dentro de uma ambientação que permita o espectador entrar no universo da luz dos espetáculos.

O projeto Oficinarte iniciou em março e tem o objetivo de realizar seis oficinas com diferentes temáticas durante o ano, que possibilitem o engrandecimento do conhecimento artístico dos participantes. Estas oficinas são ferramentas nas quais são desenvolvidas técnicas rápidas e precisas que, quando aprofundadas, permitem aos seus participantes a condição de refletir e intervir na melhora da produção artística local.

Pessoas a partir de 16 anos podem se inscrever nas oficinas. Os interessados devem se dirigir ao Setor de Cultura do Sesc Centro Campina Grande, localizado na rua Giló Guedes, 650, Santo Antônio. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone (83) 3341-5800.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Brasil abre consulta pública sobre mudança na Lei de Direito Autoral

Por Alex Rodrigues, da Agência Brasil

Os interessados em contribuir com a elaboração do projeto de lei com o qual o Ministério da Cultura irá propor mudanças na Lei de Direito Autoral têm até sábado (30) para enviar as sugestões à Diretoria de Direitos Intelectuais do ministério.

O anteprojeto de lei que o ministério abre para consulta pública a partir de hoje (25) indica sete pontos que, segundo a diretoria, necessitam ser aperfeiçoados para regulamentar o uso não apenas de textos literários, de composições musicais, fotografias, mas também de obras intelectuais como sermões, conferências, programas de computador. A finalidade também é aumentar a proteção dessas obras.

Os sete pontos em destaque tratam das limitações aos direitos do autor; usos das obras na internet; reprografia das obras literárias; gestão coletiva de direitos autorais; supervisão estatal das entidades de cobrança e distribuição de direitos; unificação de registro de obras e controle de obras feitas sob encomenda.

Após o fim do prazo da consulta, o anteprojeto será debatido no Conselho Nacional de Políticas Culturais (CNPC), em audiências públicas nas comissões de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados e do Senado e em ao menos um evento público que o ministério promete realizar no final de maio. A previsão é que o projeto de lei resultante de todo o debate público seja enviado à Casa Civil em 15 de junho para, então, ser encaminhado ao Congresso Nacional.

As contribuições deverão ser encaminhadas em formulário específico disponível no site do ministério (www.cultura.gov.br) para o e-mail revisao.leiautoral@cultura.gov.br. Quem preferir pode enviar o formulário para a Diretoria de Direitos Intelectuais (DDI/MinC), no endereço SCS Quadra 09, Lote C, Ed. Parque Cidade Corporate – Torre B, 10º andar, CEP: 70.308-200, Brasília (DF).

De acordo com uma pesquisa divulgada há uma semana pela Consumers International, o Brasil tem a quarta pior legislação de direitos autorais entre os 24 países avaliados. Segundo a organização composta por órgãos de defesa do consumidor de vários países, o Brasil ficou à frente apenas da Tailândia (a pior situação), Chile e Reino Unido. Na avaliação da entidade, nesses lugares, as leis de propriedade intelectual castigam os consumidores, dificultando-lhes o acesso a serviços e produtos culturais. No Brasil, o levantamento foi feito com a contribuição do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

O relatório da Consumers International destaca que os países em desenvolvimento são os que detêm as leis mais prejudiciais ao consumidor. Uma das críticas feitas é a punição excessiva prevista aos consumidores considerados infratores da lei quando realizam tarefas cotidianas como, por exemplo, transferir arquivos de um equipamento para o outro, para uso pessoal. Por outro lado, não há qualquer punição prevista aos fornecedores que cerceiam os direitos do consumidor.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Werner Herzog, Youtube e a crise das imagens

Por Eduardo Simões, da Revista Cult

Aos 68 anos, o diretor, roteirista e produtor alemão Werner Herzog parece incansável. Prolífico, mal teve Cave of Forgotten Dreams (Caverna dos Sonhos Esquecidos), seu mais recente documentário, lançado no Festival de Berlim, em fevereiro deste ano, já está finalizando o próximo, Death Row (Corredor da Morte), sobre prisioneiros no corredor da morte nos Estados Unidos. E ainda tem na manga cinco filmes de ficção. Ele fará uma pausa de apenas três dias na pós-produção para participar do 3º Congresso Internacional de Jornalismo Cultural, em maio (sua palestra acontece no dia 17, às 10h30) e abrir uma pequena mostra de seus filmes no Instituto Goethe, em São Paulo, no mesmo mês, quando retorna pela “quinta ou sexta vez” ao Brasil, onde filmou uma de suas obras-primas, Fitzcarraldo (1982).

Não trará otimismo em sua bagagem. Para Herzog, a crítica de cinema está em extinção, há poucos filmes bons para festivais demais e a sétima arte vem sofrendo uma infantilização gradativa. Leia a seguir trechos da entrevista que ele concedeu por telefone, de Los Angeles, onde vive.

Como é sua relação com a crítica de cinema ao longo de sua carreira?
Werner Herzog – Nunca fui especialmente influenciado pela crítica de cinema. Em parte porque recebi péssimas críticas para alguns de meus melhores filmes, assim como boas críticas que achei um tanto deslocadas. Sempre foi claro para mim que uma boa crítica não melhora um filme, assim como uma crítica ruim tampouco torna o filme ruim. Ao longo de minha carreira, eu quase não li críticas. Para mim, são sempre como um acontecimento que pouco tem a ver comigo. Em termos gerais, hoje em dia vejo que a crítica de cinema está em extinção, pois o discurso sério vem sendo substituído pelo noticiário sobre celebridades. Muitos jornais e revistas nem têm mais críticos de cinema e quase tudo que você lê neles tem a ver com os astros de cinema.

E isso vale tanto para os Estados Unidos quanto para a Europa?
É algo que acontece no mundo todo.

A crítica não se tornou de alguma forma mais democrática, com o surgimento de blogs e redes sociais etc.?
Nunca li blogs, nem sei do que tratam. De qualquer modo, acho que o nível [da crítica] vem afundando em todo lugar. Em princípio, não sou contra a internet. Eu mesmo a utilizo, sobretudo trocando e-mails com meu irmão que mora em Viena, com quem trabalho. Há uma diferença de oito horas, porque vivo em Los Angeles. E assim podemos trocar informações, arquivos grandes etc. É um belo instrumento de trabalho. A questão é como se utiliza. Eu não tenho, por exemplo, nenhuma página de Facebook, uma conta no Twitter ou algo parecido.

Glauber Rocha, homenageado do 3º Congresso Internacional de Jornalismo Cultural, fez filmes com conteúdos políticos, com os quais enfrentou problemas com a censura durante a ditadura militar brasileira. O que significa fazer cinema político hoje?
Quando olho os trabalhos de Glauber Rocha, vejo uma grande poesia. Ele vivenciou, apreendeu e descreveu o Brasil como um poeta. Acho que ele fez apenas bons filmes. Naquela época, fim dos anos 1960, postulava-se um cinema pró-revolução no mundo. E isso logo se mostrou algo sem sentido. Glauber, com sua grande energia criativa, não se contagiou tanto por esse postulado político. Ele conseguiu retratar a realidade com imagens selvagens, com fantasia. Hoje em dia, em 2011, postular filmes políticos é algo que não faz sentido, como também não fazia naquela época. Tinha a ver com nossos sonhos coletivos. Filmes não têm de ser instrumentos para a política. Microfones são os instrumentos para a política, para discursos políticos. Não o cinema.

Seu mais recente filme, Caverna dos Sonhos Esquecidos, foi mostrado no Festival de Berlim, mas o senhor acabou não indo...
Isso foi um dilema. Eu já estava rodando meu próximo filme, Corredor da Morte, sobre presos no corredor da morte nos Estados Unidos, e não tinha qualquer controle sobre as permissões para filmar nas penitenciárias de alta segurança. E elas não eram adiáveis. Então fiquei entre ir para Berlim mostrar Caverna dos Sonhos Esquecidos e continuar a filmar no Texas e na Flórida. Expliquei para Dieter Koslick, diretor do festival, que era preferível fazer um novo filme a promover um já terminado.

Qual a importância e o peso dos festivais de cinema hoje em dia? Não há certa inflação de festivais?
Digo sempre que existe um problema fundamental aí: há milhares de festivais em todo o mundo, mas, no máximo, apenas quatro filmes realmente bons lançados por ano. Então há um desequilíbrio, de modo que os festivais significam bem menos do que no passado, salvo Cannes, Veneza e Berlim. E eles são como a crítica de cinema: não ajudam a levar mais pessoas ao cinema nem impedem que elas continuem indo por causa de suas premiações.

O Urso de Ouro para o filme iraniano Nader e Simin, uma Separação no último Festival de Berlim – ao qual o cineasta Jafar Panahi foi impedido de comparecer pelo governo de seu país – não teria sido uma premiação política?

Não vi o filme vencedor e não conheço a questão. Mas talvez possa dizer algo em termos gerais: alguns dos maiores filmes dos últimos tempos vieram do Irã, de diretores como Abbas Kiarostami, como Close-up e Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, por exemplo. Então não é uma surpresa que um filme de lá ganhe o Urso de Ouro. Trata-se de um país com 5 mil anos de alta cultura, 5 mil anos de poesia em sua história. E isso se reflete em seu cinema.

E quanto aos filmes brasileiros, o senhor tem acompanhado a produção recente do país e como a vê?
Nos últimos tempos não vi nada do Brasil. Isso acontece, em parte, porque em média vou apenas duas ou três vezes ao cinema por ano. Desde que me tornei cineasta, deixei de ser cinéfilo. Não tenho outra explicação para isso.

Em muitas de suas entrevistas, o senhor muitas vezes menciona uma crise das imagens. Como vê essa crise diante do surgimento de sites como YouTube etc. e da produção de imagens a eles associadas?
Não acho que tenha mudado nada com o YouTube. Para mim não há nada de novo aí. As novidades no universo das imagens e o desenvolvimento da linguagem têm de acontecer pelas mãos dos cineastas profissionais, por exemplo, ou por artistas que pintam ou fazem esculturas etc. E não é só uma questão formal, mas também de conteúdo, pois essas imagens de que falo têm a ver com a compreensão da condição humana. Isso não virá do YouTube. Eu diria que temos hoje em dia não uma falta, mas uma enxurrada de imagens, porém sem qualidade.

Dentro dessa enxurrada de imagens, o senhor diria também que há certa infantilização do cinema, sobretudo na indústria de Hollywood, com cada vez mais filmes voltados para o público infanto-juvenil?
Não diria que acontece somente com o cinema. Acho que existe em todo o mundo uma tendência cultural de “disneyficação” em vários campos da arte. Sobretudo em sociedades avançadas tecnologicamente.

De volta a seu último filme, Caverna dos Sonhos Esquecidos, que documenta as pinturas rupestres da caverna de Chauvet, no sul da França, por que a decisão de rodá-lo em 3D?
Foi muito difícil conseguir permissão para filmar lá, e o acesso ao público em geral também é restrito. O uso da tecnologia foi imperativo nesse filme para que eu pudesse captar melhor as pinturas no relevo da parede rochosa. Em princípio, sou cético quanto ao uso do 3D no cinema. Não serve, por exemplo, para comédias românticas. É mais para filmes pirotécnicos como Avatar. O que estou filmando agora, e os que ainda tenho como projeto, não precisam de 3D. Entendo, no entanto, que essa tecnologia seja de grande interesse para a indústria do cinema, porque não é possível piratear filmes assim.

Seus filmes sempre tiveram a natureza como verdadeira protagonista. Hoje em dia, em que questões como mudanças climáticas e aquecimento global estão em alta, o senhor mudou sua forma de representar a natureza?
Em geral as paisagens são usadas somente como um pano de fundo espetacular, seja em filmes, seja na propaganda, sobretudo. Para mim, elas devem ter o papel de protagonistas. Mas mudanças climáticas são questões políticas que não afetaram até agora a forma como eu as mostro em meus filmes.

Em reportagens sobre as revoltas no Egito e na Líbia exibidas na TV, a força das imagens lembrava filmes de ação bem encenados. Há um desafio para diretores de cinema de competir com a contundência dessas imagens quando tentam ou precisam replicá-las?
O que mais me chama a atenção e interessa aí é a força da internet e do chamado citizen journalism, as imagens captadas, por exemplo, com celulares, por quem está diretamente envolvido com a notícia, com uma manifestação; a rapidez com que essas imagens são reproduzidas na rede e adquirem um papel político forte dentro dessas manifestações. É uma nova forma de jornalismo e de participação política. Na TV, sobretudo nos EUA, vejo mais espetáculos, show business, com exceções como a BBC, que ainda faz um jornalismo sério.

E quanto a seu próximo filme, Corredor da Morte, sobre os prisioneiros no corredor da morte nos EUA, como foi sua relação com eles e quais foram as condições colocadas por ambas as partes para retratá-los?
É uma pergunta difícil. Eu não sou um ativista da questão da pena de morte. Esse debate era de certa forma irrelevante para mim, é algo que deve vir à tona automaticamente com o filme. Como eu tratei os prisioneiros? Com grande respeito. Os atos que cometeram foram monstruosos muitas vezes. Mas eu não estava retratando monstros. Eles ainda são seres humanos. Alguns queriam saber se eu simpatizava com eles. E eu respondia que simpatizava com aspectos legais de suas apelações, o que não significa necessariamente que gosto deles. Quero dizer que também tive de manter certa distância.

O senhor poderia fazer um exercício de autocrítica sobre seus últimos filmes? Há uma continuidade formal, estética e de conteúdo ou o senhor vê alguma ruptura?
Eu acho que todos os meus filmes têm um diálogo entre si, do primeiro ao último. Todos são como uma família. Alguns talvez não falem entre si, mas dançam.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Comunidade Quilombola Bonfim (PB) - Uma história de lutas e conquistas

Da Assessoria do Incra

As 22 famílias remanescentes de quilombo da Comunidade Senhor do Bonfim, localizado no distrito de Cepilho, no município de Areia (PB), no Território da Cidadania Borborema, comemoraram na semana passada a emissão na posse pelo Incra/PB da área com aproximadamente 122 hectares onde vivem.

O ato aconteceu na sede da Associação dos Moradores, foi anunciado por rojões e animado pelo grupo de ciranda da comunidade quilombola Caiana dos Crioulos, do município de Alagoa Grande. A solenidade reuniu o superintendente regional da autarquia, Marcos Faro; procurador da Instituição, Ridalvo Machado de Arruda; integrantes da comunidade e de outras quatro comunidades quilombolas paraibanas; representantes das secretarias estaduais de Educação e de Mulheres; bem como integrantes da Associação de Apoio às Comunidades Quilombolas da Paraíba (Aacade-Pb) e da Coordenação Estadual Quilombola (Cecneq).

Esta foi a primeira comunidade remanescente de quilombo do estado da Paraíba a ter sua área destinada ao Incra pela Justiça e a primeira a receber o Decreto Presidencial de Desapropriação por Interesse Social, assinado em 2009.

Atualmente, outros 22 processos para a regularização de territórios quilombolas encontram-se em andamento na Superintendência Regional do Incra na Paraíba.

De acordo com a presidente da Aacade-PB, Francimar Fernandes, das 35 comunidades remanescentes de quilombos identificadas na Paraíba, 33 já possuem a Certidão de Autodefinição expedida pela Fundação Cultural Palmares.

História de Resistência

A propriedade, que abriga o Engenho Bonfim, atualmente desativado, foi vendida em 2004 e se transformou em área de conflito. Os novos donos tentaram expulsar os moradores. Algumas famílias estão nas terras há mais de 90 anos.

Com o acirramento do conflito, e a partir do apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Pastoral dos Negros, a comunidade aos poucos foi tomando maior consciência de sua condição e dos direitos que a sua relação com o território lhes confere. Em dezembro de 2004 redirecionaram sua demanda, antes voltada para a desapropriação para reforma agrária, e entraram com um pedido de certificação como comunidade remanescente de quilombo junto à Fundação Cultural Palmares, que emitiu a certidão de autorreconhecimento em 18 de abril de 2005.

Como funciona o processo de regularização

De acordo com a antropóloga Maria Ester Fortes, oriunda do Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas do Incra/PB, o processo de regularização fundiária de comunidades quilombolas é demorado, mas indispensável ao futuro das comunidades quilombolas, que têm visto suas áreas cada vez mais diminuídas com a especulação imobiliária.

Para terem seus territórios regularizados, as comunidades quilombolas devem encaminhar uma declaração na qual se identificam como comunidade remanescente de quilombo à Fundação Cultural Palmares, que expedirá uma Certidão de Auto-reconhecimento em nome da mesma. Devem ainda encaminhar à Superintendência Regional do Incra uma solicitação formal de abertura dos procedimentos administrativos visando à regularização.

A regularização do território tem início com um estudo da área, a elaboração de um Relatório Técnico que identifica e delimita o território da comunidade. Uma vez aprovado este relatório, o Incra publica uma portaria de reconhecimento que declara os limites do território quilombola. A fase final do procedimento corresponde à regularização fundiária, com a retirada de ocupantes não quilombolas através de desapropriação e/ou pagamento das benfeitorias e a demarcação do território.

Ao final do processo, é concedido título de propriedade coletivo, pró-indiviso e em nome da associação dos moradores da área, registrado no cartório de imóveis, sem qualquer ônus financeiro para a comunidade beneficiada. Os títulos garantem a posse da terra, além do acesso a políticas públicas como educação, saúde e financiamentos por meio de créditos específicos.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Oscar Niemeyer, 103

Por Raul Juste Lores, da Revista Serafina

Seu mix de marxismo e erotismo continua vigente e vivo. Niemeyer é o artista brasileiro com maior projeção internacional. os planos atuais incluem um aquário submerso, uma catedral grandiosa, um estádio de futebol mais confortável...

Oscar Niemeyer está ansioso para descobrir os porquês científicos de um acontecimento tão inesperado quanto o tsunami no Japão.
Todas as terças-feiras, ele recebe a visita do físico Luiz Alberto Oliveira, doutor em Cosmologia, que organiza uma palestra-sarau em seu escritório. "Antes eu queria entender o Big Bang, afinal, pra ter uma explosão, é preciso haver matéria. Quem inventou a matéria do Big Bang?, pergunta-se.
Quando o visitei em seu escritório em Copacabana, em março, ele já preparava diversas perguntas para o professor. "Será que alguma obra conseguiria conter aquelas ondas do maremoto?" e ele mesmo responde: "Acho que não".
"A Terra está biruta", diz.
Ele alterna os palestrantes que abriga em seu escritório, dos mais diferentes temas, para "se manter atualizado". Em dezembro, completa 104 anos.
O corpo não acompanha os questionamentos efervescentes do arquiteto. "Não ando há seis meses, só consigo dar uns passinhos agora", suspira. "A velhice é uma merda."
Ele quase não vê. Cada pessoa que o visita em sua sala –e são muitas ao longo do dia– anuncia o próprio nome antes de apertar a mão do arquiteto. Niemeyer se desculpa com cada um por não poder se levantar para cumprimentar. Só nesses momentos parece irritado. "Queria agora sair do prédio caminhando, ver gente aqui em Copacabana, ver o povo na rua, mas dá trabalho me colocar no carro, no elevador, cansa".
Em 2009, teve um tumor no intestino e, ao extraí-lo, retirou também a vesícula. Em abril do ano passado, foi internado com infecção urinária. Em nosso encontro, era um homem lúcido e muito falante.
O arquiteto não para de imaginar novos projetos, que ainda nem tem clientes. "Quero fazer um aquário em Búzios em que o prédio esteja completamente submerso, no mar mesmo", diz. Visitantes veriam os aquários e o próprio mar por uma parede de vidro –os peixes soltos no mar veriam que os visitantes é que se encontram em um aquário.
"Continuo atrás de novas curvas, de ideias inesperadas. Só tem graça continuar trabalhando para fazer prédios totalmente novos, que nunca tenham sido pensados."
A lista de ideias é extensa. Uma catedral em que a cobertura sairá dos braços da cruz. "Não tenho cliente para essas, mas não importa, alguns dos melhores projetos não se constroem", diz. "Invento, pesquiso, quando o problema me interessa."
"Ultimamente penso muito em igrejas e catedrais. Continuo ateu, mas uma catedral abre possibilidades imensas para um arquiteto", diz e sorri. Na Idade Média, a Igreja concebia esses grandes templos para fascinar fiéis por seu gigantismo e potência - uma prova cabal da grandiosidade divina diante dos minúsculos humanos. Niemeyer compartilha essa ambição eclesiástica e adora criar formas grandiosas que assombram os indefesos homens.
Ele mostra o desenho de um estádio de futebol coberto que inventou. "Chove muito e os estádios não têm drenagem adequada, venta, faz sol forte. Pensei em inventar um estádio que não seja tão caro, mas que dê conforto para o torcedor."
Não acompanha as inúmeras polêmicas que cercam a Olimpíada do Rio em 2016 –da concentração excessiva de novos prédios em Jacarepaguá e dos poucos no centro histórico e no porto, que deveriam ser revitalizados, à falta de debate sobre investimentos urbanísticos que aproveitem o evento.
"Não estou acompanhando, não, mas acho que a primeira coisa a estudar é que prédios já existentes poderiam ser aproveitados", diz.
Mesmo com tantos projetos órfãos de patrocínio, não lhe faltam encomendas. Ele deve mexer no sambódromo para dar um prédio próprio ao camarote da Brahma. Deve comemorar –ainda que sem poder ir até lá– a primeira obra pronta na Argentina, o Porto da Música, com auditório e anfiteatro aberto. Está em Rosario, a 300 km de Buenos Aires, cidade de que gosta muito ("É bonita, o povo anda na rua, usa o espaço público e ainda janta tarde. São boêmios, como eu"). Nos últimos anos, espalhou novas obras na Itália, Reino Unido, Espanha, além de projetos para Grécia, Portugal e França. Mas suas principais obras estão mesmo no Brasil. São cerca de 600.
Graças a uma obra que se estendeu por várias décadas, Niemeyer também tem várias fases, tal qual Picasso ou Phillip Johnson. Nos últimos anos, sua produção mais recente não é tão bem avaliada pelos críticos, apesar da unanimidade do seu Auditório Ibirapuera, minimalista e de linhas decididamente retas.
Outro projeto em que começa a trabalhar agora é o de uma casa modernista em Londres, que já nasceria como uma espécie de símbolo ou museu do modernismo na capital britânica.
Quem fez o convite a Niemeyer é a influente Julia Peyton-Jones, diretora da Serpentine Gallery, que todo ano convida um superarquiteto para desenhar o pavilhão temporário de verão no parque de Kensington.
Nesse quem-é-quem da arquitetura mundial, o arquiteto fez um pavilhão em 2003 –e Peyton-Jones continua em contato com o artista. Quer essa casa simbólica para abrigar conferências e eventos logo no Reino Unido, país com relação tortuosa com o modernismo. O príncipe Charles, que adora edifícios neoclássicos e georgianos, já afirmou que os arquitetos modernos fizeram mais danos a Londres que os bombardeios da Luftwaffe nazista.
Niemeyer virou fetiche internacional, depois de ser fetiche no Brasil por diversas décadas, onde governantes parecem só se lembrar dele na hora de encomendar novas obras. E é talvez o artista brasileiro vivo de maior projeção internacional, justamente em uma área tão dependente de tecnologia e orçamentos generosos.
É o sobrevivente de uma geração que terminou com dois milênios de idas e vindas na reinterpretação da gramática da arquitetura grega, classicismo que se manteve inalterado do Renascimento ao neoclássico do século 19.
Com o franco-suíço Le Corbusier e a escola alemã Bauhaus à frente, o modernismo advogou por uma arquitetura despojada, funcional e democrática, evitando adornos desnecessários e democratizando a construção –o movimento surgiu nos anos 1920, quando as grandes capitais européias sucumbiam à gripe espanhola, à falta de saneamento e à favelização.
O arquiteto carioca deu curvas e uma plasticidade impensáveis ao puritanismo e a rigidez de suíços e alemães, mas virou herói do movimento, ainda mais por construir em um país então agrário e periférico. Pampulha, a Bienal de São Paulo, o Copan, a Oca, o Palácio Capanema, no Rio, e, claro, Brasília, viraram ícones instantâneos de um Brasil que firmava sua identidade.
O artista se maravilha com o avanço tecnológico que beneficia a construção hoje, impensável nos anos heroicos de Brasília. "No Renascimento, uma cúpula podia levar três anos para ficar pronta. Há alguns anos, era trabalho de meses. Na minha obra em Avilés, na Espanha, eles fizeram uma forma que permitiu a construção de uma enorme cúpula em menos de um mês", compara.
A entrevista acontece em uma pequena sala no escritório, aonde Niemeyer vai trabalhar todos os dias. O prédio que abriga o escritório fica em Copacabana, quase Arpoador, pertinho do famoso forte. É um belo edifício em art déco, com formas tão sinuosas que parecem de um antepassado niemeyeriano.
No terreno onde o prédio foi erguido em 1930, havia uma casa do pai de Niemeyer, que ele alugava para temporadas de verão. O edifício de dez andares é residencial e só o escritório modesto destoa na cobertura. Para chegar a ele, é necessário subir ao último andar do elevador, depois mais um lance de escada.
Niemeyer subiu essas escadas até os 90 e muitos anos, quando foi construído um pequeno elevador para transportá-lo.
As formas sinuosas do edifício se refletem na sala principal do escritório, todo envidraçado do chão ao teto na sala principal, com uma vista de Copacabana em ondas. Há duas chaise-longues desenhadas por Niemeyer e alguns rabiscos na parede. E nada mais, como para não competir com a vista. Ali, em uma prancheta, Niemeyer desenhou dezenas de projetos, sempre em pé.
O arquiteto fica em um quarto sem janelas, cercado de dezenas de livros e maquetas. "Fico aqui sentado todo o tempo", reclama.

Staff Familiar
Niemeyer está constantemente acompanhado por sua pequena equipe, netos e bisnetos que o visitam no escritório. Quem manda mesmo no pedaço é sua mulher, Vera Lúcia Cabreira, 64, com quem se casou em novembro de 2006, a um mês de cumprir 99 anos. Além de companhia onipresente, Vera é responsável pela agenda, contatos, a edição de livros da Fundação Niemeyer e da revista "Novo Caminho".
O arquiteto foi casado por 76 anos com Annita, que morreu em 2004. Eles tiveram uma única filha, Ana Lúcia, que tem uma galeria de arte.
Sua memória o leva a dar passeios inesperados. E passa a me contar sobre os anos em que morou em Paris, no exílio da ditadura militar no Brasil. "Se não morasse no Rio, acho que a cidade em que eu moraria com prazer seria Paris. Adorava", relembra. "Conversava até de política com os taxistas. Aqui no Brasil, somos mais brutos."
A memória dá mais uma voltinha. "Era amigo do Sartre, ele era muito porra-louca. Feio, muito feio, mas metido a conquistador!"
Volta-se para mim e pergunta se morei fora. "Na China, voltei de Pequim há menos de um ano", conto. "Sério? Que experiência, lá está crescendo muito!"
Depois de um par de perguntas, Niemeyer sorri. "As chinesas são bonitas?", pergunta. Ao seu lado, vários rabiscos feitos por ele formam mulheres nuas, comprovando que as curvas femininas, de fato, inspiram seus prédios. Fala, como em tantas entrevistas, de desigualdade social, de comunismo e de seus inabaláveis princípios. E comprova que, perto dos 104, seu mix de marxismo com erotismo continua vigente e ativo.

Roda viva
artistas e arquitetos analisam o legado do mestre

"Oscar Niemeyer é um desses
seres raros que ajudam a inventar nosso mundo e a transformá-lo.
Se ele é, como cidadão, um exemplo de generosidade e solidariedade,
como arquiteto mudou o curso da arquitetura moderna, tornando-a
mais rica de formas inusitadas e belas."

Ferreira Gullar
81, ensaísta e poeta brasileiro

"Niemeyer me incomodava muito.
Ele representava os anos 50 e 60, e eu estava interessado em arquitetura contemporânea, ignorada pelos professores. Hoje, obviamente, tenho muito respeito por ele, que além de grande arquiteto é grande filósofo. Infelizmente, adoro uma de suas frases: 'A vida é um sopro'"

Marcio Kogan
59, arquiteto e docente da Escola da Cidade, em São Paulo

"Os projetos de Niemeyer têm algo de escultural; às vezes parecem esculturas habitáveis, com linhas curvas e sinuosas de plasticidade impressionante. Ele é um dos maiores arquitetos da contemporaneidade. Mas em vários projetos há problemas funcionais, de ventilação e de conforto térmico. No Brasil, pobres moram em conjuntos habitacionais indignos. Gostaria de ver um deles projetado por Niemeyer"
Milton Hatoum
59, formado em arquitetura, tradutor, professor e escritor, autor de "Relato de um Certo Oriente" (1990), entre outros

"Agora que o Brasil ganha relevância mundial, a obra de Niemeyer ganha importância: fortalece nossa personalidade. Brasília, pela arquitetura, é muito mais nossa capital do que o Rio de 1960. Niemeyer foi fundamental para que tivéssemos a estatura cultural de um país incontornável no mundo"
André Corrêa do Lago
52, diplomata e crítico de arquitetura.
Autor de "Oscar Niemeyer, uma Arquitetura
da Sedução" (2007), entre outros

sexta-feira, 15 de abril de 2011

O Capitalismo que devora - Breve reflexão sobre moradores de rua

Por Marcia Tiburi, da Revista Cult

Nas grandes cidades, pessoas que não têm onde morar são contraditoriamente chamadas de “moradores” de rua. É um eufemismo que acoberta o quadro da injustiça social típica das sociedades em fase de capitalismo selvagem, aquele no qual a eliminação do outro é a regra. Que tantos e cada vez mais vivam nas ruas é uma prova de que o famoso instinto gregário do ser humano se esfacela, ou assume formas cada vez mais enganadoras porquanto mais voláteis em uma sociedade que é, ao mesmo tempo, de massas e de indivíduos que não têm a menor noção do que significa o outro.

O aumento das relações virtuais em detrimento das relações “atuais” é a própria perversão das massas marcadas pela anulação física individual em nome de um eu abstrato, sustentado apenas como imagem, como avatar. E que tem como correspondente um outro reduzido à sua mera abstração. Há, certamente, exceções para a regra da distância com que o eu mede o outro.

Dizem as pesquisas que o número de pessoas vivendo sem teto cresceu nos últimos anos por causa do desemprego. E são milhares. Motivos além do desemprego podem confundir quanto ao sentido (e o sem sentido) da complexa experiência vivida por essas pessoas. Afinal, pode-se encontrar entre os que vivem nas ruas até mesmo quem não se sente em situação de injustiça social.

A população das ruas das grandes cidades é composta de habitantes (ou desabitantes) provisórios ou não, que estão ali por motivos diversos. Muitas vezes são afetivos. Não é raro encontrar ricas histórias de vida entre as pessoas sem morada, desde aquele que renunciou à vida burguesa por considerá-la insuportável, até quem por meio de inesperadas leituras filosóficas criou um significado para o ato de “habitar” a transitoriedade, ou seja, “desabitar” instransitivamente e estar assim, na mera existência.

Que não habitar uma casa possa significar uma experiência existencial é, no entanto, apenas a exceção que confirma a regra da contemporânea injustiça social a cuja base racional e afetiva tantos entregam as forças. Renunciar, desistir, jogar a toalha, permitir-se a impotência como o Bartleby, de Melville, ou o fracasso, como um dia afirmou J. L. Borges, pode ser o único modo de viver em um mundo marcado pela melancolia e pelo sem sentido em termos políticos, estéticos e metafísicos.

O cenário social contemporâneo é o espaço e o tempo dessa possibilidade de fracasso que diz respeito à potencialidade mais profunda de nossos tempos. É a forma mais terrível do mal, a da banalização que se estabelece na vida humana como força lógica. Como um “deixar acontecer” ao qual damos o nome de “abandono”, esse ato de exílio, de ostracismo, de curiosa rejeição sem ação. A mendicância das pessoas é apenas a verdade íntima do capitalismo como mendicância da própria política deixada a esmo em nome de antipolíticos interesses pessoais. A mendicância é a imagem social das escolas, dos hospitais públicos, do salário mínimo…

Democracia de teto e paredes

“Moradores de rua” são a figura mais perfeita do abandono que está no imo da devoração capitalista. Convive-se com eles nos bairros elegantes das cidades grandes como se fossem um estorvo ou, para quem pensa de um modo mais humanitário, como um problema social a ser resolvido filantropicamente. Alguns moram em lugares específicos, têm sua “própria” esquina, carregam objetos de uso aonde quer que vão, outros perambulam a esmo desaparecendo da vista de quem tem onde morar. São meras fantasmagorias aos olhos de quem não é capaz de supor sua alteridade. Esmagados pela contradição de morar onde não mora ninguém, não têm o direito de ser alguém. Partilham o deslugar. E, no entanto, praticam o mesmo que os outros dentro de suas casas: dormem, comem, fazem sexo. A condição humana é o que se divide por paredes ou na ausência delas. A democracia torna-se uma questão de nudez e exposição da vida íntima.

Ninguém “mora na rua”; antes, quem está na rua não mora. Quem está fora dos básicos direitos constitucionais está excluído da sociedade. E muito mais além da Constituição, está excluído pelo próprio status com que é medido. O status de “morador de rua” é apenas um modo de incluir os excluídos na ordem do discurso acobertadora do fascismo prático de cada dia oculto sob o véu da "sensibilidade" burguesa. Se o princípio de autoconservação a qualquer custo é a base da ação de indivíduos unidos na massa, está imediatamente perdida a dimensão do outro sem a qual não podemos dizer que haja ética ou política. Mesmo sob o status de morador de rua, o mendigo da nossa esquina é a prova do fracasso de todos os sistemas. Se as estatísticas não mudarem comprovando que a tendência da exceção pode ser a regra, talvez a democracia de teto e paredes não sirva mais a ninguém em breve. Só que às avessas.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Xingu 50 anos

Por Rodrigo Vargas, da Folha de São Paulo

Criado em abril de 1961, o parque indígena do Xingu completa 50 anos com a maior parte de seus 2,8 milhões de hectares praticamente intactos, mas cercados por áreas de desmatamento por todos os lados.
Imagens de satélite mostram que o parque, com quase 6.000 índios de 16 etnias, vem assumindo cada vez mais as feições de uma "ilha" verde -em torno da qual surgem várias frentes de expansão urbana e agropecuária.
Na lista de 43 municípios que mais desmatam a Amazônia, 7 fazem divisa com o parque. Entre 2000 e 2007, segundo o ISA (Instituto Socioambiental), área equivalente à de Alagoas foi desmatada na porção mato-grossense da bacia do rio Xingu.
Essa região fora do parque abriga 6,5 milhões de cabeças de gado, mais de 30% das áreas de soja em Mato Grosso e já atrai interesse por seu potencial hidrelétrico.
Nos últimos cinco anos, de acordo com a Secretaria Estadual do Meio Ambiente, quatro pequenas usinas foram licenciadas.

ESPREMIDOS
Como a demarcação do parque indígena não incluiu nascentes dos principais rios, os índios são afetados por transformações do entorno. E dizem temer o futuro.
"Estamos espremidos e apavorados", diz Korotowi Ikpeng, 39, da etnia icpengue. Para ele, as mudanças já são perceptíveis na aldeia em que vive, no Médio Xingu.
"Antes, a gente via os peixes no fundo do rio. Hoje, os [rios] formadores do Xingu estão arenosos. O desmatamento também afetou a caça, cada dia mais difícil", diz.
O índio caiabi Pikuruk Kayabi, 29, diz que as divisas do parque foram no início fixadas sobre áreas de mata fechada. Hoje "é floresta de um lado, pasto e soja do outro".
A área das cabeceiras do Xingu chegou a ser incluída em uma categoria de proteção na proposta do zoneamento ambiental do Estado.
Na Assembleia Legislativa, porém, a bancada ruralista aprovou um substitutivo que considera a região como uma "área consolidada com predomínio de agricultura".
O desmate e a degradação dos rios, aliados a um crescimento da população indígena acima da média nas últimas décadas, formam um cenário de insegurança alimentar, diz a Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), que desde 1965 tem um programa de atendimento à saúde no Xingu.
Segundo a entidade, as terras para a agricultura tradicional foram reduzidas, fazendo com que seja cada vez mais difícil obter alimentos.

REDES SOCIAIS
Os desafios não se limitam à esfera ambiental, diz Awasi Kaiabi, 31, diretor de uma escola no Baixo Xingu.
Com 75% da população com menos de 30 anos, o local vive um conflito de gerações, conta ele.
"Os mais velhos querem preservar a cultura e são contra a entrada de coisas dos brancos. Já os jovens querem trazer novidades."
Além de antenas parabólicas, o universo tecnológico dos xinguanos já inclui computadores, sistemas de bate-papo via internet e a participação em redes sociais.
Awasi diz não ser contra a modernidade e afirma que o currículo da escola que dirige inclui informática.
"Há 50 anos, o parque estava isolado. Hoje, os brancos são nossos vizinhos. O que mais ensinamos a nossos alunos são noções de sobrevivência, enquanto índios, nessa situação."

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Um hábito que faz falta à alma de nossa gente

Por Luciano Siqueira, do Portal Vermelho

Ainda nos quarenta do século passado Monteiro Lobato escreveu que “um país se faz com homens e livros”. Desde então temos evoluído para nos tornarmos de fato uma grande nação, a ponto de já sermos a sétima economia do mundo, em vias de alcançar a quarta posição no pódio. Não é pouco. Porém em matéria de livros, quer dizer, da leitura de livros, continuamos bem atrás da maioria das nações desenvolvidas e em desenvolvimento.

Há uma pesquisa de 2007 (creio que seja a mais recente), feita pelo Instituto Pró-Livro, que demonstra isso. Primeiro anota que dos quase 200 milhões que somos, 77 milhões estão na categoria de não leitores, dos quais 21 milhões são analfabetos. Leitores são aproximadamente 95 milhões – que lêem, em média, 1,3 livro por ano. Se acrescentarmos livros de natureza didática ou pedagógica, esse índice chega a atingir 4,7.

É pouco, mas já é alguma coisa – alguém pode comemorar. Na verdade, é pouquíssimo. Nos Estados Unidos a população lê espontaneamente em média 11 livros por ano. Na França, 7; na Colômbia, 2,4. Não tenho comigo dados atuais, mas sempre se soube que argentinos e chilenos guardam relação de intimidade com o livro bem superior à nossa.

Segundo a Câmara Brasileira do Livro (CBL) e o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), que integram o Instituto Pró-Livro, a pesquisa captou traços da subjetividade do brasileiro em sua relação ainda frágil com o livro. Dentre os leitores, 41% revelam prazer em ler no tempo livre, enquanto 13% admitiram que não gostam tanto.

Dos 95 milhões de leitores em geral, 22% confessam que lêem livros apenas por obrigação.

“O livro é uma janela para o mundo e para o sonho”, disse um jovem participante de uma mesa-redonda de não-escritores que coordenei na última Bienal do Livro de Pernambuco. Se for assim – e é, sem dúvida! -, faz muita falta à alma de nossa gente uma relação de amor com o livro. O distanciamento e a indiferença têm que ser superados. Sob pena de nos atrasarmos em demasia na formação de uma consciência social avançada.

Que fazer? A pesquisa do Instituto Pró-Livro – traduzida no documento Retrato da Leitura no Brasil – dá a dica. Ampliar o acesso ao livro e investir na formação de leitores. Primeiro, pela força do exemplo: se os pais e familiares adultos cultivam o hábito da leitura, influenciam crianças e adolescentes. Segundo, a escola: quanto maior o nível de escolaridade, mais amplo o tempo dedicado à leitura.

Mas da minha modesta condição de apaixonado por livros e feliz avô de Miguel que aos 5 anos adora freqüentar livrarias, onde faz suas escolhas, arrisco dizer que o buraco é ainda mais embaixo: tem a ver com raízes culturais que sempre valorizaram a tradição oral, na linha direta de nossas matrizes indígenas e africanas. Mas aí já é tema para especialistas: faço a provocação e me calo, pois tenho em mãos o belo romance “Galiléia”, de Ronaldo Correia de Brito, que estou relendo. Com indizível prazer.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Maria Bonita - Uma das precursoras do feminismo no Brasil


Por Xico Sá, da Revista Serafina

No centenário de nascimento de Maria Bonita, fica a pergunta: afinal, os cafunés que Lampião adorava receber fortaleciam ou enfraqueciam o bando?
Essa menina enjoou da boneca mais cedo do que as outras. Era o que se define no Nordeste como baixinha invocada. Tipo que a gente gama pela brabeza e pelo destemor de se jogar lindamente em nossos braços.
– Como é, quer me levar ou quer que eu lhe acompanhe? –sapecou a baiana, idos de 1929, dos 18 para 19 anos, deixando Virgulino Ferreira, o Lampião, acossado, sem saída.
O temido bandoleiro, que já havia deixado um rastro de sangue pelos sertões, estava diante de uma mulher que o fazia tremer como vara verde de canafístola:
– Como você quiser, Maria; eu também quero. Se estiver disposta a me acompanhar, vambora" –respondeu, assombrado com a danação da pequena.
E lá estava formado, com esse diálogo fumegante, o casal mais lendário dos sertões. Bonnie & Clyde, a versão americana desta parelha, é nada diante da aventura na caatinga.
A moreninha mignon, olhos enfeitiçadores –charmosamente estrábicos–, era a primeira fêmea a participar de um bando de cangaceiros, uma história dominada pelos homens desde que o século 18, quando o pernambucano José Gomes (1751-1776), o Cabeleira, deu início a este ramo.
O pioneirismo de Maria Gomes de Oliveira enfrentou resistência. A suspeita dos cabras de Lampião era que a presença feminina enfraqueceria o cangaço, facilitando a captura dos fora-da-lei por parte das forças policiais ou "volantes", como eram batizadas.
"Homem de batalha não pode andar com mulher. Se ele tem uma relação, perde a oração, e seu corpo fica como uma melancia: qualquer bala atravessa", declarou Balão, um dos seguidores do grupo.
O sociólogo e psicanalista cearense Daniel Lins, no seu livro "Lampião, o Homem que Amava as Mulheres" mostra o contrário. A tropa ganhou mais força com a presença delas. Um depoimento do bandoleiro Volta Seca sustenta o argumento: "Elas se mostravam sempre corajosas, era raro que criassem problemas".
Há quem entenda a participação de Maria Bonita e suas amigas, companheiras de outros integrantes do bando, como um marco precursor do feminismo no Brasil. "Pela primeira vez na história, as mulheres dividiam as tarefas com os homens igualitariamente. E o comprimento da saia subiu para acima do joelho", diz um dos principais especialista do ciclo do cangaço, o historiador Frederico Pernambucano de Melo, da Fundação Joaquim Nabuco, do Recife, autor do clássico "Guerreiros do Sol".
Quando conheceu Virgulino Ferreira, na fazenda Malhada do Caiçara, hoje município de Paulo Afonso (BA), onde Lampião se refugiava, Maria era casada, desde os 15, com o sapateiro José Miguel da Silva, o Zé do Neném, contra quem pesava, naquele cenário machista, a suspeita de ser estéril. A convicção que estava diante do amor da sua vida foi fatal para o fim do relacionamento de quase quatro anos.
O rei e a rainha do cangaço se grudaram, entre batalhas, dengos e cafunés –um capricho de Virgulino–, durante nove anos, até que a morte os separou, em 28 de julho de 1938, quando Lampião foi morto pela PM e Maria, degolada, na mesma ocasião, na gruta de Angicos, em Poço Redondo, Sergipe.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Aniversário de Charles Baudelaire

Por Tarsila Couto de Brito com a colaboração de Selenia Granja, do Portal Vermelho

No aniversário de 190 anos do nascimento de Charles-Pierre Baudelaire, comemorado no último sábado (09), preparamos uma homenagem com textos e poesias do acervo deste renomado poeta e teórico da arte francesa.

 
"Todos os imbecis da burguesia que pronunciam sem parar as palavras ‘imoral, imoralidade, moralidade na arte’ e outras coisas estúpidas, me fazem lembrar Louise Villedieu, prostituta de cinco francos que, me acompanhando uma vez ao Louvre, aonde nunca havia ido, se ruborizou e cobria o rosto, e, me puxando a todo instante pela camisa, me perguntava, diante das estátuas e dos quadros imortais, como podiam exibir publicamente tais indecências". Baudelaire



Uma música dissonante na modernidade

Conta o mito que, depois de uma terrível experiência no Hades, Palas-Atena construiu um instrumento capaz de imitar os sons penetrantes e agudos emitidos pelas górgonas e suas serpentes. Ao soprar a flauta, porém, a deusa sentiu-se deformada como os monstros que conheceu e, assustada, jogou-a fora. Pã, deus disforme por natureza, apossou-se da flauta no intuito de competir com Apolo e sua lira. O sátiro perdeu a competição porque a lira produzia uma melodia que se harmonizava à palavra poética e, consequentemente, trazia tranquilidade ao mundo. A flauta de Pã, ao contrário, emitia um som dissonante que não deixava qualquer espaço para o canto, além de presentificar o terror do mundo dos mortos. A narrativa mítica de criação da flauta ilumina de modo alegórico a história do gênero lírico: As Flores do Mal (1857) de Charles Baudelaire inauguraram a modernidade na poesia, substituindo a lira de Apolo pela flauta de Pã. Alguns poderiam objetar que o romantismo já havia trazido a modernidade para o gênero lírico, com o culto do eu, mas foi Baudelaire quem deu substância, nome e cor à vivência de um mundo adoecido por séculos de luzes.

Em sua última versão, As Flores do Mal estão divididas em seis partes: “Spleen e Ideal”, “Quadros parisienses”, “O vinho”, “As flores do mal”, “Revolta” e “A morte”. Trata-se de um engenhoso sistema lírico-narrativo em que se definem novas concepções de linguagem, de mímese, de poesia, e ainda novas compreensões de história, cristianismo, vida religiosa e morte. Proponho aqui uma leitura desse conjunto como a epopéia do poeta na modernidade [1]. Observando a figurativização do Poeta ao longo do livro, é possível perceber uma progressiva tomada de consciência das condições materiais, existenciais e espirituais impostas ao artista na Paris do Segundo Império. Seu trabalho é heroico porque ele deve sobreviver em meio à cidade tumultuada e asfixiada pelo asfalto e pela iluminação artificial, onde o preço do progresso é, nas palavras de Walter Benjamin, "a desintegração da aura na vivência do choque". Nestas condições, o poeta é arrancado de seu estado de inocente harmonia com o mundo. Em lugar da lira, a flauta de Pã. Transforma-se, assim, em carrasco de si mesmo, impondo-se as visões agressivas da cidade moderna, com o intuito de manter-se nobre diante do que há de mais repugnante.

Considero “Spleen e Ideal” o primeiro canto dessa epopeia. Oitenta e cinco poemas estão aí agrupados em função de apresentar o Poeta desde seu maldito nascimento (I, “Benção”) até o momento em que assume sua “consciência dentro do mal” (LXXXIV, “O irremediável”). Ao longo desta trajetória, o Poeta reconhece que o mundo moderno não é seu lugar (II, “O albatroz”) e sente saudade do tempo da harmonia (V, sem título). O poema “Correspondências” (IV) é muito importante para a compreensão da nova concepção de linguagem advinda dessa percepção: a linguagem comum não revela as verdades do mundo. Somente o poeta, com sua linguagem imprevisível, ainda é capaz de recuperar a unidade perdida. Com isso, impõe-se a obrigação de reinventar-se para fazer nascer algo novo (X, “O inimigo”), e começa sua obra com um poema sobre a tarefa da arte (XI, “O azar”). A partir deste momento, o Poeta passa a perceber problemas antes desconhecidos: “a sombria dor das quimeras ausentes” (XIII, “Ciganos em viagem”), a singularidade da postura de “Dom Juan nos infernos” (XV), a insuficiência do conceito tradicional de beleza para os tempos modernos (XVII, “A beleza”).

Uma nova concepção de beleza faz-se necessária. O terror é o fundamento de seu trabalho artístico (XVIII, “O ideal”; XX, “A máscara”; XXI, “Hino à beleza”). Tal trabalho aguça sua saudade do paraíso. A figura feminina aparece como promessa de ascensão (XIX, “A giganta”), mas rapidamente revela-se força de queda (XXII, “Perfume exótico”; XXIII, “A cabeleira”; XXVI, “Sed non satiata”; XXVIII, “A serpente que dança”). Frustrado, o poeta volta-se para a concretização de seu ideal de beleza e escreve “A carniça” (XXIX). Este poema oferece-nos uma nova concepção de mímese, que rejeita a cópia fiel e preconiza a deformação. Em seguida, o Poeta arrepende-se de ter ido tão longe. Com um poema de penitência (XXX, “De profundis clamavi”), ele lamenta a “luz perversa desse sol” da consciência e inveja a ignorância do animal.

Tarde demais. Só os ignorantes serão perdoados, dizem as Sagradas Escrituras. O poeta já não pode evitar as revelações de sua consciência. Dividido pelo desejo do sublime e pela consciência irônica da queda inevitável, o Poeta segue – experimentando as pequenas e limitadas elevações oferecidas pelo amor (XXXIV, “O gato”; XXXVIII, “Um fantasma”; XL, “Semper Eadem”; entre outros), pelo fumo (LXVIII, “O cachimbo”), pela música (LXVIX, “A música”) e pela solidão (LI, “O gato”; LIV, “O irreparável”; LV, “Conversa”). “O sino rachado” (LXXIV) ilustra bem as consequências dessa cisão: “Minha alma está rachada, e quando, em agonia,/ Quer povoar de canções o azul da noite fria,/ Ocorre muita vez que a voz se lhe enfraquece” (p.160). O Poeta conhece, finalmente, seu maior algoz na sequência de quatro poemas (LXXV a LXXVIII) que variam sobre o mesmo tema, o tédio, e possuem o mesmo título, “Spleen”. Sem forças, o herói da modernidade encontra abrigo nesse “taciturno exílio da vontade”, afeiçoando-se ao nada (LXXIX, “Obsessão”; LXXX, “O gosto do nada”) e simpatizando-se com a morte (LXXII, “O morto alegre”; LXXXII, “Horror simpático”).

Se no começo de sua jornada modernidade adentro, o Poeta acreditava na salvação por meio do sofrimento, expressava sua fé em que lhe estava reservado um lugar “nas radiantes fileiras das santas legiões”, maldizia aqueles que não podiam ver a luz do “belo diadema etéreo e cintilante” prometido (I, “Benção”), o processo de desencantamento descrito acima deu-lhe uma nova consciência: a ideia de que o poeta seria o guia dos homens na era do progresso não passou de uma ilusão romântica; o poeta, na modernidade, é um triste alquimista que transforma toda promessa de paraíso em inferno (LXXXI, “Alquimia da dor”). O poeta ganha, assim, a máscara d“O heautontimoroumenos” (LXXXIII), torna-se carrasco de si mesmo. O Poeta assume a impossibilidade de escolher entre o Spleen e o Ideal como um estigma. Ele não quer abrir mão da consciência conquistada. O preço disso é o absurdo de entregar-se a si mesmo como quem se entrega ao inimigo [2] – o Mal capaz de nos abater cresce dentro de nós. Trata-se, pois, de um sacrifício consciente da ausência de redenção (LXXXIV, “O irremediável”).

O Poeta não quer, ao mesmo tempo, abrir mão da poesia. Heroicamente, busca na cidade (“Quadros parisienses”), no vinho (“O vinho”) e no abandono a tudo que é destrutivo (“As flores do mal”), fugir às banalidades do cientificismo. O obscuro e o dissonante são as únicas possibilidades para a arte. Em sua análise dos “Quadros Parisienses”, Walter Benjamim (1989) destaca o modo como, sensível às peculiaridades do mundo, o Poeta realça o mistério na metrópole moderna. Opõe-se a esse olhar sensível do artista aqueles descritos em seus poemas: o olhar alienado da mendiga ruiva (LXXXVIII), o olhar frio dos sete velhos (XC). O poema "As velhinhas" (XCI) fala desses órgãos de "imaginar" como que idiotizados, tal qual uma "menina/que se assusta e sorri a tudo que cintila". São olhos vazios como se tivessem perdido sua função, capazes apenas de uma ação mecânica. O olhar na modernidade está doente. De acordo com Benjamin, sobreviver e matar-se seriam os extremos a que o poeta poderia chegar. Baudelaire parece dizer que herói seria aquele que, consciente de sua cegueira, arrancasse os próprios olhos, sem esperar, contudo, alcançar a sabedoria.

No terceiro canto das Flores do Mal, o Poeta encontra-se com os trabalhadores, os assassinos, os solitários e os amantes em “O vinho”, “óleo que os músculos enrija aos lutadores” (CIV, “A alma do vinho”). Mais do que fuga da realidade, a embriaguez do vinho é valorizada como uma nova episteme, uma forma de conhecer o mundo em suas distorções. Nesse sentido, a imagem do vinho em Baudelaire tem sido associada à sua concepção de poesia. Por fim, o Poeta entrega-se completamente ao ritmo dissoluto da modernidade. O quarto grupo de poemas que dá nome a todo o livro de Baudelaire (“As flores do mal”) canta o demônio, que fornece ao Poeta “o aparato sangrento e atroz da Destruição” (CIX, “A destruição”); celebra o cadáver como mártir da “multidão impura” (CX, “A mártir”); amaldiçoa as mulheres e suas idealizações romântico-burguesas (CXI, “Mulheres malditas”); invoca a Orgia e a Morte como duas boas irmãs que oferecem o leito ao Poeta, “o favorito do inferno e cortesão falido” (CXII, “As duas boas irmãs”); dessacraliza a musa, que se junta aos demônios para escarnecer do Poeta (CXV, “A Beatriz”); declara o fim de toda utopia (CXVI, “Uma viagem a Citera”).

Apesar de ter transformado o mal na força criadora de sua produção, o Poeta sente-se frustrado. No penúltimo círculo de sua infernal epopeia, decide fazer ruir o imaginário cristão responsável por sua miséria existencial. “Revolta” compõe-se de seis poemas centralizados na inversão valorativa das figuras de deus e do diabo. O Poeta admira e identifica-se com a revolta do anjo caído que se fortalece quanto mais é exilado, ofendido, vencido. Cristo aparece apenas como mais um abandonado por deus: “Em que tu foste o mestre enfim? Dize: remorso/ Teu flanco não rasgou mais fundo do que a lança?” (CXVIII, “A negação de São Pedro”). Seu satanismo, no entanto, não é necessariamente uma heresia, posto que, assim como já havia logrado subverter o discurso progressista usando suas próprias imagens, o Poeta usa a linguagem cristã para demonstrar as falácias do cristianismo, principalmente a mentirosa promessa de redenção. Assim é que o Poeta, abandonado por deus, carrasco de si mesmo, considera legítima “A negação de São Pedro” (CXVIII), defende a raça de Caim (CXIX, “Abel e Caim”), entoa cânticos a seu irmão de queda, Satã (CXX, “As litanias de Satã”).

Do paraíso ao inferno; no inferno a consciência (“Spleen e Ideal”); com a consciência, a poesia do terror (“Quadros parisienses”, “O vinho” e “As flores do mal”) e do mal (“Revolta”). Em seu último canto, “A morte”, o Poeta está cansado. Permanentemente identificado aos párias da vida moderna com quem comungou o vinho, busca, como eles, o fim absoluto, pois não há prazer que satisfaça a vontade de consolo e descanso (CXXI, “A morte dos amantes”; CXXII, “A morte dos pobres”), não há ídolo que sacie a vontade de beleza (CXXIII, “A morte dos artistas”). O último poema de As Flores do Mal, “A viagem” (CXXVI), avalia todas as tentativas de fuga empreendidas pelo homem. Tudo não passa de “Fortuna singular cujo alvo não se alcança”. Em todo lugar, o tédio “cinge com suas teias”. Em qualquer tempo, o homem não passa de “um oásis de horror”. Poiesis negativa, a morte é a única promessa passível de confiança – “Para encontrar no Ignoto o que ele tem de novo!”. O que é o novo? Perguntou uma vez o crítico Hugo Friedrich. Baudelaire não nos dá uma definição. A trajetória de desencantamento vivida pelo Poeta desde o momento em que a lira de Apolo lhe foi arrancada das mãos até sua entrada na modernidade anunciada pela música dissonante da flauta de Pã obriga a uma nova postura diante do mundo. Não há respostas, mas novos problemas.

Notas:

[1] Marcos Siscar, professor de literatura na Unesp, esboça uma ideia parecida ao tratar do discurso de crise instaurado por As Flores do Mal. Para o crítico brasileiro, o heroísmo do poeta moderno está em sobreviver. Cf. SISCAR, Marcos. "Responda, cadáver": o discurso da crise na poesia moderna. Alea, Rio de Janeiro, v.9, n.2, Dec.2007.

[2] Já no poema de abertura de As Flores do Mal, “Ao leitor”, essa consciência no mal é figurativizada como “um milhão de helmintos” que crescem em nosso crânio.

 Algumas poesias de Charles Baudelaire
 
Hino à Beleza

Vens do fundo do céu ou do abismo, ó sublime
Beleza? Teu olhar, que é divino e infernal,
Verte confusamente o benefício e o crime,
E por isso se diz que do vinho és rival.

Em teus olhos reténs uma aurora e um ocaso;
Tens mais perfumes que uma noite tempestuosa;
Teus beijos são um filtro e tua boca um vaso
Que tornam fraco o herói e a criança corajosa.

Sobes do abismo negro ou despencas de um astro?
O Destino servil te segue como um cão;
Semeias a desgraça e o prazer no teu rastro;
Governas tudo e vais sem dar satisfação.

Calcando mortos vais, Beleza, entre remoques;
No teu tesoiro o Horror é uma jóia atraente,
E o Assassínio, entre os teus mais preciosos berloques,
Sobre o teu volume real dança amorosamente.

A mariposa voando ao teu encontro ó vela,
"Bendito este clarão!" diz antes que sucumba.
O namorado arfante enleando a sua bela
Parece um moribundo acariciando a tumba.

Que tu venhas do céu ou do inferno, que importa,
Beleza! monstro horrendo e ingênuo! se de ti
Vêm o olhar, o sorriso, os pés, que abrem a porta
De um Infinito que amo e jamais conheci?

De Satã ou de Deus, que importa? Anjo ou Sereia,
Se és capaz de tornar, – fada aos olhos leves,
Ritmo, perfume, luz! – a vida menos feia,
Menos triste o universo e os instantes mais breves?


O Rebelde

Um Anjo em fúria qual uma águia cai do céu,
Segura, a garra adunca, os cabelos do ateu
E, sacudindo-o, diz: "À regra serás fiel!"
(Sou teu Anjo guardião, não sabias?) És meu!

Pois é preciso amar, sorrindo à pior desgraça,
O perverso, o aleijado, o mendigo, o boçal,
Para que estendas a Jesus, quando ele passa,
Com tua caridade um tapete triunfal.

Eis o amor! Antes que a alma tenhas em ruínas,
Teu êxtase reaviva à glória e à luz divinas;
"Esta é a Volúpia dos encantos Celestiais!"

E o Anjo, que a um tempo nos exalta e nos lamenta,
Com punhos de gigante o anátema atormenta;
Mas o ímpio sempre diz: "Não serei teu jamais!"


Spleen

Eu tenho recordações como quem tem mil anos.
Uma cômoda imensa atulhada de planos,
Versos, cartas de amor, romances escrituras,
Com grossos cachos de cabelo entre as faturas,
Guarda menos segredos que o meu coração.
É uma pirâmide, um fantástico porão,
E jazigo não há que mais mortos possua.
– Eu sou um cemitério odiado pela lua,
Onde, como remorsos, vermes atrevidos
Andam sempre a irritar meus mortos mais queridos.
Sou como um camarim onde há rosas fanadas,
Em meio a um turbilhão de modas já passadas,
Onde os tristes pastéis de um Boucher desbotado
Ainda aspiram o odor de um frasco destampado.
Nada iguala o arrastar-se dos trôpegos dias,
Quando, sob o rigor das brancas invernias,
O tédio, taciturno exílio da vontade,
Assume as proporções da própria eternidade.
– Doravante hás de ser, ó pobre e humano escombro!
Um granito açoitado por ondas de assombro,
A dormir nos confins de um Saara brumoso;
Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso,
Esquecida no mapa, e cujo áspero humor
Canta apenas os raios do sol a se pôr.


Ao leitor

A tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez
Habitam nosso espírito e o corpo viciam,
E adoráveis remorsos sempre nos saciam,
Como o mendigo exibe a sua sordidez.

Fiéis ao pecado, a contrição nos amordaça;
Impomos alto preço à infâmia confessada,
E alegres retornamos à lodosa estrada,
Na ilusão de que o pranto as nódoas nos desfaça.

Na almofada do mal é Satã Trimegisto
Quem docemente nosso espírito consola,
E o metal puro da vontade então se evola
Por obra deste sábio que age sem ser visto.

É o Diabo que nos move e até nos manuseia!
Em tudo o que repugna uma joia encontramos;
Dia após dia, para o Inferno caminhamos,
Sem medo algum, dentro da treva que nauseia.

Assim como um voraz devasso beija e suga
O seio murcho que lhe oferta uma vadia,
Furtamos ao acaso uma carícia esguia
Para espremê-la qual laranja que se enruga.

Espesso, a fervilhar, qual um milhão de helmintos,
Em nosso crânio um povo de demônios cresce,
E, ao respirarmos, aos pulmões a morte desce,
Rio invisível, com lamentos indistintos.

Se o veneno, a paixão, o estupro, a punhalada
Não bordaram ainda com desenhos finos
A trama vã de nossos míseros destinos,
É que nossa alma arriscou pouco ou quase nada.

Em meio às hienas, às serpentes, aos chacais,
Aos símios, escorpiões, abutres e panteras,
Aos monstros ululantes e às viscosas feras,
No lodaçal de nossos vícios imortais,

Um há mais feio, mais iníquo, mais imundo!
Sem grandes gestos ou sequer lançar um grito,
Da Terra, por prazer, faria um só detrito
E num bocejo imenso engoliria o mundo;

É o Tédio! – O olhar esquivo à mínima emoção,
Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado.
Tu conheces, leitor, o monstro delicado
– Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!

sexta-feira, 8 de abril de 2011

“Cinema Adentro” leva audiovisual paraibano para cidades do estado

 O Hóspede - Produção é um dos destaques da mostra trazendo mistério aos espectadores

Difundir continuamente o cinema paraibano, mostrando sua diversidade de filmes, seja nos modelos de produção, seja nas temáticas das histórias contadas. Esse é o objetivo maior do Cinema Adentro, projeto realizado pela Associação Brasileira de Documentaristas - seção Paraíba (ABD-PB) que este ano leva oficinas e mostra de cinema paraibano para as cidades de Zabelê, São José de Piranhas, Mataraca e Nazarezinho.
   
Sobre o projeto
   
Promovido pela Associação Brasileira de Documentaristas – seção Paraíba e com patrocínio do Banco do Nordeste, o Cinema Adentro é formado por um grupo de cineastas e técnicos de João Pessoa que viaja promovendo oficinas de audiovisual e mostra de cinema paraibano para as cidades do estado com até 100 mil habitantes.
O objetivo do projeto é estimular a formação do olhar e o pensamento crítico das populações das cidades visitadas a partir do universo regional apresentado nos filmes, fomentando assim o conhecimento do patrimônio cultural imaterial paraibano.
Na edição anterior, em 2009, o Cinema Adentro passou pelas cidades de Soledade, Guarabira, Lucena e Catolé do Rocha. A mostra de cinema realizada percorria a trajetória do cinema paraibano nas últimas quatro décadas, começando pelo curta “Aruanda” (1960) até filmes mais recentes como “O meio do mundo” (2006). O público final do projeto naquele ano foi de mais de mil pessoas, nas quatro cidades em que passou.

Cinema Adentro 2011

Em 2011, O projeto passará pelas cidades de Zabelê, de 08 a 10 de abril, São José de Piranhas, de 22 a 24 de abril, Mataraca, de 06 a 08 de maio e Nazarezinho, de 20 a 22 de maio. Tanto a mostra de filmes quanto as oficinas são gratuitas.  O Cinema Adentro deste ano conta também com o importante apoio do Sebrae, da Ascuza, do Cine Nazareth, e das prefeituras municipais de Zabelê, São José de Piranhas, Mataraca e Nazarezinho.
Em três dias de evento, serão realizadas duas oficinas: como criar e manter um cineclube na sua cidade, ministrada por Liuba de Medeiros, produtora, cineclubista e integrante da diretoria da ABD-PB e introdução à realização audiovisual, ministrada por Lúcio César, que já atuou em quase todas as áreas de realização audiovisual, como produção, som direto, fotografia, direção e edição e por Ely Marques, que atua como realizador e editor de filmes como também faz parte da diretoria da ABD-PB.  Ambas as oficinas tem duração de 8 horas por dia e o objetivo comum de estimular a expectação, realização e o gosto pelo audiovisual.
A mostra de cinema paraibano é realizada na noite dos três dias, as 19h30. Para este ano, a curadoria realizada pelo cineasta Bruno de Sales tem como objetivo mostrar a pluralidade do cinema produzido atualmente na Paraíba. O barateamento das tecnologias de captação e finalização de filme fez com que as produções feitas no estado triplicassem de cinco anos pra cá, tendo como resultado filmes bastante diversos – seja nos seus modelos de produção, seja nas suas histórias ou personagens. Bruno de Sales dividiu a mostra em três blocos temáticos: 1- cine-biografias curtas, 2- filmes que dialogam com outras cinematografias, 3- filmes de conteúdo fantástico, que extrapolam as fronteiras paraibanas de tempo e espaço.  Com isso, a equipe do projeto visa que o público tenha uma visão abrangente do cinema feito hoje na Paraíba.

Sobre a ABD-PB
   
A ABD-PB é uma instituição sem fins lucrativos que tem como principal objetivo estimular o Audiovisual na Paraíba com atenção especial ao Curta-Metragem e ao Documentário nos mais variados suportes e formatos, atuando em três linhas centrais de ação relativas ao audiovisual: Apoio à Difusão; Apoio à Formação e Apoio à Realização Independente.

MAIS INFORMAÇÕES: 
www.cinemaadentro.com

quarta-feira, 6 de abril de 2011

O bom Jornalismo está morrendo


* O Brasil comemora amanhã (07),  o Dia Nacional do Jornalista. Celebrando a data, o Blog da UEPB propõe uma reflexão antecipada sobre o tema a partir do texto de Aurélio Munhoz, publicado na revista Carta Capital

Tenho três ícones no Jornalismo: Cláudio Abramo (o homem que  revolucionou estilo e conteúdo dos dois maiores jornalões nacionais),  Mino Carta (criador de algumas das melhores revistas brasileiras) e Ricardo Kotscho (o mais brasileiro dos grandes repórteres do País).

Do primeiro, guardo a lição de que a “ética dos jornalistas” é uma falácia; a ética, afinal, é uma só para todos os profissionais. Do segundo, a recomendação de que todo jornalista alie um aguçado espírito crítico a uma fidelidade espartana aos fatos. Do terceiro, o ensinamento de que “lugar de repórter é na rua” – e não nas refrigeradas Redações dos veículos de imprensa.

Por absoluta ignorância, por abjeta canalhice ou pela somatória destes defeitos, um assustador contingente de jornalistas nativos parece desconhecer os ensinamentos acima. Prefere agir como estelionatários da realidade, espetacularizando a notícia, manipulando informações e pessoas em troca de audiência, fama e, claro, dinheiro.

Faço esta introdução a propósito de dois fatos ocorridos na semana passada: a entrevista do deputado federal Jair Bolsonaro (PP/RJ) ao programa CQC, da TV Bandeirantes, na qual o parlamentar radicalizou na defesa das suas conhecidas posições medievais contra os negros e os homossexuais; e a veiculação da revista Caras, que estampou manchete com as pesadas acusações da falecida atriz Cibele Dosa contra seu ex-marido, Doda Miranda.

Já se falou praticamente tudo sobre estes dois exemplos de péssimo Jornalismo, que simbolizam o problema crônico de boa parte da grande mídia nacional: sua miopia em relação ao significado da expressão “liberdade de imprensa”, esta peça de ficção invocada sempre que setores da mídia brasileira sentem a necessidade de se safar da irresponsabilidade, superficialidade e sensacionalismo que muitas vezes imprimem ao seu trabalho.

O que trago de novo ao debate sobre o tema é um desafio: exatamente devido a exemplos como estes, intensificarmos a discussão conduzida pelo Congresso Nacional, pelo movimento popular e pela Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) sobre o modelo de Comunicação que os grandes veículos de imprensa exercem.

O momento não poderia ser mais oportuno, inclusive por conta da criação da Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito à Comunicação com Participação Popular, que objetiva discutir a democratização da comunicação e o novo marco regulatório da mídia.

Não podemos mais admitir que a sociedade continue sendo bombardeada pelo macartismo reeditado pelos arautos dos grandes veículos de imprensa, que, além de todas as mazelas apontadas acima, vetam a exigência da formação universitária para o exercício do Jornalismo, repudiam a criação do Conselho Federal de Jornalistas e ainda precarizam as condições de trabalho até o limite de tolerância dos jornalistas. Pobres profissionais de imprensa, que não têm grandes motivos para comemorar, nesta quinta-feira (7), o Dia do Jornalista.

Esta tigrada – barões da grande mídia e seus áulicos – está matando a imprensa de verdade e substituindo-a por uma aberração capitalista chamada de “Jornalismo Industrial” – mera linha de produção de notícias descartáveis, servíveis apenas aos seus mesquinhos interesses. Despreza o fato de que Jornalismo de verdade só é aquele que tem compromisso com o efetivo interesse da maioria e que, escorado na verdade, exerce sua função social visando o bem comum. O resto é conversa fiada.


Mais!
Estimular o trabalho de futuros jornalistas esportivos. Esse é o objetivo do programa Craque do Futuro, que o grupo LANCE! realiza em 2011 pelo sétimo ano consecutivo. Único programa do gênero no país, já teve a participação de mais de 1.200 estudantes, do Amazonas ao Rio Grande do Sul.

Os alunos do curso superior de Jornalismo selecionados para o Craque do Futuro têm como missão a cobertura multimídia dos clubes de futebol, vôlei, futsal e basquete de cidades do interior de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais e dos demais estados brasileiros. Todo o material produzido é analisado pelos jornalistas do LANCE! e pode ser publicado no hotsite do programa, dentro do LANCENET!. O LANCE! também publicará notas diárias em sua edição impressa e semanalmente haverá uma matéria especial de página inteira.

Para participar os candidatos podem se inscrever no endereço www.lancenet.com.br/craquedofuturo até o dia 30 de abril. Já neste momento devem indicar que clube irão cobrir. Durante o processo de seleção de uma semana os candidatos deverão enviar uma nota por dia sobre o clube, e ao fim do período uma matéria. Esse material será avaliado para a escolha dos participantes do Craque do Futuro 2011.

O programa tem a duração de nove meses. Todos os meses serão contemplados os líderes de quantidade, qualidade e produção multimídia. Os três estudantes que mais se destacarem ao final serão premiados com uma visita a uma das redações do LANCE!, acompanhando o dia a dia durante uma semana com os custos da viagem pagos pelo programa.

Participantes de edições anteriores do Craque do Futuro, Bernardo Gleizer e Alexandre Machado hoje atuam no Grupo LANCE! como editor do LANCENET! e estagiário, respectivamente.

“O Craque do Futuro abriu muitas portas pois é sempre difícil você começar uma carreira. Foi uma oportunidade de ouro. Tive que "meter a cara", fazer fontes, ir a jogos, treinos, conversar com jogadores, dirigentes e treinadores, sempre em busca da notícia. Aprendi muito. Hoje estou no Grupo LANCE!, fui repórter e cobri grandes jogos. Atualmente sou editor do LANCENET! Não há dúvidas de que o Craque me ajudou a chegar até aqui.”, indica Bernardo.

“Participei do Programa Craque do Futuro em 2009, com a cobertura do Duque de Caxias, que, na época, fazia a sua estreia na Série B do Campeonato Brasileiro.O Craque do Futuro me permitiu ter, ainda que novo, a vivência do dia a dia da cobertura de um clube. Para mandar as notas diárias e as matérias semanais procurava pensar em pautas diferentes, que pudessem chamar a atenção do leitor de alguma forma. Após o término do programa, acabei sendo chamado para continuar no LANCE! como estagiário. Para minha carreira posso dizer que o Craque do Futuro abriu as portas. Se pudesse aconselhar alguém quanto ao projeto, seria apenas: faça, porque vale muito a pena.”, reforça Alexandre.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Encontro com Guimarães Rosa

Por Willi Bolle, do Caderno Ilustríssima

O céu era cor-de-rosa na madrugada de 23 de agosto de 1966, quando o meu navio, vindo de Hamburgo, entrou na baía de Guanabara, depois de 20 dias de travessia do Atlântico. Antes de continuar, à noite, a viagem para Santos, onde me esperaria no dia seguinte o professor Antonio Soares Amora, da USP, ficamos um dia no Rio de Janeiro.
O professor tinha dado no primeiro semestre daquele ano na Freie Universität de Berlim um curso sobre "Grande Sertão: Veredas". O romance me fascinou de tal maneira que decidi conhecer pessoalmente o país onde se passa a história do jagunço Riobaldo e de Diadorim, além de preparar sobre o livro uma tese de doutorado -embora estivesse apenas no meio do terceiro ano do curso de letras e história.
Do Rio telefonei para o professor Amora, que me aconselhou: "Willi, aproveita para conversar com o seu autor. Ele trabalha a poucas quadras de onde você está, no Itamaraty". Dito e feito. Fui para lá, me apresentei na portaria e pedi para falar com "o meu autor".
"Onde está a camisa?" perguntou-me Guimarães Rosa, depois de ter me recebido de modo muito afável e de me oferecer um café. "A camisa ficou no navio, pois eu não sabia que iria encontrar o senhor."
Essa camisa tinha sido feita à mão em Berlim pela minha namorada. Era a reprodução da capa do "Grande Sertão", desenhada por Poty: num fundo preto e meio encobertos por ramos de buriti, a figura de Riobaldo e o rosto de Diadorim. No bolso, o desenho do diabinho com a vela acesa, que aparece na orelha da capa, e nos botões, pintado com capricho, o signo do infinito.
Vesti essa camisa pouco antes de partir, quando encontrei em Berlim o cônsul do Brasil; ele deve ter contado isso a Guimarães Rosa, que não chegou a ver a camisa, pois morreu pouco mais de um ano depois, em 1967. Entreguei então a camisa para a mulher dele, dona Aracy.
Nos anos subsequentes a esse encontro com o autor de "Grande Sertão: Veredas", me dei conta de que não tinha nem teoria literária, nem experiência de vida suficientes para enfrentar uma tese sobre esse romance. Com a ingenuidade dos meus 22 anos, pratiquei como que um ritual: forrei as paredes do meu quarto com as cerca de 500 páginas do romance e passei a viver dentro dele. Retomei esse método de mergulhar no "Grande Sertão" anos depois, em 1999/2000, na Universidade Stanford, onde elaborei o primeiro esboço do meu livro "grandesertão.br - O Romance de Formação do Brasil".
A metáfora tecnológica do título é uma referência ao sertão da linguagem, à "língua in opere, fabulosamente em movimento, toda possibilidades, sempre em estado nascente", que Guimarães Rosa compara a "um painel de mesa telefônica, para os engates ad libitum".
Com sua composição fragmentária, o romance pode ser lido como uma espécie de website dos discursos sobre o Brasil, na medida em que desconstrói e constrói a história do país, em diálogo com os principais ensaios de interpretação da nossa cultura: desde "Os Sertões", de Euclides da Cunha, até os estudos de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e Antonio Candido.
Além disso, há no romance ensinamentos sobre a "formação da alma", sobre amor, medo e coragem, e sobre a paixão como medium-de-reflexão.
A síntese de tudo isso talvez esteja na dedicatória que Guimarães Rosa fez no livro que me deu de presente naquela tarde de 1966: "Feliz é o homem que tem uma camisa pintada...".