A voz de Jorge Luiz Borges eu conheci. A voz; ele, em pessoa, nunca. Sua voz, já velha, com certo ruído de cascalho, hesitante, mas mansa, sem afetação, o que já é uma afetação em si mesma. Voz compreensiva.
Foi por meio de uma lenda, a lenda de "Billy the Kid", que cheguei até ele. Sua versão inovadora, breve, da lenda do assassino desinteressado Bill Harrigan, fascina-me. Este conto está em seu livro História Universal da Infâmia. Procurei Jorge Luiz Borges para comprar os direitos autorais de uma lenda…
Borges disse-me, imediatamente, que não poderia vender os direitos autorais deste conto, pois, este texto, não lhe pertencia, não era seu!
Ele teria, segundo me disse, apenas copiado umas linhas, de algumas páginas, de certos livros… E me indicou 2 ou 3 livros como suas fontes. Um dos livros eu tinha, The Gangs of New York, de Herbert Asbury.
Foi delicioso ouvir tudo isso através de sua voz hesitante, pontuada por "quiças", curiosa, muito delicada. Depois, em outro momento, porém, disse-me, para falar com o dono da editora Emecé, que era quem tratava deste assunto e seu editor. Mas, ao mesmo tempo, me desencorajava a fazer isto, não era justo etc…
Este mote (compra dos direitos autorais da lenda de Billy the Kid) nos levou a longas e muitas conversas… telefônicas. Longas, sim, o que resultou, certa vez, em uma delicada ironia sua: "Você, disse-me, com o dinheiro gasto nesses telefonemas teria comprado minhas obras completas…"
E a conversa continuou…
Até que, em uma tarde, tarde triste, na rua Timóteo da Costa, nome de um pintor, ouvi, pelo telefone, daquela voz, que sempre trouxe força e vida, para não mais lhe telefonar: "estou muito doente… gracias" e desligou.
Dias, dias depois, liguei, ainda, uma última vez, para 312 28 01, que era o número do telefone da calle Maipu 994, 6º piso. E, atendeu, a governanta, Fani.
"Por favor, o senhor Borges está?" perguntei eu.
"Não…", respondeu, lacônica e firme, a governanta.
Terrível palavra é um non, dizia o padre Antônio Vieira. Este "não" perturbou-me…
Este "não", foi, para mim, naquele momento, como o percebi, um "nunca mais". "Never more", "nunca mais", "jamais plus", e, assim, nessa forma, chegou-me à cabeça, repetidas vezes, o sinal aziago…
Passada uma semana, talvez menos, li, nos jornais, a notícia de sua morte…
Rompeu-se a voz, foi-se o fio fortuito da fortuna, ficou uma lembrança, que, em vão, procuro reter…
Gostaria de desprender da memória e trazer para aqui o próprio "senhor Borges". "Senhor Borges", disse minha filha Tande, ainda menina, ao atender o telefone, chamando de Buenos Aires, aquela voz inconfundível…
Uma curiosidade biográfica, para encerrar esta minha saudade borgiana: conheci em Buenos Aires, com minha mulher Rosa Dias, um farmacêutico, dono de uma velha farmácia. O sujeito, tinha conhecido muito a Jorge Luiz Borges. Conheceu também sua mãe, D. Leonor. Da impressão que ele tinha de Borges nunca me esqueci. Dizia: "Imagine um homem que só se alimenta de arroz e leite. É um homem muito infeliz…"
Infeliz, talvez, mas paciente.
Escreve Borges: "…fui criado em um ambiente onde não se falar francês era ser praticamente analfabeto. Depois veio o inglês, passamos do francês para o inglês e do inglês para a ignorância…"
Borges, monstro do livro, tinha a paixão do livro e, o que é mais e mais raro, sabia ler. Conhecia os rigores desta arte, a temerária, arte de ler. Ler, cujo preceito primeiro é reler, abriga em sua arte o método, único, de acesso, de contemplação, ao que J. Kristeva, anos atrás, chamou "matriz geradora de significantes". O texto, visto como uma superfície, onde vem à tona, surge, cifrado, rigorosamente, em letra, apenas, alguns sinais, vagos, de seu significado. Sendo, pois, o entendimento de um texto sempre interino e, todo tempo, enigmático, esparso, mutável.
"Os grandes leitores são cisnes ainda mais negros que os grandes autores", escreve Borges em um prefácio. O escritor, experimentou, em toda sua obra, uma forma, um procedimento, que foi o de recortar frases, parágrafos inteiros, de diferentes autores, incrustá-los, mesclá-los, com perícia de relojoeiro, à sua escritura, e fazê-los viver, parecer viver, fora do assédio do tempo. O escritor provoca, com este processo, um colapso no tempo e uma despersonalização. Esse formalismo, sugiro, faz parte de sua arte de ler. Entender o instante fatal, quando, em uma dobra, o ler, escreve. Escrevendo, o ler, escrito…
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