Seu mix de marxismo e erotismo continua vigente e vivo. Niemeyer é o artista brasileiro com maior projeção internacional. os planos atuais incluem um aquário submerso, uma catedral grandiosa, um estádio de futebol mais confortável...
Oscar Niemeyer está ansioso para descobrir os porquês científicos de um acontecimento tão inesperado quanto o tsunami no Japão.
Todas as terças-feiras, ele recebe a visita do físico Luiz Alberto Oliveira, doutor em Cosmologia, que organiza uma palestra-sarau em seu escritório. "Antes eu queria entender o Big Bang, afinal, pra ter uma explosão, é preciso haver matéria. Quem inventou a matéria do Big Bang?, pergunta-se.
Quando o visitei em seu escritório em Copacabana, em março, ele já preparava diversas perguntas para o professor. "Será que alguma obra conseguiria conter aquelas ondas do maremoto?" e ele mesmo responde: "Acho que não".
"A Terra está biruta", diz.
Ele alterna os palestrantes que abriga em seu escritório, dos mais diferentes temas, para "se manter atualizado". Em dezembro, completa 104 anos.
O corpo não acompanha os questionamentos efervescentes do arquiteto. "Não ando há seis meses, só consigo dar uns passinhos agora", suspira. "A velhice é uma merda."
Ele quase não vê. Cada pessoa que o visita em sua sala –e são muitas ao longo do dia– anuncia o próprio nome antes de apertar a mão do arquiteto. Niemeyer se desculpa com cada um por não poder se levantar para cumprimentar. Só nesses momentos parece irritado. "Queria agora sair do prédio caminhando, ver gente aqui em Copacabana, ver o povo na rua, mas dá trabalho me colocar no carro, no elevador, cansa".
Em 2009, teve um tumor no intestino e, ao extraí-lo, retirou também a vesícula. Em abril do ano passado, foi internado com infecção urinária. Em nosso encontro, era um homem lúcido e muito falante.
O arquiteto não para de imaginar novos projetos, que ainda nem tem clientes. "Quero fazer um aquário em Búzios em que o prédio esteja completamente submerso, no mar mesmo", diz. Visitantes veriam os aquários e o próprio mar por uma parede de vidro –os peixes soltos no mar veriam que os visitantes é que se encontram em um aquário.
"Continuo atrás de novas curvas, de ideias inesperadas. Só tem graça continuar trabalhando para fazer prédios totalmente novos, que nunca tenham sido pensados."
A lista de ideias é extensa. Uma catedral em que a cobertura sairá dos braços da cruz. "Não tenho cliente para essas, mas não importa, alguns dos melhores projetos não se constroem", diz. "Invento, pesquiso, quando o problema me interessa."
"Ultimamente penso muito em igrejas e catedrais. Continuo ateu, mas uma catedral abre possibilidades imensas para um arquiteto", diz e sorri. Na Idade Média, a Igreja concebia esses grandes templos para fascinar fiéis por seu gigantismo e potência - uma prova cabal da grandiosidade divina diante dos minúsculos humanos. Niemeyer compartilha essa ambição eclesiástica e adora criar formas grandiosas que assombram os indefesos homens.
Ele mostra o desenho de um estádio de futebol coberto que inventou. "Chove muito e os estádios não têm drenagem adequada, venta, faz sol forte. Pensei em inventar um estádio que não seja tão caro, mas que dê conforto para o torcedor."
Não acompanha as inúmeras polêmicas que cercam a Olimpíada do Rio em 2016 –da concentração excessiva de novos prédios em Jacarepaguá e dos poucos no centro histórico e no porto, que deveriam ser revitalizados, à falta de debate sobre investimentos urbanísticos que aproveitem o evento.
"Não estou acompanhando, não, mas acho que a primeira coisa a estudar é que prédios já existentes poderiam ser aproveitados", diz.
Mesmo com tantos projetos órfãos de patrocínio, não lhe faltam encomendas. Ele deve mexer no sambódromo para dar um prédio próprio ao camarote da Brahma. Deve comemorar –ainda que sem poder ir até lá– a primeira obra pronta na Argentina, o Porto da Música, com auditório e anfiteatro aberto. Está em Rosario, a 300 km de Buenos Aires, cidade de que gosta muito ("É bonita, o povo anda na rua, usa o espaço público e ainda janta tarde. São boêmios, como eu"). Nos últimos anos, espalhou novas obras na Itália, Reino Unido, Espanha, além de projetos para Grécia, Portugal e França. Mas suas principais obras estão mesmo no Brasil. São cerca de 600.
Graças a uma obra que se estendeu por várias décadas, Niemeyer também tem várias fases, tal qual Picasso ou Phillip Johnson. Nos últimos anos, sua produção mais recente não é tão bem avaliada pelos críticos, apesar da unanimidade do seu Auditório Ibirapuera, minimalista e de linhas decididamente retas.
Outro projeto em que começa a trabalhar agora é o de uma casa modernista em Londres, que já nasceria como uma espécie de símbolo ou museu do modernismo na capital britânica.
Quem fez o convite a Niemeyer é a influente Julia Peyton-Jones, diretora da Serpentine Gallery, que todo ano convida um superarquiteto para desenhar o pavilhão temporário de verão no parque de Kensington.
Nesse quem-é-quem da arquitetura mundial, o arquiteto fez um pavilhão em 2003 –e Peyton-Jones continua em contato com o artista. Quer essa casa simbólica para abrigar conferências e eventos logo no Reino Unido, país com relação tortuosa com o modernismo. O príncipe Charles, que adora edifícios neoclássicos e georgianos, já afirmou que os arquitetos modernos fizeram mais danos a Londres que os bombardeios da Luftwaffe nazista.
Niemeyer virou fetiche internacional, depois de ser fetiche no Brasil por diversas décadas, onde governantes parecem só se lembrar dele na hora de encomendar novas obras. E é talvez o artista brasileiro vivo de maior projeção internacional, justamente em uma área tão dependente de tecnologia e orçamentos generosos.
É o sobrevivente de uma geração que terminou com dois milênios de idas e vindas na reinterpretação da gramática da arquitetura grega, classicismo que se manteve inalterado do Renascimento ao neoclássico do século 19.
Com o franco-suíço Le Corbusier e a escola alemã Bauhaus à frente, o modernismo advogou por uma arquitetura despojada, funcional e democrática, evitando adornos desnecessários e democratizando a construção –o movimento surgiu nos anos 1920, quando as grandes capitais européias sucumbiam à gripe espanhola, à falta de saneamento e à favelização.
O arquiteto carioca deu curvas e uma plasticidade impensáveis ao puritanismo e a rigidez de suíços e alemães, mas virou herói do movimento, ainda mais por construir em um país então agrário e periférico. Pampulha, a Bienal de São Paulo, o Copan, a Oca, o Palácio Capanema, no Rio, e, claro, Brasília, viraram ícones instantâneos de um Brasil que firmava sua identidade.
O artista se maravilha com o avanço tecnológico que beneficia a construção hoje, impensável nos anos heroicos de Brasília. "No Renascimento, uma cúpula podia levar três anos para ficar pronta. Há alguns anos, era trabalho de meses. Na minha obra em Avilés, na Espanha, eles fizeram uma forma que permitiu a construção de uma enorme cúpula em menos de um mês", compara.
A entrevista acontece em uma pequena sala no escritório, aonde Niemeyer vai trabalhar todos os dias. O prédio que abriga o escritório fica em Copacabana, quase Arpoador, pertinho do famoso forte. É um belo edifício em art déco, com formas tão sinuosas que parecem de um antepassado niemeyeriano.
No terreno onde o prédio foi erguido em 1930, havia uma casa do pai de Niemeyer, que ele alugava para temporadas de verão. O edifício de dez andares é residencial e só o escritório modesto destoa na cobertura. Para chegar a ele, é necessário subir ao último andar do elevador, depois mais um lance de escada.
Niemeyer subiu essas escadas até os 90 e muitos anos, quando foi construído um pequeno elevador para transportá-lo.
As formas sinuosas do edifício se refletem na sala principal do escritório, todo envidraçado do chão ao teto na sala principal, com uma vista de Copacabana em ondas. Há duas chaise-longues desenhadas por Niemeyer e alguns rabiscos na parede. E nada mais, como para não competir com a vista. Ali, em uma prancheta, Niemeyer desenhou dezenas de projetos, sempre em pé.
O arquiteto fica em um quarto sem janelas, cercado de dezenas de livros e maquetas. "Fico aqui sentado todo o tempo", reclama.
Staff Familiar
Niemeyer está constantemente acompanhado por sua pequena equipe, netos e bisnetos que o visitam no escritório. Quem manda mesmo no pedaço é sua mulher, Vera Lúcia Cabreira, 64, com quem se casou em novembro de 2006, a um mês de cumprir 99 anos. Além de companhia onipresente, Vera é responsável pela agenda, contatos, a edição de livros da Fundação Niemeyer e da revista "Novo Caminho".
O arquiteto foi casado por 76 anos com Annita, que morreu em 2004. Eles tiveram uma única filha, Ana Lúcia, que tem uma galeria de arte.
Sua memória o leva a dar passeios inesperados. E passa a me contar sobre os anos em que morou em Paris, no exílio da ditadura militar no Brasil. "Se não morasse no Rio, acho que a cidade em que eu moraria com prazer seria Paris. Adorava", relembra. "Conversava até de política com os taxistas. Aqui no Brasil, somos mais brutos."
A memória dá mais uma voltinha. "Era amigo do Sartre, ele era muito porra-louca. Feio, muito feio, mas metido a conquistador!"
Volta-se para mim e pergunta se morei fora. "Na China, voltei de Pequim há menos de um ano", conto. "Sério? Que experiência, lá está crescendo muito!"
Depois de um par de perguntas, Niemeyer sorri. "As chinesas são bonitas?", pergunta. Ao seu lado, vários rabiscos feitos por ele formam mulheres nuas, comprovando que as curvas femininas, de fato, inspiram seus prédios. Fala, como em tantas entrevistas, de desigualdade social, de comunismo e de seus inabaláveis princípios. E comprova que, perto dos 104, seu mix de marxismo com erotismo continua vigente e ativo.
Roda viva
artistas e arquitetos analisam o legado do mestre
"Oscar Niemeyer é um desses
seres raros que ajudam a inventar nosso mundo e a transformá-lo.
Se ele é, como cidadão, um exemplo de generosidade e solidariedade,
como arquiteto mudou o curso da arquitetura moderna, tornando-a
mais rica de formas inusitadas e belas."
Ferreira Gullar
81, ensaísta e poeta brasileiro
"Niemeyer me incomodava muito.
Ele representava os anos 50 e 60, e eu estava interessado em arquitetura contemporânea, ignorada pelos professores. Hoje, obviamente, tenho muito respeito por ele, que além de grande arquiteto é grande filósofo. Infelizmente, adoro uma de suas frases: 'A vida é um sopro'"
Marcio Kogan
59, arquiteto e docente da Escola da Cidade, em São Paulo
"Os projetos de Niemeyer têm algo de escultural; às vezes parecem esculturas habitáveis, com linhas curvas e sinuosas de plasticidade impressionante. Ele é um dos maiores arquitetos da contemporaneidade. Mas em vários projetos há problemas funcionais, de ventilação e de conforto térmico. No Brasil, pobres moram em conjuntos habitacionais indignos. Gostaria de ver um deles projetado por Niemeyer"
Milton Hatoum
59, formado em arquitetura, tradutor, professor e escritor, autor de "Relato de um Certo Oriente" (1990), entre outros
"Agora que o Brasil ganha relevância mundial, a obra de Niemeyer ganha importância: fortalece nossa personalidade. Brasília, pela arquitetura, é muito mais nossa capital do que o Rio de 1960. Niemeyer foi fundamental para que tivéssemos a estatura cultural de um país incontornável no mundo"
André Corrêa do Lago
52, diplomata e crítico de arquitetura.
Autor de "Oscar Niemeyer, uma Arquitetura
da Sedução" (2007), entre outros
Oscar Niemeyer está ansioso para descobrir os porquês científicos de um acontecimento tão inesperado quanto o tsunami no Japão.
Todas as terças-feiras, ele recebe a visita do físico Luiz Alberto Oliveira, doutor em Cosmologia, que organiza uma palestra-sarau em seu escritório. "Antes eu queria entender o Big Bang, afinal, pra ter uma explosão, é preciso haver matéria. Quem inventou a matéria do Big Bang?, pergunta-se.
Quando o visitei em seu escritório em Copacabana, em março, ele já preparava diversas perguntas para o professor. "Será que alguma obra conseguiria conter aquelas ondas do maremoto?" e ele mesmo responde: "Acho que não".
"A Terra está biruta", diz.
Ele alterna os palestrantes que abriga em seu escritório, dos mais diferentes temas, para "se manter atualizado". Em dezembro, completa 104 anos.
O corpo não acompanha os questionamentos efervescentes do arquiteto. "Não ando há seis meses, só consigo dar uns passinhos agora", suspira. "A velhice é uma merda."
Ele quase não vê. Cada pessoa que o visita em sua sala –e são muitas ao longo do dia– anuncia o próprio nome antes de apertar a mão do arquiteto. Niemeyer se desculpa com cada um por não poder se levantar para cumprimentar. Só nesses momentos parece irritado. "Queria agora sair do prédio caminhando, ver gente aqui em Copacabana, ver o povo na rua, mas dá trabalho me colocar no carro, no elevador, cansa".
Em 2009, teve um tumor no intestino e, ao extraí-lo, retirou também a vesícula. Em abril do ano passado, foi internado com infecção urinária. Em nosso encontro, era um homem lúcido e muito falante.
O arquiteto não para de imaginar novos projetos, que ainda nem tem clientes. "Quero fazer um aquário em Búzios em que o prédio esteja completamente submerso, no mar mesmo", diz. Visitantes veriam os aquários e o próprio mar por uma parede de vidro –os peixes soltos no mar veriam que os visitantes é que se encontram em um aquário.
"Continuo atrás de novas curvas, de ideias inesperadas. Só tem graça continuar trabalhando para fazer prédios totalmente novos, que nunca tenham sido pensados."
A lista de ideias é extensa. Uma catedral em que a cobertura sairá dos braços da cruz. "Não tenho cliente para essas, mas não importa, alguns dos melhores projetos não se constroem", diz. "Invento, pesquiso, quando o problema me interessa."
"Ultimamente penso muito em igrejas e catedrais. Continuo ateu, mas uma catedral abre possibilidades imensas para um arquiteto", diz e sorri. Na Idade Média, a Igreja concebia esses grandes templos para fascinar fiéis por seu gigantismo e potência - uma prova cabal da grandiosidade divina diante dos minúsculos humanos. Niemeyer compartilha essa ambição eclesiástica e adora criar formas grandiosas que assombram os indefesos homens.
Ele mostra o desenho de um estádio de futebol coberto que inventou. "Chove muito e os estádios não têm drenagem adequada, venta, faz sol forte. Pensei em inventar um estádio que não seja tão caro, mas que dê conforto para o torcedor."
Não acompanha as inúmeras polêmicas que cercam a Olimpíada do Rio em 2016 –da concentração excessiva de novos prédios em Jacarepaguá e dos poucos no centro histórico e no porto, que deveriam ser revitalizados, à falta de debate sobre investimentos urbanísticos que aproveitem o evento.
"Não estou acompanhando, não, mas acho que a primeira coisa a estudar é que prédios já existentes poderiam ser aproveitados", diz.
Mesmo com tantos projetos órfãos de patrocínio, não lhe faltam encomendas. Ele deve mexer no sambódromo para dar um prédio próprio ao camarote da Brahma. Deve comemorar –ainda que sem poder ir até lá– a primeira obra pronta na Argentina, o Porto da Música, com auditório e anfiteatro aberto. Está em Rosario, a 300 km de Buenos Aires, cidade de que gosta muito ("É bonita, o povo anda na rua, usa o espaço público e ainda janta tarde. São boêmios, como eu"). Nos últimos anos, espalhou novas obras na Itália, Reino Unido, Espanha, além de projetos para Grécia, Portugal e França. Mas suas principais obras estão mesmo no Brasil. São cerca de 600.
Graças a uma obra que se estendeu por várias décadas, Niemeyer também tem várias fases, tal qual Picasso ou Phillip Johnson. Nos últimos anos, sua produção mais recente não é tão bem avaliada pelos críticos, apesar da unanimidade do seu Auditório Ibirapuera, minimalista e de linhas decididamente retas.
Outro projeto em que começa a trabalhar agora é o de uma casa modernista em Londres, que já nasceria como uma espécie de símbolo ou museu do modernismo na capital britânica.
Quem fez o convite a Niemeyer é a influente Julia Peyton-Jones, diretora da Serpentine Gallery, que todo ano convida um superarquiteto para desenhar o pavilhão temporário de verão no parque de Kensington.
Nesse quem-é-quem da arquitetura mundial, o arquiteto fez um pavilhão em 2003 –e Peyton-Jones continua em contato com o artista. Quer essa casa simbólica para abrigar conferências e eventos logo no Reino Unido, país com relação tortuosa com o modernismo. O príncipe Charles, que adora edifícios neoclássicos e georgianos, já afirmou que os arquitetos modernos fizeram mais danos a Londres que os bombardeios da Luftwaffe nazista.
Niemeyer virou fetiche internacional, depois de ser fetiche no Brasil por diversas décadas, onde governantes parecem só se lembrar dele na hora de encomendar novas obras. E é talvez o artista brasileiro vivo de maior projeção internacional, justamente em uma área tão dependente de tecnologia e orçamentos generosos.
É o sobrevivente de uma geração que terminou com dois milênios de idas e vindas na reinterpretação da gramática da arquitetura grega, classicismo que se manteve inalterado do Renascimento ao neoclássico do século 19.
Com o franco-suíço Le Corbusier e a escola alemã Bauhaus à frente, o modernismo advogou por uma arquitetura despojada, funcional e democrática, evitando adornos desnecessários e democratizando a construção –o movimento surgiu nos anos 1920, quando as grandes capitais européias sucumbiam à gripe espanhola, à falta de saneamento e à favelização.
O arquiteto carioca deu curvas e uma plasticidade impensáveis ao puritanismo e a rigidez de suíços e alemães, mas virou herói do movimento, ainda mais por construir em um país então agrário e periférico. Pampulha, a Bienal de São Paulo, o Copan, a Oca, o Palácio Capanema, no Rio, e, claro, Brasília, viraram ícones instantâneos de um Brasil que firmava sua identidade.
O artista se maravilha com o avanço tecnológico que beneficia a construção hoje, impensável nos anos heroicos de Brasília. "No Renascimento, uma cúpula podia levar três anos para ficar pronta. Há alguns anos, era trabalho de meses. Na minha obra em Avilés, na Espanha, eles fizeram uma forma que permitiu a construção de uma enorme cúpula em menos de um mês", compara.
A entrevista acontece em uma pequena sala no escritório, aonde Niemeyer vai trabalhar todos os dias. O prédio que abriga o escritório fica em Copacabana, quase Arpoador, pertinho do famoso forte. É um belo edifício em art déco, com formas tão sinuosas que parecem de um antepassado niemeyeriano.
No terreno onde o prédio foi erguido em 1930, havia uma casa do pai de Niemeyer, que ele alugava para temporadas de verão. O edifício de dez andares é residencial e só o escritório modesto destoa na cobertura. Para chegar a ele, é necessário subir ao último andar do elevador, depois mais um lance de escada.
Niemeyer subiu essas escadas até os 90 e muitos anos, quando foi construído um pequeno elevador para transportá-lo.
As formas sinuosas do edifício se refletem na sala principal do escritório, todo envidraçado do chão ao teto na sala principal, com uma vista de Copacabana em ondas. Há duas chaise-longues desenhadas por Niemeyer e alguns rabiscos na parede. E nada mais, como para não competir com a vista. Ali, em uma prancheta, Niemeyer desenhou dezenas de projetos, sempre em pé.
O arquiteto fica em um quarto sem janelas, cercado de dezenas de livros e maquetas. "Fico aqui sentado todo o tempo", reclama.
Staff Familiar
Niemeyer está constantemente acompanhado por sua pequena equipe, netos e bisnetos que o visitam no escritório. Quem manda mesmo no pedaço é sua mulher, Vera Lúcia Cabreira, 64, com quem se casou em novembro de 2006, a um mês de cumprir 99 anos. Além de companhia onipresente, Vera é responsável pela agenda, contatos, a edição de livros da Fundação Niemeyer e da revista "Novo Caminho".
O arquiteto foi casado por 76 anos com Annita, que morreu em 2004. Eles tiveram uma única filha, Ana Lúcia, que tem uma galeria de arte.
Sua memória o leva a dar passeios inesperados. E passa a me contar sobre os anos em que morou em Paris, no exílio da ditadura militar no Brasil. "Se não morasse no Rio, acho que a cidade em que eu moraria com prazer seria Paris. Adorava", relembra. "Conversava até de política com os taxistas. Aqui no Brasil, somos mais brutos."
A memória dá mais uma voltinha. "Era amigo do Sartre, ele era muito porra-louca. Feio, muito feio, mas metido a conquistador!"
Volta-se para mim e pergunta se morei fora. "Na China, voltei de Pequim há menos de um ano", conto. "Sério? Que experiência, lá está crescendo muito!"
Depois de um par de perguntas, Niemeyer sorri. "As chinesas são bonitas?", pergunta. Ao seu lado, vários rabiscos feitos por ele formam mulheres nuas, comprovando que as curvas femininas, de fato, inspiram seus prédios. Fala, como em tantas entrevistas, de desigualdade social, de comunismo e de seus inabaláveis princípios. E comprova que, perto dos 104, seu mix de marxismo com erotismo continua vigente e ativo.
Roda viva
artistas e arquitetos analisam o legado do mestre
"Oscar Niemeyer é um desses
seres raros que ajudam a inventar nosso mundo e a transformá-lo.
Se ele é, como cidadão, um exemplo de generosidade e solidariedade,
como arquiteto mudou o curso da arquitetura moderna, tornando-a
mais rica de formas inusitadas e belas."
Ferreira Gullar
81, ensaísta e poeta brasileiro
"Niemeyer me incomodava muito.
Ele representava os anos 50 e 60, e eu estava interessado em arquitetura contemporânea, ignorada pelos professores. Hoje, obviamente, tenho muito respeito por ele, que além de grande arquiteto é grande filósofo. Infelizmente, adoro uma de suas frases: 'A vida é um sopro'"
Marcio Kogan
59, arquiteto e docente da Escola da Cidade, em São Paulo
"Os projetos de Niemeyer têm algo de escultural; às vezes parecem esculturas habitáveis, com linhas curvas e sinuosas de plasticidade impressionante. Ele é um dos maiores arquitetos da contemporaneidade. Mas em vários projetos há problemas funcionais, de ventilação e de conforto térmico. No Brasil, pobres moram em conjuntos habitacionais indignos. Gostaria de ver um deles projetado por Niemeyer"
Milton Hatoum
59, formado em arquitetura, tradutor, professor e escritor, autor de "Relato de um Certo Oriente" (1990), entre outros
"Agora que o Brasil ganha relevância mundial, a obra de Niemeyer ganha importância: fortalece nossa personalidade. Brasília, pela arquitetura, é muito mais nossa capital do que o Rio de 1960. Niemeyer foi fundamental para que tivéssemos a estatura cultural de um país incontornável no mundo"
André Corrêa do Lago
52, diplomata e crítico de arquitetura.
Autor de "Oscar Niemeyer, uma Arquitetura
da Sedução" (2007), entre outros
Nenhum comentário:
Postar um comentário