segunda-feira, 4 de abril de 2011

Conan Doyle e o detetive que driblou a morte

O autor e o uniforme - Conan Doyle em um típico vestuário do Exército inglês do século 19; aos 34 anos, ele já tinha uma fortuna suficiente para viver sem trabalhar

Por J. R. Guzzo, da Revista Bravo

Quando colocou a última palavra no conto O Problema Final, em dezembro de 1893, Arthur Conan Doyle achou que tinha excelentes motivos para considerar-se muito satisfeito consigo mesmo. Até que enfim ele tinha conseguido se livrar, de uma vez por todas, de Sherlock Holmes, o personagem que havia criado sete anos antes, em 1886, e que desde então ocupava 100% de seu tempo, energia e talento. Holmes tinha transformado Doyle, um escocês de espírito inquieto e vida tumultuada, no autor mais popular da língua inglesa em sua época, disputado a tapa por editores da Inglaterra e dos Estados Unidos, e, além do mais, num homem rico. Aos 34 anos de idade, para sua própria surpresa, estava com a vida ganha e se tornara livre, enfim, para escrever o que bem entendesse. Chega, portanto, de Sherlock Holmes - "the brute", como Doyle se acostumara a chamá-lo. Afinal, não era para ficar escrevendo histórias de detetive que ele havia deixado Edimburgo, onde nascera, e abandonado uma carreira possivelmente promissora como médico. Era para ser um "escritor de verdade". Holmes, àquela altura, só atrapalhava o seu projeto de vida - e a única solução, a seu ver, era acabar com ele. Foi o que aconteceu, em O Problema Final. Ali, para o espanto do público, dos editores e da sua própria mãe, Doyle matou o personagem - arremessado pelo infame professor Moriarty, o "Napoleão do crime" e seu inimigo mortal, para o fundo das cataratas de Reichenbach, nos Alpes da Suíça.

Adeus, Sherlock Holmes - Mas seria mesmo um adeus? Não, como se verá melhor mais adiante. Holmes, para a felicidade geral, não morreu, na Suíça ou em qualquer outro lugar, naquela ou em qualquer outra ocasião - ao contrário, está vivo até hoje, quase 120 anos depois, neste moderníssimo século 21 de livrarias eletrônicas, tablets e outros prodígios da pós-leitura.
Admiradores em Estado de Choque - "Foi um caso de legítima defesa", dizia Doyle aos seus amigos de Londres, logo depois de publicar o conto em que encerrava a vida e a obra de Holmes. "Ou eu acabava com ele ou ele acabava comigo." Houve pesar e revolta: a redação da Strand viu-se soterrada por mensagens indignadas de admiradores em estado de choque, e leitores saiam às ruas usando braçadeiras de luto. Durante oito anos, depois disso, Doyle resistiu às pressões e colocou todos os seus esforços na tentativa de escrever obras à altura de suas ambições - no caso, romances históricos, ao estilo, quem sabe, de seu amado Walter Scott, em quem via o modelo ideal do verdadeiro homem de letras. Mas a carreira de Doyle como autor "importante" nunca chegou a decolar - enquanto os editores e o público nunca chegaram a esquecer "a mais perfeita máquina de observar e raciocinar que o mundo jamais havia conhecido", conforme a definição de um dos grandes peritos mundiais no universo sherloquiano, o crítico e editor britânico David Davies. O resultado é que em 1901, tendo feito as pazes com a ideia de que escrever histórias policiais era o que sabia fazer de melhor, Conan Doyle retornou ao ponto de partida e entregou para publicação, logo de saída, o que se tornaria um dos maiores clássicos de toda a sua obra - nada menos que a novela O Cão dos Baskervilles.

Dois anos depois, em 1903, a Collier's norte-americana deixava o mundo literário paralisado de espanto ao oferecer a Doyle 4 mil dólares para cada conto de Sherlock Holmes que ele escrevesse, uma remuneração de extravagância jamais ouvida até então. Ninguém poderia resistir a um tiro desses, e o bom doutor não resistiu. Seria preciso, é verdade, ressuscitar seu herói - mas 4 mil dólares por história têm uma grande eficácia para resolver inconvenientes desse tipo. No conto A Casa Vazia, em que retorna aos seus labores, Holmes quase mata do coração o admirável doutor John Watson, seu amigo de todas as horas e narrador de todas as suas aventuras, ao aparecer de repente em sua casa de Londres. Mas, como assim, se ele tinha morrido? Pois aí é que está: graças a seus conhecimentos de baritsu, uma obscura, mas quase milagrosa arte marcial japonesa, Holmes, na verdade, não havia caído nas cataratas. Tinha conseguido, no último instante, se livrar do abraço mortal do professor Moriarty. Ao fim e ao cabo, o inimigo acabou indo sozinho para o buraco, enquanto ele, são e salvo, decidiu fingir-se de morto durante alguns anos - para iludir, numa manobra tática de propósito não muito compreensível, mas com certeza brilhante, os lamentáveis comparsas do "Napoleão do crime". Chegara o momento, agora, de acertar as contas com eles etc. etc. Não ficou muito convincente, mas quem é que estava ligando para isso? Não os editores da Collier's, e muito menos os leitores. Sherlock Holmes estava de volta - e dessa vez para sempre. Conan Doyle, agora já menos ansioso em enriquecer a literatura inglesa com sua obra, continuou produzindo regularmente as histórias de Holmes e Watson durante mais um quarto de século. O último conto com a presença da dupla foi publicado em 1927, três anos antes de sua morte.

Era, finalmente, a despedida do detetive mais amado que a literatura policial jamais conheceu, em qualquer época ou lugar. Holmes viera ao mundo na novela Um Estudo em Vermelho, escrita em 1886, mas só publicada em 1887 - seu editor vacilou, convencido de que havia "pouca demanda" por aquele tipo de narrativa, pagou 20 libras a Doyle e não insistiu para que ele voltasse. O livro foi recebido em meio à indiferença geral do público. Da crítica, então, nem se fala. Foi preciso, para salvar o personagem, que o editor norte-americano John Stoddart fizesse tempos depois uma viagem a Londres em busca de novos talentos. Queria, na ocasião, contratar dois escritores ingleses jovens. Um deles foi Doyle e o livro que entregou, publicado em 1890, foi uma segunda novela, O Signo dos Quatro - no qual, apesar da escassa atenção recebida na estreia, manteve as figuras de Holmes e Watson, sua residência no número 221B de Baker Street, o cachimbo, a lupa e tudo o mais que se tornaria inseparável de ambos. (O outro escritor selecionado chamava-se Oscar Wilde. Seu livro? O Retrato de Dorian Gray. Uma salva de palmas, portanto, para mister Stoddart por essa feliz demonstração de que editores também são capazes de acertar.)

Roupas e modos Esquisitos - A novela foi um sucesso. A partir de 1891, as aventuras de Holmes começaram a aparecer na forma de contos, publicados na Strand e já pagos a peso de ouro. Daí em diante, salvo por seu exílio temporário, tudo só daria certo para o herói inventado por Doyle. Nunca, até hoje, suas histórias deixaram de ser publicadas em algum idioma, em algum lugar do mundo. Nenhum personagem da literatura foi tão filmado como ele - a primeira vez, já em 1901, e a mais recente em 2009, com Robert Downey Jr. e Jude Law. (Foi uma "releitura" de Holmes, na qual ele aparece com roupas esquisitas e modos mais esquisitos ainda. É o tipo de coisa que nem o mago de Baker Street consegue evitar.) Acima de tudo, Sherlock Holmes se tornou uma das figuras mais conhecidas da literatura universal. Para competir com ele, já é preciso pensar num Dom Quixote, num Romeu, numa Julieta. De onde viria esse encanto todo? Gigantes da crítica, há mais de 100 anos, tentam uma resposta. O que se pode dizer, entre algumas observações simples, é que frequentemente se leem as histórias de Holmes com um sorriso nos lábios - um bom sinal, sempre, em qualquer leitura. Para o leitor, além disso, há na narrativa a sensação constante de tranquilidade caseira. É como se o doutor Watson, na descrição usada pelo escritor John Le Carré, estivesse contando de viva voz as aventuras do amigo, sentado numa poltrona ao nosso lado. Há ingenuidade, sem dúvida, em muito do que se lê. É claro, também, que Holmes e Watson circulam num mundo que morreu, a Londres de 1890, tão distante da realidade de hoje como a antiga civilização asteca. Mas e daí? A simpatia de Holmes continua do mesmo tamanho. Ele é o amigo que milhões de leitores quiseram ou querem ter. Ou, como disse um de seus estudiosos, amamos Holmes porque ele é o símbolo de tudo aquilo que gostaríamos de ter sido, e de todas as qualidades que perdemos ou nunca tivemos.

Como não gostar de um personagem que conhece 140 tipos de cinza de cigarro, charuto e cachimbo? Sherlock Holmes resolve todos os problemas porque, simplesmente, sabe tudo. Sabe tudo sobre violinos, cerâmica medieval e seitas budistas do Ceilão. Identifica a tipografa usada por todos os jornais da Inglaterra. (Uma única vez, quando jovem, chegou a confundir o Leeds Mercury com o Western Morning News.) É capaz de decifrar 160 códigos utilizados por serviços secretos. Seus poderes de dedução não têm paralelo: baseado no exame de um velho chapéu de feltro, consegue desenhar um retrato impecável de seu dono, incluindo o fato de que ele não dispõe de gás em sua casa. E os disfarces? Holmes assume a aparência de qualquer personagem que queira, de cocheiros do East End a padres italianos perdidos  numa plataforma de Victoria Station. É acima de tudo um investigador cerebral, mas que ninguém se engane: pode transformar-se a qualquer momento num homem de ação, exímio em técnicas de defesa pessoal e, quando necessário, apoiado por um 450 Adams, por exemplo, ou um Webley da polícia metropolitana. Sherlock Holmes é irresistível mesmo quando parece insuportável, como no célebre telegrama que manda para Watson: "Venha imediatamente, se não houver inconveniente; se houver, venha do mesmo jeito". Seu charme, enfim, é complementado por Watson, tão amado quanto Holmes pelo leitor. Nele, obviamente, Doyle concentrou todas as qualidades que os ingleses gostam de associar a si mesmos - decência, integridade, coragem, cavalheirismo, espírito de justiça, consideração com o próximo.

A verdade é que ninguém, no fundo, precisa entender o fenômeno Sherlock Holmes. A única coisa que realmente interessa é ler suas histórias.

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