Controvérsia - Historiador italiano fez investigação obssessiva engrossando o debate em torno da obra
Por Bernardo Carvalho
RESUMO
Em ensaio já clássico, o historiador Carlo Ginzburg procura, nas circunstâncias políticas de cidades italianas como Roma, Arezzo e Florença e na oposição entre igreja do Oriente e do Ocidente no século 15, os sinais que o levaram à atribuição do quadro "A Flagelação de Cristo" ao mestre da pintura Piero della Francesca.
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UM DOS MAIORES ENIGMAS da história da pintura tem 81 por 58 centímetros. E permanece até hoje no palácio renascentista que um duque zarolho mandou construir, em meados do século 15, com o dinheiro de seu exército mercenário (depois de perder o olho direito num torneio), determinado a fazer de sua pequena cidade, encarapitada no alto de uma colina, um centro humanista e artístico à altura de Florença.
O esforço acabou dando algum resultado. Tanto que foi no palácio ducal de Urbino que Castiglione se inspirou para escrever, décadas depois, um dos grandes clássicos do Renascimento italiano e da literatura ocidental, o best-seller "O Cortesão", manual de comportamento na corte. E é lá, numa das salas espartanas com paredes caiadas, que está exposto o pequeno "A Flagelação de Cristo", uma das maiores obras-primas da história da pintura e "um dos casos mais controversos da hermenêutica artística", como o define o historiador Carlo Ginzburg em seu arrebatador "Investigando Piero", ensaio escrito à maneira de um romance policial, sobre um quadro em relação ao qual a única certeza (graças ao detalhe de uma inscrição que faz referência explícita ao local de nascimento do pintor) é a autoria de Piero della Francesca.
MISTÉRIO Quase nada se sabe sobre Piero -como é conhecido o mestre de Borgo Sansepolcro, vilarejo nos arredores de Arezzo, onde ele nasceu, entre 1415 e 1420, e onde morreu, em 1492, enquanto era descoberto o Novo Mundo.
"A Flagelação de Cristo" nunca facilitou descoberta nenhuma. Ao contrário, o mistério do quadro é inversamente proporcional à modéstia de suas dimensões -o que não impede que as proporções internas da cena representada na pintura correspondam (segundo a "mística da medida" perfeitamente dominada por Piero, teórico e inovador notável da perspectiva) à suposta altura de Cristo, "modelo da perfeição física do Homem-Deus", deduzida de relíquias transferidas de Jerusalém para a cidade de Roma.
Em 1981, Carlo Ginzburg, hoje professor da Escola Normal Superior, em Pisa, e um dos expoentes da chamada "micro-história" (escola que privilegia as anomalias, as especificidades e os casos particulares na composição do contexto histórico), resolveu dar a sua contribuição à controvérsia. E foi mexer logo na cronologia.
Baseado em toda uma teoria que combina os poucos dados biográficos conhecidos do pintor com a conjuntura política e religiosa da Itália depois da queda de Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, em 1453, Ginzburg contestou a data atribuída à obra por especialistas da estatura de Roberto Longhi -autor de uma "Breve mas Verídica História da Pintura Italiana" e de um estudo seminal sobre Piero, de 1927 (ambos também publicados pela Cosac Naify). E propôs uma ousada reinterpretação dos personagens em cena, chegando a uma explicação espetacular da obra.
DISPUTAS Tudo gira em torno das disputas e dos esforços de reconciliação entre a igreja do Oriente, sediada em Constantinopla (atual Istambul) antes da invasão turca, e a igreja de Roma. Tudo se resume às disputas e troca de favores entre as cortes italianas -e entre estas e a igreja.
Boa parte da igreja do Oriente se opunha à reconciliação com a igreja de Roma, enquanto os humanistas de ambos os lados, zelosos do que a Antiguidade grega representava para o Ocidente, não poupavam esforços em favor da unidade.
Ginzburg sustenta a tese de que "A Flagelação de Cristo" seria uma encomenda enviada ao duque de Urbino, Federico da Montefeltro, como forma de pressioná-lo a levantar seu Exército contra os turcos, em defesa do último bastião do cristianismo no Oriente, depois da queda de Constantinopla, que marca o fim da Idade Média.
O duque resistia à ideia de uma cruzada para salvar o pouco que restava do Império Bizantino -o Despotado da Moreia, na Grécia, que viria a cair de qualquer jeito, sete anos depois de Constantinopla. E o mais extraordinário nesse quebra-cabeças romanesco montado por Ginzburg é o argumento de que, para convencê-lo a ir à guerra, o quadro vai associar simbolicamente a grande história à anomalia e à tragédia de sua vida privada.
ENCOMENDA O primeiro passo da investigação é saber quem encomendou o quadro. A resposta depende da articulação entre os dois planos representados na pintura. À esquerda, e ao fundo, Cristo é espancado, amarrado a uma coluna, sob o olhar impassível de Pilatos, sentado num trono. Ginzburg o identifica, pelos trajes, com o imperador bizantino, João 8º Paleólogo, que, em sua inércia, refém do movimento contrário à união das duas igrejas, acabou sendo cúmplice dos martírios infligidos aos cristãos pelos turcos. A arquitetura da cena alude a edifícios específicos e relíquias mantidas em Roma, dando munição ao historiador para situar o quadro cronologicamente à altura da passagem de Piero pela cidade, em 1458-59, e refutar as datações anteriores.
No primeiro plano, à direita, estão três personagens. É a cena principal, a despeito do nome da obra. Diante da dificuldade de identificação, Ginzburg resiste a entendê-los apenas como alegorias ou representações de tipos anônimos. São retratos. O historiador vai identificar o personagem mais à direita com figuras recorrentes em outras obras de Piero, sobretudo no célebre ciclo de Arezzo, sua obra-prima.
Quando esteve em Florença, ainda jovem, Piero frequentou os humanistas toscanos, com os quais também mantinha relações de amizade, como o comerciante aretino Giovanni Bacci, futuro protetor do artista. É Bacci quem vai encomendar os afrescos da igreja de San Francesco, em Arezzo, que contam a "lenda da verdadeira Cruz" (a história da madeira na qual Cristo foi crucificado). É um homem do poder, que terá um papel importante dentro da igreja. É ele o personagem à direita.
O da esquerda, identificado pela indumentária e pela barba de estrangeiro, é o bispo grego Bessarion, ilustre representante da igreja do Oriente e militante da causa da unidade entre as duas igrejas, que depois Roma vai nomear cardeal. É ele quem faz a ligação entre os dois planos da pintura. Seus lábios estão entreabertos. E o que ele conta é o sofrimento dos cristãos nas mãos dos turcos, que a cena secundária, da flagelação de Cristo ao fundo, representa como alegoria.
PONTO CEGO Graças a uma investigação obsessiva, recorrendo às provas sempre que possível (mas também incorporando ao relato os próprios percalços da pesquisa), Ginzburg faz o leitor imaginar o encontro entre Piero, seu protetor aretino e o cardeal grego, em Roma, com o objetivo de exortar o duque de Urbino à Cruzada, por meio de uma pintura. E o principal argumento para convencê-lo será esse ponto cego da iconografia que é a terceira figura angelical e misteriosa entre os dois personagens em primeiro plano.
O rapaz, que lembra os anjos de outras obras de Piero, como o "Batismo de Cristo", está descalço, ao contrário dos que o cercam, e olha para fora do quadro, para o além -para o mundo do espectador, talvez, e de Federico da Montefeltro, a quem a encomenda se dirige.
É uma figura que não está na mesma dimensão das outras. "Os olhos do misterioso jovem louro fitam algo que não vemos", insinua Ginzburg. Era preciso falar ao coração do duque. E é esse apelo, na interpretação do historiador, que revela afinal a identidade do jovem, figura-chave do mistério, que aqui vai permanecer incógnito para não estragar a surpresa e o encanto do leitor.
OBJETOS DA NATUREZA Federico da Montefeltro chegou ao poder em 1444, substituindo o irmão assassinado numa emboscada da qual não está excluída a sua participação. Piero della Francesca pintou um díptico famoso, hoje no museu dos Uffizi, em Florença, composto pelos retratos de Federico (de perfil, para evitar a visão sinistra da face direita, desfigurada pela lança que lhe arrancou o olho durante um torneio) e de sua mulher, Battista Sforza, recém-falecida. Sobre o díptico, o crítico Bernard Berenson escreveu: "Os retratos do duque e da duquesa de Urbino foram concebidos como se ambos fossem objetos da natureza, rochas, colinas". E sobre Piero: "Parece ter sido contrário à manifestação do sentimento, disposto a tudo para evitá-la. Hesitava até mesmo em reproduzir a reação natural acarretada pela investida de uma força contra um objeto inanimado, como por exemplo o ricochete de um tronco golpeado por um machado".
Uma impassibilidade capaz de levar um duque zarolho às lágrimas e à guerra.
O esforço acabou dando algum resultado. Tanto que foi no palácio ducal de Urbino que Castiglione se inspirou para escrever, décadas depois, um dos grandes clássicos do Renascimento italiano e da literatura ocidental, o best-seller "O Cortesão", manual de comportamento na corte. E é lá, numa das salas espartanas com paredes caiadas, que está exposto o pequeno "A Flagelação de Cristo", uma das maiores obras-primas da história da pintura e "um dos casos mais controversos da hermenêutica artística", como o define o historiador Carlo Ginzburg em seu arrebatador "Investigando Piero", ensaio escrito à maneira de um romance policial, sobre um quadro em relação ao qual a única certeza (graças ao detalhe de uma inscrição que faz referência explícita ao local de nascimento do pintor) é a autoria de Piero della Francesca.
MISTÉRIO Quase nada se sabe sobre Piero -como é conhecido o mestre de Borgo Sansepolcro, vilarejo nos arredores de Arezzo, onde ele nasceu, entre 1415 e 1420, e onde morreu, em 1492, enquanto era descoberto o Novo Mundo.
"A Flagelação de Cristo" nunca facilitou descoberta nenhuma. Ao contrário, o mistério do quadro é inversamente proporcional à modéstia de suas dimensões -o que não impede que as proporções internas da cena representada na pintura correspondam (segundo a "mística da medida" perfeitamente dominada por Piero, teórico e inovador notável da perspectiva) à suposta altura de Cristo, "modelo da perfeição física do Homem-Deus", deduzida de relíquias transferidas de Jerusalém para a cidade de Roma.
Em 1981, Carlo Ginzburg, hoje professor da Escola Normal Superior, em Pisa, e um dos expoentes da chamada "micro-história" (escola que privilegia as anomalias, as especificidades e os casos particulares na composição do contexto histórico), resolveu dar a sua contribuição à controvérsia. E foi mexer logo na cronologia.
Baseado em toda uma teoria que combina os poucos dados biográficos conhecidos do pintor com a conjuntura política e religiosa da Itália depois da queda de Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, em 1453, Ginzburg contestou a data atribuída à obra por especialistas da estatura de Roberto Longhi -autor de uma "Breve mas Verídica História da Pintura Italiana" e de um estudo seminal sobre Piero, de 1927 (ambos também publicados pela Cosac Naify). E propôs uma ousada reinterpretação dos personagens em cena, chegando a uma explicação espetacular da obra.
DISPUTAS Tudo gira em torno das disputas e dos esforços de reconciliação entre a igreja do Oriente, sediada em Constantinopla (atual Istambul) antes da invasão turca, e a igreja de Roma. Tudo se resume às disputas e troca de favores entre as cortes italianas -e entre estas e a igreja.
Boa parte da igreja do Oriente se opunha à reconciliação com a igreja de Roma, enquanto os humanistas de ambos os lados, zelosos do que a Antiguidade grega representava para o Ocidente, não poupavam esforços em favor da unidade.
Ginzburg sustenta a tese de que "A Flagelação de Cristo" seria uma encomenda enviada ao duque de Urbino, Federico da Montefeltro, como forma de pressioná-lo a levantar seu Exército contra os turcos, em defesa do último bastião do cristianismo no Oriente, depois da queda de Constantinopla, que marca o fim da Idade Média.
O duque resistia à ideia de uma cruzada para salvar o pouco que restava do Império Bizantino -o Despotado da Moreia, na Grécia, que viria a cair de qualquer jeito, sete anos depois de Constantinopla. E o mais extraordinário nesse quebra-cabeças romanesco montado por Ginzburg é o argumento de que, para convencê-lo a ir à guerra, o quadro vai associar simbolicamente a grande história à anomalia e à tragédia de sua vida privada.
ENCOMENDA O primeiro passo da investigação é saber quem encomendou o quadro. A resposta depende da articulação entre os dois planos representados na pintura. À esquerda, e ao fundo, Cristo é espancado, amarrado a uma coluna, sob o olhar impassível de Pilatos, sentado num trono. Ginzburg o identifica, pelos trajes, com o imperador bizantino, João 8º Paleólogo, que, em sua inércia, refém do movimento contrário à união das duas igrejas, acabou sendo cúmplice dos martírios infligidos aos cristãos pelos turcos. A arquitetura da cena alude a edifícios específicos e relíquias mantidas em Roma, dando munição ao historiador para situar o quadro cronologicamente à altura da passagem de Piero pela cidade, em 1458-59, e refutar as datações anteriores.
No primeiro plano, à direita, estão três personagens. É a cena principal, a despeito do nome da obra. Diante da dificuldade de identificação, Ginzburg resiste a entendê-los apenas como alegorias ou representações de tipos anônimos. São retratos. O historiador vai identificar o personagem mais à direita com figuras recorrentes em outras obras de Piero, sobretudo no célebre ciclo de Arezzo, sua obra-prima.
Quando esteve em Florença, ainda jovem, Piero frequentou os humanistas toscanos, com os quais também mantinha relações de amizade, como o comerciante aretino Giovanni Bacci, futuro protetor do artista. É Bacci quem vai encomendar os afrescos da igreja de San Francesco, em Arezzo, que contam a "lenda da verdadeira Cruz" (a história da madeira na qual Cristo foi crucificado). É um homem do poder, que terá um papel importante dentro da igreja. É ele o personagem à direita.
O da esquerda, identificado pela indumentária e pela barba de estrangeiro, é o bispo grego Bessarion, ilustre representante da igreja do Oriente e militante da causa da unidade entre as duas igrejas, que depois Roma vai nomear cardeal. É ele quem faz a ligação entre os dois planos da pintura. Seus lábios estão entreabertos. E o que ele conta é o sofrimento dos cristãos nas mãos dos turcos, que a cena secundária, da flagelação de Cristo ao fundo, representa como alegoria.
PONTO CEGO Graças a uma investigação obsessiva, recorrendo às provas sempre que possível (mas também incorporando ao relato os próprios percalços da pesquisa), Ginzburg faz o leitor imaginar o encontro entre Piero, seu protetor aretino e o cardeal grego, em Roma, com o objetivo de exortar o duque de Urbino à Cruzada, por meio de uma pintura. E o principal argumento para convencê-lo será esse ponto cego da iconografia que é a terceira figura angelical e misteriosa entre os dois personagens em primeiro plano.
O rapaz, que lembra os anjos de outras obras de Piero, como o "Batismo de Cristo", está descalço, ao contrário dos que o cercam, e olha para fora do quadro, para o além -para o mundo do espectador, talvez, e de Federico da Montefeltro, a quem a encomenda se dirige.
É uma figura que não está na mesma dimensão das outras. "Os olhos do misterioso jovem louro fitam algo que não vemos", insinua Ginzburg. Era preciso falar ao coração do duque. E é esse apelo, na interpretação do historiador, que revela afinal a identidade do jovem, figura-chave do mistério, que aqui vai permanecer incógnito para não estragar a surpresa e o encanto do leitor.
OBJETOS DA NATUREZA Federico da Montefeltro chegou ao poder em 1444, substituindo o irmão assassinado numa emboscada da qual não está excluída a sua participação. Piero della Francesca pintou um díptico famoso, hoje no museu dos Uffizi, em Florença, composto pelos retratos de Federico (de perfil, para evitar a visão sinistra da face direita, desfigurada pela lança que lhe arrancou o olho durante um torneio) e de sua mulher, Battista Sforza, recém-falecida. Sobre o díptico, o crítico Bernard Berenson escreveu: "Os retratos do duque e da duquesa de Urbino foram concebidos como se ambos fossem objetos da natureza, rochas, colinas". E sobre Piero: "Parece ter sido contrário à manifestação do sentimento, disposto a tudo para evitá-la. Hesitava até mesmo em reproduzir a reação natural acarretada pela investida de uma força contra um objeto inanimado, como por exemplo o ricochete de um tronco golpeado por um machado".
Uma impassibilidade capaz de levar um duque zarolho às lágrimas e à guerra.
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