Por Jomar Ricardo da Silva - Professor da UEPB. Membro do Neab-Í (Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígena) e coordenador da Especialização em História e Cultura Afro-Brasileira.
"Há pouco, Caetano Veloso descartou do seu horizonte eleitoral o presidente Lula da Silva, justificando: “Lula é analfabeto”. Por isso, o cantor baiano aderiu à candidatura da senadora Marina da Silva, que tem diploma universitário. Agora, vem a roqueira Rita Lee dizendo que nem assim vota em Marina para presidente, “porque ela tem cara de quem está com fome”. *
Tenho sede. Mas não é sede d'agua. É sede de chama. Não chama de fogo. É chama de pessoa humana. Enquanto milhões de pessoas passam fome, a poucos lhes faltam fome de justica. Muitos não possuem educação. Eu grito no deserto pela inclusão. Almoço e não me conformo, com alguém que bate à porta, implorando de comida um prato. Se para tantos falta pão, para poucos coração e sensibilidade.
Pelo visto, é essa sensibilidade que falta, a Caetano Veloso e a Rita Lee, quando declaram suas rejeições eleitorais dirigidas a Luís Inácio Lula da Silva e a Marina Silva. Os posicionamentos explicam, em parte, a situação que nos encontramos, ao fazer conjecturas sobre a consciência dos eleitores diante dos candidatos oriundos das classes populares. Os compositores são pessoas que as estruturas sociais proveram de bens materiais e culturais qualitativa e quantitativamente acima daqueles que se encontram excluídos do mínimo para sobrevivência, e do lugar em que se distanciam dos despossuídos, tornam-se incapazes de pensar nas causas que geram tamanha desigualdade. Estão mergulhados em uma ideologia liberal, porque foram educados pela família, pela escola e pela religião (o Estado é responsável em grande parte pela difusão de representações e atitudes), e por isso, acreditam que suas aptidões de cantar numa língua estrangeira, ou citar um filósofo, ou usufruir de um padrão de vida sofisticado, são qualidades individuais pertencentes a um grupo distinto de pessoas. Portanto, aderem a ideia de que seus capitais culturais são méritos legitimamente adquiridos, em detrimento de outros que não foram aquinhoados pela sorte, pelo destino ou por Deus.
Essa forma de pensar é constituída por uma organização social que prioriza o individualismo em sua conotação mais perversa. À medida que se possuem bens culturais restritos, ocorre uma distinção em relação aos demais e a preponderância de valores que passam a ser superiores e verdadeiros. Com isso, nas relações sociais do cotidiano percebe-se o outro, a partir de uma visão estereotipada, por exemplo: o perfil de um presidente da República seria de um candidato que fale fluente línguas estrangeiras, tenha diploma universitário, modo educados de pequeno-burguês e sem os traços fisionômicos de índio ou negro.
Todavia, os cantores, por estarem num grupo seleto de representantes de um segmento social, como diria Pierre Bourdieu, segmento dominado da classe dominante, na condição de intelectuais, promotores de visões de mundo emanadas de estratificações sociais, emergem no cenário conjuntural, entornando na lama suas marcas de bem nascidos e educados. Convenhamos, os termos chinfrins e as justificativas preconceituosas, agridem a dignidade de qualquer ser humano e ficam aquém das eminentes figuras da MPB. Aliás, desse modo, pode-se considerar tais musicistas pertencentes a nobre estirpe da Música Popular Brasileira? Apenas, e tão somente, se se retirar o povo, substantivo, do adjetivo popular. Pois, constata-se que ambos, além de serem provenientes de classe média, têm uma profunda ojeriza ao povo brasileiro e veem com desprezo o sofrimento dele.
O que mais me preocupa, nessa performance midiática, é que os próceres artistas, longe de emitirem um opinião original, apenas informam a sociedade os modos de pensar da elite brasileira sobre os empobrecidos. Não que esta tenha se comportado apenas agora dessa forma, mas aponta um incômodo desse segmento com ascensão social e política de grupos marginalizados que se elevam ao cenário nacional, em função da organização de classe, trabalho e capacidade de entender a lógica de exclusão da sociedade capitalista e propor dentro dos moldes da democracia, a solução dos problemas que atingem todos indistintamente.
Antes de ser causa, essa atitude de vilipendiar os grupos marginalizados é conseqüência de um processo de fascistização que toma paulatinamente a malha social e vai em direção a hegemonia da sociedade, que se propaga pelos meios de comunicação, são reproduzidos pelas instituições e chega as cabeças de homens e mulheres de boa consciência. Tem-se, assim, sua forma pronta e acabada nos clichês que corre de boca em boca, nas mercearias, botecos, panificadoras: “Bandido bom é bandido morto”. “O governo Lula sustenta a preguiça do povo.” Sem falar da criminalização dos Movimentos Sociais. Apenas a conscientização, através de uma educação popular, pode enfrentar esse desafio.
*Trecho do artigo "A Fome de Marina", escrito por José Ribamar Bessa Freire - professor, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ) e pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO).
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