quarta-feira, 30 de junho de 2010

Como fica a África depois da Copa do Mundo?


Por Giuliana Rodrigues, da ASCOM/UEPB

            Curtir Copa do Mundo é realmente uma delícia! Toda aquela expectativa pela estréia, planejar onde serão assistidos os jogos, torcer por nossa seleção ao lado de amigos e familiares, falar de futebol durante um mês inteiro, comentar as particularidades do país sede e ainda celebrar cada conquista... não tem preço!
            Torcendo, todas as pessoas são iguais na hora de comemorar o gol, mas muitos esquecem o que está por trás de tudo isso. Pessoas pobres tentam sobreviver em todo continente africano, diante de uma contrastante desigualdade social.
Escondidos pelo brilho dos jogadores que ganham milhões, das inúmeras emissoras de TV, dos mega patrocinadores e da diversão que impera em todos os jogos, estão aqueles que dormem nas ruas, sofrem preconceito, não têm emprego. Além de tudo, a polícia, o governo e a justiça são marcados pela insensibilidade e corrupção.
Outro inimigo local é o vírus da Aids que faz vítimas fatais,  pois a população não conta com sistemas de saúde pública eficientes. Dados apontam que em 2008, sem políticas de prevenção ou tratamento, a África do Sul bateu nos 365 mil mortos de Aids, sendo 60% mulheres. 
De acordo com reportagem da Folha de S.Paulo (27/06/2010), “...em 2007, houve 75,6 estupros por grupo de 100 mil habitantes – cinco vezes o registrado na cidade de São Paulo. Em 12 meses, foram mais de 70 mil queixas de crimes sexuais e os índices mais chocantes dão conta de um estupro a cada 30 segundos no país, ou, 1,2 milhão de estupros por ano”. Impressiona?
Não quero prejudicar o clima positivo da Copa Mundial, nem atrapalhar a diversão. Mas não dá para fechar os olhos diante de questões mais importantes nos bastidores, como a pobreza e o vazio existencial que permanecerão depois dos jogos. Ao que tudo indica, o grandioso evento não contribuirá em nada com a vida dos que foram excluídos dos benefícios trazidos pelo Mundial sediado pela África do Sul.
É difícil viver na África, mas, viver no Brasil, para muitos, não é diferente. Em 2014 será nossa vez de sediar a Copa e espero, sinceramente, que possamos cuidar tão bem daqueles que estão na escuridão, como cuidamos dos que estão sob os holofotes.

terça-feira, 29 de junho de 2010

São João em Campina Grande: passos lentos a caminho da sustentabilidade

Por Juliana Rosas, da ASCOM/UEPB

Uma boa ação sustentável observada neste grande festejo junino que ocorre em Campina Grande é o fato de a Prefeitura - pela primeira vez - ter colocado agentes de limpeza para o recolhimento do lixo durante a festa, e não só quando de seu fim ou no dia seguinte. Um ponto positivo. Porém, nem tudo são flores. Vemos aquelas pessoas decentes fazendo seu trabalho e outras tantas jogando lixo no chão inconseqüentemente.

A Universidade Estadual da Paraíba possui profissionais que lutam pelo meio ambiente, que estudam as conseqüências da falta de sustentabilidade e da não reciclagem do lixo, entre outros. E vem, nos últimos anos, divulgando estas causas. Especialmente, a dificuldade política para fazer ações saírem do papel. Ou pior que isso, de entrarem no papel de qualquer agenda política. Não há, neste caso, motivo para divergências políticas. Boas ações devem ser reconhecidas e divulgadas.

Campina Grande sofre, e muito, com problemas ambientais. Déficit de árvores; falta de um sistema de tratamento de esgoto; não existência de uma política de proteção ao bem estar animal; falta de preservação da Mata do Louzeiro, localizado no bairro do Alto Branco. Há ainda o Açude Velho, um cartão-postal da cidade que também não recebe o devido tratamento de despoluição e tratamento dos esgotos que ali são despejados. As praças e jardins precisam ser mais bem cuidados e preservados por nossa população. Estes foram alguns problemas enumerados pela professora do Departamento de Serviço Social da UEPB, Fátima Araújo.

A professora Fátima também é coordenadora do projeto de extensão "Catamais", que denomina, igualmente, uma cooperativa de catadores de material reciclável da cidade, que participa do projeto. Este é outro problema local. Falta de manejo do lixo. Não há separação domiciliar de material. Quase não há reciclagem. Catadores não são reconhecidos ou amparados pelo poder público.

Cidades Sustentáveis

Jaime Lerner, ex-governador do Paraná e ex-prefeito de Curitiba, tem uma opinião sobre a sustentabilidade nas cidades. Ele também é arquiteto e conselheiro do movimento Planeta Sustentável e numa entrevista dada em maio deste ano para o site www.planetasustentavel.com.br ensina como se faz uma metrópole com mais qualidade de vida.

Em sua opinião, qualquer cidade - em qualquer parte do mundo - pode melhorar sua qualidade de vida em menos de três anos. “Isso é possível porque nem sempre a resposta vem com dinheiro público, mas com ações coletivas. É importante ter decisão política, mas é fundamental a visão estratégica para promover uma mudança e fazer com que todas as forças da comunidade atuem a favor”, opinou o político e arquiteto.

Questionado sobre os principais problemas das grandes cidades atuais, ele diz que são vários, mas três deles são essenciais às próprias cidades e à humanidade: mobilidade, sustentabilidade e diversidade social. Segundo ele, o maior entrave para a sustentabilidade é a falta de visão do que realmente é sustentável. “Hoje, a grande dificuldade é a dependência excessiva do automóvel, a moradia afastada do trabalho, a divisão da cidade por função, enfim, tudo o que dificulta a qualidade de vida dos cidadãos”, disse.

Como ex-governador do Paraná e ex-prefeito de Curitiba, uma cidade brasileira modelo de qualidade de vida, ele também descreve as boas ações alcançadas. “Há 20 anos, entre 60% e 70% da população de Curitiba separa seus rejeitos para reciclagem. É o mais alto índice do mundo”, afirmou Jaime Lerner. Para ele, um dos maiores exemplos que Curitiba tem a dar é a implantação pioneira, em 1974, do BRT (Bus Rapid Transit), o sistema de transporte coletivo em corredores exclusivos com pagamento antecipado de passagem. “Hoje, 80 cidades em vários países já implantaram esse sistema. Curitiba acaba de ganhar o prêmio Globe Award Sustainable City 2010, oferecido por uma entidade sueca de empreendedores sustentáveis”, disse Jaime, com orgulho.

Inovar é a palavra de ordem para o arquiteto sustentável. “Idéias simples e baratas são as que trazem inovação. Inovar é, sobretudo, colocar a idéia em prática o mais rápido possível para provocar a mudança. A criatividade vem quando se corta um zero do orçamento, mas a sustentabilidade é quando se cortam dois zeros”, afirmou, brilhantemente.

Portanto, voltando a nossa realidade local, agentes de limpeza trabalhando n' O Maior São João do Mundo, com vistas a evitar o acúmulo de lixo, pode ser uma boa iniciativa. Todavia, que eles estejam sendo bem remunerados, que sejam respeitados pelos freqüentadores e que os usuários cooperem não jogando lixo a torto e a direito. Que isto não seja apenas maquiagem. Que o lixo recolhido seja reciclado e tenha destino certo. Que não vá para o lixão a céu aberto. O maior problema ambiental do município, provavelmente, e que não vai entrar no artigo porque isso dá pano pra manga... Então, amigos: lixo no lixo e sustentabilidade na cabeça!

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Diocese de Campina Grande lança campanha em favor das vítimas das enchentes em Palmares (PE)



Em solidariedade ao povo de Alagoas e Pernambuco, que está sofrendo com as chuvas ocorridas nos últimos dias, a Diocese de Campina Grande lançou uma campanha para auxiliar às vítimas das enchentes em Palmares (PE). A iniciativa tem o apoio da Coordenadoria de Turismo da Prefeitura Municipal de Campina Grande e acontecerá até o próximo dia 1º de julho.
Estão sendo pedidas doações em dinheiro, através de depósito na conta corrente do Banco do Brasil, nº 11.951-2, agência: 1634-9, bem como água potável, alimentos não-perecíveis, roupas e colchões. A meta meta é conseguir 15 toneladas de mantimentos até o final da campanha.

Os postos de coleta das doações estão localizados no centro de Campina Grande e são a Cúria diocesana, situada na Rua Afonso Campos, 251; a Catedral de Nossa Senhora da Conceição, na Avenida Floriano Peixoto; além do Centro de Apoio ao Turista, situado na esquina da Avenida Dr. Severino Cruz com a Rua Miguel Couto, no local do antigo posto de combustíveis Berro D’Água, nas proximidades do Parque do Povo.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Álcool ameaça 22% dos universitários


Por Larissa Guimarães, da Folha de São Paulo


Um em cada cinco universitários brasileiros (22%) está sob risco de desenvolver dependência de álcool, de acordo com o mais recente levantamento realizado em universidades públicas e privadas do país.

O risco é considerado moderado para 19,2% e elevado para 2,6%, segundo a pesquisa encomendada pela Senad (Secretaria Nacional Antidrogas). Para o estudo, foram entrevistados cerca de 18 mil estudantes, nas 27 capitais do país em 2009.

O risco foi calculado levando em conta um teste desenvolvido pela OMS (Organização Mundial da Saúde) sobre frequência e consumo pesado de bebidas.

O levantamento também mostrou que o perigo quanto a uma possível dependência de álcool é maior para os homens (29%) do que para as mulheres (16%).

"Quanto mais precoce o uso de álcool, maiores as chances de desenvolver uma dependência alcoólica", disse o médico Arthur Guerra, um dos responsáveis pelo levantamento.

Os dados revelam que o jovem brasileiro começa a beber cedo -80% dos universitários com menos de 18 anos responderam já ter consumido bebida alcoólica.

Além disso, dentro das faixas etárias, os jovens de 18 a 24 anos são os que mais bebem.

O consumo pesado (cinco ou mais doses para homem e quatro ou mais doses para mulheres, num período de duas horas) atinge um patamar preocupante.

Um em cada quatro universitários afirmou ter bebido nesse padrão nos 30 dias anteriores ao teste.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

50 anos de Psicose

Por Juliana Rosas, da ASCOM/UEPB

Estava tentando arranjar uma onomatopéia que pelo menos lembrasse o som das “facadas” na cena do banheiro no filme Psicose. Não consegui. Este som agudo e inesquecível, quase uma tradução perfeita do que é suspense, é intraduzível verbalmente. Vou deixar isso por conta dos sons arranhados de violinos e violas criados pelo compositor Bernard Herrmann. O motivo de toda esta lembrança é a comemoração de 50 anos do filme Psicose (1960), obra-prima do diretor Alfred Hitchcock.

“Psicose é um filme que marca a trilha sonora no cinema. Além de ser um clássico, tem a característica de as imagens estarem a serviço da música na famosa cena do chuveiro”, afirmou Matheus Andrade, videasta e professor da Unidade de Arte e Mídia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).

O professor do Departamento de Comunicação Social da UEPB e coordenador do Cineclube Machado Bitencourt, Rômulo Azevedo, também é só elogios ao filme e ao diretor. “Hitchcock tem um estilo bastante singular e é o responsável pelo suspense no cinema. Psicose é um marco. É um filme com estilo, filmado em preto e branco na época em que já se filmava muito em colorido”, disse Rômulo, que também é cineasta.

Ele explicou que aqueles que não conhecem o diretor e veem o referido filme, podem ter uma noção do que é o cinema de Hitchcock, e que Psicose, apesar do cinqüentenário, era e continua sendo um filme moderno. “Quem ainda não viu este filme deveria vê-lo rapidinho”, recomenda.

O que acontece muitas vezes é que o espectador cria grandes expectativas com relação a um clássico cinematográfico e acaba se decepcionando. “Isso porque boa parte o público já viu tanta imitação, tanto pastiche, que termina sem entender e gostar”, disse Rômulo. Psicose influenciou muitas produções de suspense, mas, claro, muitas refilmagens horríveis foram feitas, por pura comercialização.

Curiosidades

Alfred Hitchcock comprou anonimamente os direitos do livro de Robert Bloch, que deu origem ao roteiro do filme. Reza a lenda que Hitchcock, depois de pagar pelos direitos, mandou comprar todas as cópias do livro disponíveis no mercado para que ninguém o lesse e, consequentemente, seu final não fosse revelado.

Psicose começa com a secretária Marion dando um desfalque de 40 mil dólares na imobiliária onde trabalha. Ela sai dirigindo pela estrada, tentando fugir antes de ser descoberta. Chovendo bastante e cansada, ela resolve parar no Motel Bates, um lugar decadente, que quase fechou suas portas após o desvio da autoestrada. Lá, é recepcionada por um simpático mas estranho rapaz, Norman Bates - personalidade tímida e dominada pela mãe. Após um bate-papo e um rápido sanduíche, acontece o inesperado: Marion é brutalmente esfaqueada enquanto toma banho, numa das cenas mais famosas de toda a história do cinema.

Para comemorar os 50 anos de Psicose o filme voltou aos cinemas este ano do Reino Unido, terra do diretor britânico, e em outubro ganhará um edição especial em blu-ray, com uma versão remasterizada em alta definição, trailer original e um documentário sobre a realização do filme.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

A estilista que pôs Nelson Mandela na moda


Por Daniela Pinheiro, da Revista Piauí

No aeroporto internacional de Joanesburgo, depois de vencer o controle de passaportes, a primeira visão do que se anuncia como um imenso corredor de lojinhas de bugigangas é uma vitrine metonímica. Seis manequins sem cabeça e sem pernas envergam camisas que dispensam apresentação, para quem tem em mente a figura do ex-presidente sul-africano Nelson Mandela. Em seda pura, pintadas a mão, com estampas que se poderiam descrever com um arsenal de adjetivos - nenhum deles sinônimo de "discreto" ou "avançado" -, as Mandelas, como são chamadas pela vendedora, capturam o olhar.

Primeiro, pela possibilidade de admirar de perto um grafismo muito peculiar - pássaros, flores, tramas, cabeças étnicas, naturezas-mortas, rabiscos. São peças feitas uma a uma por uma equipe enxuta de oito alfaiates, que produzem apenas 400 exemplares por ano. A exclusividade tem um preço: cada uma delas custa no mínimo o equivalente a 1 500 reais. E há também a possibilidade de matar uma curiosidade que assola quase todo mundo que visita a África do Sul: quem mais, além de Mandela, usará essas camisas? "Nossa clientela tem muitos aposentados ingleses", informa a vendedora, nitidamente entusiasmada.

A loja Presidential pertence à estilista sul-africana Desre Buirski, uma loira magra, de 48 anos - "Ai, essa informação é realmente necessária?" -, que lembra sua colega de profissão Donatella Versace, antes do tsunâmi de plásticas que desestabilizou o semblante da italiana. Nos anos 80, no auge do apartheid, Desre emigrou para os Estados Unidos com a família. Fez o caminho contrário em 1992 - segundo diz, comovida por um discurso: Nelson Mandela conclamara todos os sul-africanos que haviam deixado o país "a voltar e pôr em prática em nossa nova nação o que aprenderam lá fora".

Em 1994, algumas semanas antes da posse, o presidente eleito daria uma palestra numa sinagoga da Cidade do Cabo. Desre o aguardava ali com um presente: uma camisa preta de viscose, tamanho GG, de oito botões, com enormes peixes amarelos que ela mesma pintara. Como era impossível aproximar-se de Mandela, Desre passou o embrulho a um segurança da comitiva, que desconfiou, com toda razão. Achando que podia ser uma bomba, ele a levou para fora do recinto e a fez abrir o pacote.

Ao longo de 27 anos, Nelson Mandela vestira o uniforme cáqui da prisão da Ilha de Robben. A indumentária que adotou depois que foi libertado poderia ser descrita como conservadora e discreta. Nas aparições públicas, se não estava de terno, usava camisas polo e calça escura. Duas semanas depois da palestra na sinagoga, ele apareceu no ensaio da cerimônia de posse trajando a camisa de peixes amarelos (que mais tarde seria leiloada pelo Congresso Nacional Africano, o partido do presidente, para pagar uma conta telefônica de um comitê eleitoral do Cabo). A imagem saiu na primeira página dos jornais sul-africanos e ganhou o mundo.

Foi nessa ocasião que Desre recebeu um telefonema da secretária particular de Mandela - ela deixara no bolso da camisa um bilhetinho de apreço e, providencialmente, um número de telefone. Os presentes passaram a ser enviados quase todo mês, e com a mesma periodicidade chegavam as cartas de agradecimento.

No ano seguinte, quando Desre já presenteara Mandela com quase vinte peças, veio o convite para conhecê-lo pessoalmente, no gabinete em Pretória. Ela não segurou o choro quando o viu. Na conversa de quase uma hora, disse-lhe que "queria ajudar o novo governo de alguma maneira" - e "ele sugeriu que eu fizesse camisas com motivos folclóricos, para exaltar o nosso país lá fora." Estava lançada a "moda Mandela".

"Ele insistia em pagar", ela conta, "mas isso sempre esteve fora de questão." Já foram 130 camisas de seda e outras 150 de linho ou algodão. Com quase 1,90 de altura, Mandela usa o tamanho extra-grande. As mangas são maiores do que o normal, pois ele "tem braços compridíssimos". Em termos de cor, sua preferência são "os tons da Terra".

Desre subiu no salto das suas botas de oncinha - que ela só tira para dormir - quando um costureiro da Costa do Marfim, Pathé Ouédraogo, começou a reivindicar a autoria das camisas. "Até hoje é a mim que a assessoria de Mandela procura! Se ele tem um evento, sou que eu que faço a camisa!" Ela guardava os retalhos de todas as 280 peças que confeccionara, como prova do trabalho. Em 2008, resolveu transformá-los em dois grandes edredons de patchwork de seda e, com a devida autorização, estampou neles a assinatura de Mandela. Leiloados em Mônaco para fins beneficentes, um deles foi arrematado por Paul Alen, cofundador da Microsoft, por 360 mil euros.

Quando Clint Eastwood desembarcou no país para filmar Invictus, ligou pessoalmente para a estilista. "Mandei quatro camisas para ele e produzi todas as que o Morgan Freeman usa no filme", ela conta. Com quatro lojas na África do Sul, o grosso de suas vendas ocorre pela internet. Segundo diz, as camisas encontram compradores no mundo todo - "E não são só turistas ingleses, não. É gente com personalidade e senso étnico." O guitarrista Carlos Santana e o roqueiro Bruce Springsteen, cujo senso étnico está acima de qualquer suspeita, são dois deles.

Para a abertura da Copa do Mundo, Mandela recebeu a sua. É um modelo de cor preta, em seda bordada.

Cinema de alta voltagem poética


Por Pedro Bucther, da Folha de São Paulo


A trajetória de Karim Aïnouz

resumo

Em seus três longas-metragens, o cineasta Karim Aïnouz trilhou um caminho original. De mãe brasileira e pai argelino, o diretor é um "globe-trotter" que experimenta a consagração crítica com o filme "Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo", codirigido com Marcelo Gomes.

OS FILMES DE KARIM AÏNOUZ ESCAPAM DE TUDO o que se espera do cinema brasileiro contemporâneo. Enquanto parte dos cineastas se esforça para agradar ao público, mimetizando cacoetes da televisão, e outra se contorce na hercúlea tarefa de "explicar o Brasil", em obras que muitas vezes se assemelham a tratados sociológicos, Karim Aïnouz segue um caminho pessoal, inclassificável.

Quando a crítica estava perto de rotulá-lo como "cineasta do corpo", a partir da justa observação de seus dois primeiros longas -o masculino "Madame Satã" (2002) e o feminino "O Céu de Suely" (2006)-, eis que Karim aparece com um filme dominado pelas paisagens do sertão e praticamente "sem corpo". Em "Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo" (2010), que dirigiu em parceria com outro talento de sua geração, o cineasta pernambucano Marcelo Gomes, o protagonista não aparece diante dos olhos do espectador. Dele, só ouvimos a voz.

Se os filmes costumam partir de roteiros para encontrar as imagens, "Viajo Porque Preciso..." fez o caminho inverso: quase todo o material visto na tela foi captado anos antes de o projeto cinematográfico tomar corpo, quando Karim e Marcelo viajaram pelo sertão cearense. O primeiro resultado foi um livro com fotos, colagens e objetos; o segundo, um média-metragem chamado "Sertão de Acrílico Azul Piscina" (2004).

ROAD MOVIE Anos depois, voltaram ao material e o reorganizaram na forma de um "road movie". Captadas em diferentes formatos e com alta voltagem poética, as imagens pré-existentes ganharam novo sentido ao se submeterem à voz de José Renato (Irandhir Santos), personagem fictício, geólogo em viagem de trabalho.

O que parece ser o frio relatório do reconhecimento de terreno para uma obra de engenharia se revela, aos poucos, a viagem de superação de uma tremenda dor de cotovelo. As reações apaixonadas que o filme despertou em dois dos melhores pensadores do cinema brasileiro lhe deram um sabor de consagração, ou pelo menos de promessa cumprida.

Jean-Claude Bernardet dedicou ao filme vários posts em seu blog -incluindo uma longa entrevista com seus autores. "'Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo' não leva às lágrimas, mas a uma melancolia quieta, silenciosa, recolhida", escreveu Bernardet. Na entrevista ao crítico, Karim transborda sua paixão pelo material que resultou no filme: "Hoje a imagem passou a ser sinônimo de ancoragem, em vez de decolagem. Às vezes a gente esquece que o cinema tem essa potência, de fazer a gente poder imaginar".

O longa também fascinou Ismail Xavier, professor da USP: "Neste filme de enorme amplitude, tudo se formaliza em termos mínimos: o som compõe o personagem-voz e o cine-olho se movimenta pela estrada, sendo múltiplas as conexões entre as duas bandas independentes". Para Ismail, trata-se de um "filme de montagem", em que "a junção de fragmentos e registros compõe um tecido pop-sertanejo". "É um filme de muitas sugestões, metáforas", conclui ele. "Enfim, o máximo no mínimo".

SUPERAÇÃO Ismail identifica no trabalho de Karim Aïnouz indícios de uma superação do que se poderia chamar de um "cinema do ressentimento", típico do começo dos anos 1990 e sintomático da ressaca que se seguiu à extinção da Embrafilme. Os primeiros sinais de mudança começaram a aparecer em "Central do Brasil", de Walter Salles (1998), e ganharam contornos mais nítidos com o filme "Madame Satã".

O primeiro longa de Karim conta a história do malandro homossexual feito mito da Lapa carioca nos anos 30. Para o papel principal, na última hora o cineasta escalou um jovem ator desconhecido, Lázaro Ramos, logo depois da desistência de Seu Jorge.

"Contar a história", no entanto, é modo de dizer, pois Karim Aïnouz recusa a narrativa tradicional, o "plot" e os diálogos filmados em campo e contracampo. Antes da trama estão os personagens, seus sonhos, seus corpos e os espaços que ocupam.

Selecionado para a mostra "Un Certain Regard" do Festival de Cannes, "Madame Satã" foge aos rótulos da cinebiografia clássica e do "filme de época" ao operar um recorte muito específico na vida de seu personagem central e estabelecer laços entre sua trajetória sui generis com os dias de hoje.

Numa análise notável do desfecho de "Madame Satã" (leia a íntegra da entrevista no site folha.com/ilustríssima), Ismail Xavier vê a afirmação da autoestima de uma figura potente em seu confronto com a repressão sexual, racial. "Este gesto de reinventar-se", prossegue Ismail, "fez de 'Madame Satã' um exemplo dessa alternativa ao ressentimento, impotência, auto-envenenamento" que o crítico vê no cinema brasileiro contemporâneo.

FAIT DIVERS Seu longa-metragem seguinte, "O Céu de Suely", partiu de um "fait divers" lido num jornal, sobre uma garota que rifou seu corpo para sair de sua cidade. Tal como em seu primeiro filme, "Seams" (1993), o cineasta tomou as mulheres de sua família como modelo para criar as personagens. O tom de "O Céu de Suely" recusa julgamentos e aposta na capacidade de reinvenção da protagonista da história.

"Suely não se desenha como a boa alma disposta a sucumbir em nome da pureza, do amor perdido ou do retorno nostálgico à ordem familiar", analisa Ismail Xavier. "Seu ciclo de vida na pequena cidade compõe o entreato, a digestão da experiência que, por fim, a libera" -sonho que a Dalva de "Um Céu de Estrelas", de Tata Amaral, não consegue efetivar "face à tragédia do último encontro com o namorado ressentido." Para o crítico, no filme de Karim a disposição da personagem "se projeta no espaço, na afirmação da viagem como promessa".

O impulso de Suely é um reflexo de sua própria personalidade. Karim Aïnouz cresceu cercado de mulheres fortes, em uma família de classe média de Fortaleza. Já perdeu a conta das cidades em que morou. Hoje está em Berlim, mas já passou por Fortaleza, Brasília, Paris, Grenoble, Nova York, Londres, São Paulo e Rio.

BERÇO A inquietação vem de berço. Seus pais se conheceram em meados dos anos 1960, quando faziam pós-graduação nos EUA. A mãe, brasileira, estudava bioquímica; o pai, argelino, engenharia hidráulica. Karim foi concebido no Colorado, mas nasceu no Ceará, em 1966. Com a separação, o pai voltou para a Argélia e pouco depois se fixou na França, onde vive desde 1976. Seu avô foi um dos fundadores da Frente de Libertação Nacional, a organização que liderou o conturbado processo de independência argelino, e seu pai, enquanto morou nos Estados Unidos, foi o representante da FLN por lá.

Os caminhos até o cinema foram construídos por essa incapacidade crônica de parar quieto e por um sentimento de não pertencer a lugar nenhum. Um dia depois de se formar em arquitetura na Universidade de Brasília (UnB), no fim dos anos 80, partiu para Nova York e começou um mestrado em artes visuais. Mas não terminou.

O desejo de ser pintor acabou nas tediosas aulas de modelo vivo e na leitura de "A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica", de Walter Benjamin. Carregado por uma amiga, matriculou-se num curso de teoria do cinema.

Quando Karim percebeu, estava totalmente envolvido na nova cena do cinema independente americano, trabalhando como assistente de casting (elenco) e de montagem em "Veneno", de Todd Haynes -vencedor do Sundance Film Festival de 1991. Depois, tornou-se assistente da produtora Christine Vauchon, que fez nove entre dez dos filmes mais representativos da época.

COSTURAS Quando voltou para o Brasil, Karim pegou o dinheiro que havia juntado, comprou uma câmera Bolex e alguns rolos de negativo e foi filmar sua avó e suas tias. O resultado é uma pequena joia chamada "Seams" (costuras), que volta e meia João Moreira Salles usa como exemplo em suas aulas de documentário.

Felipe Bragança, colaborador constante e coautor do roteiro de "O Céu de Suely", conta que algumas das ideias mais interessantes do filme surgiram durante caminhadas, observando as ruas e as pessoas.

No texto do catálogo do último Festival de Tiradentes, que prestou homenagem ao diretor, Felipe observa em Karim Aïnouz "duas coisas adoráveis em um cineasta": o espírito "obsessivo, metódico e perfeccionista" e a "energia selvagem que o faz sempre atento ao que há de novo e inesperado".

As colaborações, aliás, representam um elemento crucial na carreira do cineasta, parceiro de Marcelo Gomes, Sérgio Machado e Felipe Bragança em diferentes projetos. "Não tem mais a sensação de que tem um dinheiro ali que é meu ou seu", diz ele. "Não precisa brigar pelo dinheiro ou competir. Hoje em dia, existem muitas possibilidades de fazer um filme que permitem que a gente esteja junto, e não um contra o outro. É um sinal dos tempos."

Sérgio Machado, por exemplo, ele conheceu no set de "Abril Despedaçado", de Walter Salles. Sérgio era assistente de direção e Karim foi contratado para reescrever trechos do roteiro enquanto as filmagens já aconteciam. Mais tarde, os dois fariam em conjunto a minissérie "Alice", uma das primeiras produções brasileiras da HBO, marco de qualidade e ousadia na TV paga brasileira.

FUTURO Hoje Karim Aïnouz mora em Berlim, cidade que conheceu melhor em 2004, quando ganhou uma bolsa do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD). Podia escrever, fotografar, ler, ou não fazer nada. Karim decidiu escrever o roteiro de "O Céu de Suely" e tirar fotos -outra paixão, junto com o cinema. "A possibilidade de estar em um lugar desconhecido, em que eu não falava a língua, completamente livre, me fez me sentir com 18 anos."

Novamente em Berlim, Karim desenvolve o roteiro de seu próximo filme, "Praia do Futuro", coprodução entre Brasil e Alemanha cujo nome evoca novamente o Ceará -e que vai ser filmada meio lá, meio cá. Antes disso, desembarca no Rio para um projeto-surpresa, um filme de título ainda provisório, "O Eclipse de Violeta".

Mais uma parada antes do próximo aeroporto, da próxima viagem, da próxima cidade.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Michael Moore e um documentário sobre o coração

Por Martín Granovsky, do Portal Vermelho

Este parece ser o tema do novo documentário de Moore: o coração. Neste caso, o coração desolado pela perda daqueles Estados Unidos de Moore ainda criança. Como disse um desempregado da General Motors, “antes com um emprego na GM era possível sustentar uma família, incluindo quatro semanas de férias e uma visita a Nova York no verão, no meio”. E além disso “mamãe não precisava trabalhar”.

Há certas cenas graciosas, irônicas, grotescas e tristes, mas as melhores imagens de Capitalismo: uma história de amor são as que Michael Moore mostra, pisando a realidade. “Pisando” é literal. Em um trecho do documentário se vê ele com seu pai. Não estão em uma casa. Caminham por um descampado, os dois com seus gorros de beisebol. Michael alto e gordo. O senhor Moore, baixo e magro, com certo lamento no olhar quando observa que no descampado havia a fábrica de velas onde trabalhava. A fábrica vendia autopeças para a General Motors, coração econômico dos Estados Unidos nos anos 50 e 60.

Este parece ser o tema do novo documentário de Moore: o coração. Neste caso, o coração desolado pela perda daqueles Estados Unidos de Moore ainda criança. Como disse um desempregado da General Motors, “antes com um emprego na GM era possível sustentar uma família, incluindo quatro semanas de férias e uma visita a Nova York no verão, no meio”. E além disso “mamãe não precisava trabalhar”.

À primeira vista Capitalismo: uma história de amor parece uma crítica ao capitalismo. Errado. Aqui há zero de Marx. Não há uma interpretação da mais-valia. Nada de censurar o direito de propriedade de, por exemplo, uma grande fábrica. Antes, Moore rememora esses tempos. O seu filme tem um sabor surrealista, em variante documental.

Se há uma crítica, parece-se à de Full Monty, a história dos metalúrgicos demitidos de Sheffield, que se convertem em strippers para sobreviver. É uma crítica à perda dos velhos tempos de pleno emprego e seguridade social, épocas em que, junto aos mecânicos estadunidenses, os metalúrgicos ingleses poderiam conhecer bem um ferroviário de Tafi ou um operário de Valentin Alsina.

No caso de Moore, a história tem um acréscimo. Trata-se de uma família católica com acesso a sacerdotes que não têm problemas em dizer – e assim aparecem, filmados – que o capitalismo é o diabo. Esclarecimento: para uma parte da teologia católica o problema é a usura ou a ganância financeira e o discurso sobre o dinheiro, só o discurso, é distinto do que os cristãos calvinistas esgrimem.

Por isso, Moore chega a se perguntar em que momento da Bíblia (porque ele não sabe) Jesus Cristo teria se tornado capitalista. Um ponto interessante na visão histórica é o enfoque sobre a Segunda Guerra. É clássico dizer que a guerra ajudou aos Estados Unidos porque impulsionou a fabricação de bens, em boa parte bélicos, e acelerou a saída da Grande Depressão dos anos 30. No filme a ênfase é posta no período do pós-guerra, com a tese de Moore de que as empresas automotoras alemãs tinham colapsado por causa da guerra e as estadunidenses avançaram com vantagens sem competição externa por muitos anos.

Outro dado da crítica de Moore: no filme tanto a Alemanha como o Japão aparecem várias vezes. E, num certo momento, como modelo. São apresentados como um exemplo de países em que “os líderes conservadores, quando governam, não destroem a classe média” e onde “os trabalhadores têm voz no comportamento dos executivos da empresa”.

As preferências políticas de Moore estão mais claras. “Um dia os ricos escutaram que algo se aproximava, e pela primeira vez não era outro Martini Seco, mas o condenado norte-americano”, lê-se quando aparece Barack Obama na campanha.

E, ao mostrar esse Michigan que ama, Moore recorda quando Franklin Delano Roosevelt mandou o exército reprimir. Só que, desta vez, não aos operários que haviam tomado uma fábrica; disparou contra a polícia e os capangas que golpeavam as famílias dos operários.

O documentário não parece se alinhar com os radicais, a esquerda norte-americana, mas com os liberais, o progressismo que, com Moore, está dotado de um forte compromisso com o mundo do trabalho concreto como fonte de bem estar e de uma desigualdade razoável. Em sintonia com a opinião do nobel de economia Paul Krugman, mudar essa sociedade por uma muito mais desigual foi uma decisão política das classes dirigentes. Ronald Reagan, duas vezes presidente desde 1981, foi o grande vendedor do novo modelo.

“Reagan encabeçou a destruição industrial para obter lucros no curto prazo e para destruir sindicatos”, disse Moore. O mote dos Estados Unidos? Seguramente. O mote do documentário, sem dúvida: o nome da companhia produtora é traduzido: “o cachorro que come o cachorro”.

É um documentário contra a brutalidade impiedosa que se tornou muito visível desde o começo da década de 1980.

“Já não existe meio-termo, não entendo – disse um grandote. Aqui estão os que têm tudo e os que não têm nada”. O xerife entra numa casa depois de arrombar a porta e pegar a fechadura com uma mão. Um negro é desalojado enquanto uma senhora grita: “Agora até tapumes eles põem nas casas! Nunca se tinha visto isso!”. O carpinteiro que prega os tapumes diz que era só o seu trabalho. O desalojado explica: “Faz 41 anos que vivo nesta casa. É a casa de meus pais”.

Quem acha estranho o fato de que Moore incomoda para ser incomodado e faz jornalismo dessa situação o terão. O gordo Michael sobe num caminhão de carga e recorre ao Goldman Sachs e a AIG, as primeiras firmas quebradas em 2008 depois da bancarrota do Lehman Brothers. Com uma bolsa, pede apenas que lhe devolvam o dinheiro que lhe foi levado do Tesouro, porque ele é de todos os cidadãos.

E há grandes cenas de capitalismo explícito. “O abutre é um oportunista que chega para limpar um cadáver”, diz um abutre que se dedica a confiscar propriedades a preço vil depois da crise das hipotecas-lixo. O senhor, nada distinto do advogado da argentina Carancho, é executivo da empresa Condo Vultures. Condo é uma contração de condomínio. Vultures, traduzido, significa abutres.

“Alguém me perguntou qual era a diferença entre um abutre e eu”, diz o abutre. “Eu não vomito em cima de mim”, sorri. “Nada pessoal”, diria Don Corleone.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Ainda é preciso ler Freud?


Por Fernando Aguiar, da Revista Cult
 
Fora do círculo familiar, os 50 anos de Freud foram festejados apenas pelo pequeno grupo de psicanalistas vienenses que se reuniam em sua casa todas as quartas-feiras desde o outono de 1902. A ocasião era propícia a comemorações: não sendo mais o único analista, sua psicanálise já ultrapassara os limites de Viena – a conquista dos “arianos” de Zurique neutralizara a vil acusação de “ciência judia”. Vivia-se a fase áurea da clínica psicanalítica e, em termos de publicações de fôlego, jamais haveria para Freud ano igual ao anterior (1905). Além do livro sobre os chistes e do “Caso Dora”, houve os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, com o qual ele adicionara ao discurso do desejo (1900) o discurso da pulsão, definindo categoricamente os dois eixos centrais de sua investigação metapsicológica.

Como presente de aniversário, os alunos ofereceram-lhe um medalhão, realizado pelo escultor K. M. Schwerdtner. Sobre uma face, fora gravado o perfil de Freud, e sobre a outra, a cena de Édipo em frente à Esfinge. Em volta do desenho, um verso de Édipo Rei: “Aquele que resolveu o famoso enigma e que foi um homem de enorme poder”. Lendo a inscrição, Freud teria empalidecido: “Parecia ter visto um fantasma”, escreveu E. Jones. Depois de P. Federn admitir ser o autor da escolha da citação, Freud, agitado, contou que, quando jovem estudante de medicina na Universidade de Viena, costumava olhar os bustos dos antigos professores, imaginando que um dia poderia estar entre eles: o seu traria exatamente a mesma citação de Sófocles inscrita no medalhão com o qual acabava de ser honrado.

A posição de marginalidade e ruptura da psicanálise

Desse episódio, apenas a segunda parte do sonho diurno de Freud materializou-se: afinal, como o Édipo da mitologia, ele decifrou, no plano da cultura, o próprio enigma edipiano, adentrando os mistérios da sexualidade humana. Quanto a figurar entre pares, nem seria o caso, pois de fato jamais fora médico; foi um psicanalista e um magnífico professor. Mas, na Universidade de Viena, seu estatuto não passou de um professor extraordinarius, que, no regime acadêmico da época, designava quem se encarregava de cursos que não constavam do currículo oficial obrigatório.

Esse caráter marginal permanece também o destino da psicanálise, e mesmo seu grande trunfo ou talvez condição de sobrevivência. Na academia, em particular, a psicanálise não deve estar no centro de uma formação, mas exterior aos outros domínios. O próprio Freud assumia uma incompatibilidade com toda sorte de “existência oficial” e demandava “independência em todas as direções”. O professor francês Jean Laplanche afirma que o analista [e a psicanálise] nasce e desenvolve-se apenas na marginalidade e na ruptura, e não pode garantir-se senão preservando todo um jogo de extraterritorialidades, em todos os níveis: marginalidade do tratamento em relação às instâncias da vida cotidiana, da análise pessoal em relação aos requisitos das sociedades de analistas, do exercício da análise em relação às profissões reconhecidas (médico ou psicólogo), das instituições analíticas em relação às instituições e aos reconhecimentos oficiais etc. “Como analistas, como pesquisadores e como universitários, afirmamos (…) que a experiência analítica constitui um campo epistemológico específico e autônomo”. A contrapartida é que ela não seja propriedade privada de um indivíduo ou de uma instituição.

É que ao fim e ao cabo, como teoria do inconsciente, a psicanálise acabaria por se tornar indispensável para todas as ciências que se ocupam da gênese da civilização humana e de suas grandes instituições como a arte, a religião ou a ordem social. “Creio ter introduzido alguma coisa que ocupará constantemente os homens”, escreveu Freud a Binswanger, em 1911.

Não há qualquer anseio imperialista na pretensão freudiana. Se a disciplina por ele fundada deve interessar à psicologia, às ciências da linguagem, à filosofia, à biologia, à história da civilização, à estética, à sociologia e à pedagogia, isso não faz mais do que prolongar o movimento mesmo de seu próprio pensamento, “interessado” em todas essas disciplinas, conforme nos explica S. Mijolla-Mellor (Recherches en Psychanalise, 2004). Desse ponto de vista, antes de interessar a outros campos do saber ou da cultura, é a própria psicanálise que tem interesse nesses campos, sendo eles parte constitutiva dela própria. Quanto ao interesse das outras disciplinas pela psicanálise, é certo que tal movimento não elimina o fato da resistência – e esta diz respeito à vexação psicológica dos homens diante de seus desejos inconscientes tais como apontados pela invenção freudiana. Na fundação da Associação Psicanalítica Internacional, em 1910, Freud anunciou aos colegas: “Os indivíduos aos quais fazemos descobrir o que recalcam experimentam hostilidade a nosso respeito; não podemos esperar uma amabilidade simpática da sociedade para com aqueles que desvelam impiedosamente seus defeitos e insuficiências”. Em carta a Arthur Schnitzler, ainda escreveria que a psicanálise não é “um meio de se fazer amar”.

Devemos esperar, por isso, de tempos em tempos, vilanias tais como a infame e medíocre compilação de críticas publicada na França, em 2005, com o nome de O Livro Negro da Psicanálise, no qual Freud é tratado como falsário, trapaceiro e mentiroso (tal como faz agora, em 2010, Michel Onfray em O Crepúsculo de um Ídolo: a Fabulação Freudiana). Costuma-se aproveitar essas ocasiões para mais uma vez se falar em “crise da psicanálise”, o que Jacques Lacan (1901-1981), já em 1974, refuta com vigor, em termos definitivos: “A crise (…) não existe (…).” A psicanálise ainda não encontrou seus próprios limites. Há muito que descobrir na prática e no conhecimento. Em psicanálise não há solução imediata, mas apenas a longa e paciente busca das razões”. Além disso, há um Freud, arremata Lacan, “que ainda não compreendemos inteiramente”.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Um documentarista se dirige a cientistas


Do Caderno Ilustríssima, da Folha de São Paulo

RESUMO Neste ensaio, derivado de uma participação do documentarista João Moreira Salles em simpósio da Academia Brasileira de Ciências, discute-se a hipervalorização das artes e humanidades em detrimento das ciências "duras" e da engenharia, e as consequências do processo para o desenvolvimento tecnológico, científico e cultural do país.

JOÃO MOREIRA SALLES

Agradeço ao professor Jacob Palis, presidente da Academia Brasileira de Ciências, o convite que me fez para falar a uma plateia de colegas seus, na crença de que eu pudesse servir de porta-voz das humanidades num encontro de cientistas. Peço desculpas por desapontá-lo.
Sou ligado ao cinema documental e, mais recentemente, ao Jornalismo, atividades que, se não são propriamente artísticas, decerto existem na fronteira da criação. Jornalismo não é literatura nem documentário é cinema de ficção. Nosso capital simbólico é muito menor e nosso horizonte de possibilidades é limitado pelos constrangimentos do mundo concreto.
Não podemos voar tanto, e essa é a primeira razão pela qual, com notáveis exceções, o que produzimos é efêmero, sem grande chance de permanência. Não obstante, é fato que minhas afinidades pessoais e profissionais estão muito mais próximas de um livro ou de um filme do que de uma equação diferencial -o que não me impede de achar que há um limite para a quantidade de escritores, cineastas e bacharéis em letras que um país é capaz de sustentar.
Isso deve valer também para sociólogos, cientistas políticos e economistas, mas deixo a suspeita por conta deles. Na minha área, creio que já ultrapassamos o teto há muito tempo, e me pergunto de quem é a responsabilidade. Em 1959, o físico e escritor inglês C.P. Snow deu uma famosa palestra na Universidade de Cambridge sobre a relação entre as ciências e as humanidades. Snow observou que a vida intelectual do Ocidente havia se partido ao meio.
De um lado, o mundo dos cientistas; do outro, a comunidade dos homens de letras, representada por indivíduos comumente chamados de intelectuais, termo que, segundo Snow, fora sequestrado pelas humanidades e pelas ciências sociais. As características de cada grupo seriam bem peculiares. Enquanto artistas tenderiam ao pessimismo, cientistas seriam otimistas.
Aos artistas, interessaria refletir sobre a precariedade da condição humana e sobre o drama do indivíduo no mundo. O interesse dos cientistas, por sua vez, seria decifrar os segredos do mundo natural e, se possível, fazer as coisas funcionarem. Como frequentemente obtinham sucesso, não viam nenhum despropósito na noção de progresso.
Estava estabelecida a ruptura: de um lado, o desconforto existencial, agravado pela perspectiva da aniquilação nuclear; do outro, a penicilina, o motor a combustão e o raio-X. Na qualidade de cientista e homem de letras, Snow se movia pelos dois mundos, cumprindo um trajeto que se tornava cada vez mais penoso e solitário.
"Eu sentia que transitava entre dois grupos que já não se comunicavam", escreveu. Certa vez, um amigo seu, cidadão emérito das humanidades, foi convidado para um daqueles jantares solenes que as universidades inglesas cultivam com tanto gosto. Sentando-se a uma mesa no Trinity College -onde Newton viveu e onde descobriu as leis da mecânica clássica- e feitas as apresentações formais, o amigo se virou para a direita e tentou entabular conversa com o senhor ao lado.
Recebeu um grunhido como resposta. Sem deixar a peteca cair, virou-se para o lado oposto e repetiu a tentativa com o professor à sua esquerda. Foi acolhido com novos e eloquentes grunhidos.
Acostumado ao breviário mínimo da cortesia -segundo o qual não se ignora solenemente um vizinho de mesa-, o amigo de Snow se desconcertou, sendo então socorrido pelo decano da faculdade, que esclareceu: "Ah, aqueles são os matemáticos.
Nós nunca conversamos com eles". Snow concluiu que a falta de diálogo fazia mais do que partir o mundo em dois. A especialização criava novos subgrupos, gerando células cada vez menores que preferiam conversar apenas entre si.

SÍNTESE E ORDEM Não sei se alguém já voltou a conversar com os matemáticos. Torço para que sim, apesar das evidências em contrário. Seria um desperdício, pois a matemática, para além dos seus usos, é guiada por um componente estético, por um conceito de beleza e de elegância que a maioria das pessoas desconhece.
O que move os grandes matemáticos e os grandes artistas, desconfio, é um sentimento muito semelhante de síntese e ordem. Os dois grupos teriam muito a dizer um ao outro, mas, até onde sei, quase não se falam. (No passado, o poeta Paul Valéry deu conferências para matemáticos e o matemático Henri Poincaré falou para poetas.)
Segundo Snow, com a notável exceção da música, não há muito espaço para as artes na cultura científica: "Discos. Algumas fotografias coloridas. O ouvido, às vezes o olho. Poucos livros, quase nenhuma poesia." Talvez seja exagero, não saberia dizer. Posso falar com mais propriedade sobre a outra parcela do mundo, e concordo quando ele diz que, de maneira geral, as humanidades se atêm a um conceito estreito de cultura, que não inclui a ciência.
Os artistas e boa parte dos cientistas sociais são quase sempre cegos a uma extensa gama do conhecimento. Numa passagem famosa de sua palestra, Snow conta o seguinte: "Já me aconteceu muitas vezes de estar com pessoas que, pelos padrões da cultura tradicional, são consideradas altamente instruídas.
Essas pessoas muitas vezes têm prazer em expressar seu espanto diante da ignorância dos cientistas. De vez em quando, resolvo provocar e pergunto se alguma delas saberia dizer qual é a segunda lei da termodinâmica. A resposta é sempre fria -e sempre negativa. No entanto, essa pergunta é basicamente o equivalente científico de 'Você já leu Shakespeare?'.
Hoje, acho que se eu propusesse uma questão ainda mais simples -por exemplo: 'Defina o que você quer dizer quando fala em 'massa' ou 'aceleração'', o equivalente científico de 'Você é alfabetizado?'-, talvez apenas uma em cada dez pessoas altamente instruídas acharia que estávamos falando a mesma língua".

RESPONSABILIDADE Vivendo quase exclusivamente no hemisfério das humanidades, recebo poucas notícias do lado de lá. O que eu teria a dizer sobre ciência fica perto do zero. Por outro lado, como especialista na minha própria ignorância, posso discorrer sobre ela sem embaraços. Com as devidas ressalvas às exceções que devem existir por aí, estendo minha ignorância a todo um grupo de pessoas e me pergunto de quem seria a responsabilidade por sabermos tão pouco sobre as leis que regem o que nos cerca.
As respostas são previsíveis. Em parte, a responsabilidade é dos próprios cientistas, que não fazem questão de se comunicar com a comunidade não-científica; em parte é dos governos, que raramente têm uma política eficaz de promoção da ciência nas escolas; e em parte -e essa é a parte que mais me interessa- é nossa, das humanidades, que tomamos as ciências como um objeto estranho, alheio a tudo o que nos diz respeito. A quase totalidade dos personagens de classe média da literatura e do cinema brasileiro contemporâneos pertence ao mundo dos artistas e intelectuais.
São jornalistas, escritores (geralmente em crise e com bloqueio), professores (quase sempre de história, filosofia ou letras), antropólogos, viajantes (à deriva), cineastas, atores, gente de TV ou filósofos de botequim. Quando muito, um empresário aqui, um advogado acolá. Para encontrar um engenheiro ou médico, é preciso voltar quase a Machado de Assis. Cientistas são pouquíssimos, se bem que no momento não me lembro de nenhum. (Os filmes de Jorge Duran são uma exceção, mas ele nasceu no Chile.)
É como se, do lado de fora das disciplinas criativas, não houvesse redenção. Em "Cidade de Deus", o menino escapa do ciclo de violência quando recebe uma máquina fotográfica e vira fotógrafo. Não parece ocorrer a ninguém -nem aos personagens, nem ao público- a possibilidade de ele virar biólogo, meteorologista ou mesmo técnico em ciência.
"Cidade de Deus" é uma narrativa realista, e portanto tende a preferir o provável ao possível. Mas não é só isso. Nenhuma daquelas profissões soaria suficientemente cool ao público -seria um anticlímax. Em nome da eficácia narrativa, bem melhor ele virar artista. Eleição para a Academia Brasileira de Letras dá página de jornal.
Já no caso da Academia Brasileira de Ciências, saindo da comunidade científica, é improvável achar alguém que tenha pelo menos noção de onde ela fica, que dirá saber o nome de algum acadêmico.
Há pouco tempo, escrevi o perfil de um jovem matemático carioca, Artur Avila. Boa parte dos meus amigos -alguns deles muito bem informados- não sabia da existência do Impa [Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada], sob vários aspectos a melhor instituição de ensino superior do país (o número de artigos publicados em revistas de circulação internacional de alto padrão científico, por exemplo, põe o Impa de par em par com alguns dos grandes centros americanos de matemática, como Chicago e Princeton).

DESCOLADOS Uma das minhas obsessões é folhear a revista dominical do jornal "O Globo" . Existe ali uma seção na qual eles abordam jovens descolados na saída da praia, de cinemas, lojas e livrarias, para conferir o que andam vestindo. No pé da imagem, informa-se o nome e a profissão da pessoa.
Um número recente trazia um designer, uma produtora de moda, um estudante, uma dona de restaurante, um assistente de estilo, outra designer, uma jornalista, uma publicitária, um "dramaturg" (estava assim mesmo), uma estilista, outra estilista e alguém que exercia a misteriosa profissão de "coordenadora de estilo".
Acompanho essas páginas há um bom tempo, e estatisticamente o resultado é assombroso. Conto nos dedos o número de engenheiros, médicos ou biólogos que vi passar por ali. Eles não podem ser tão malvestidos assim. De duas, uma: ou são relativamente poucos, ou a revista prefere destacar as profissões que considera mais charmosas.
As duas alternativas são muito ruins, mas a segunda me incomoda particularmente, pois sei por experiência como é poderosa a atração exercida por algumas profissões com alto cachê simbólico.
Dou aula na PUC-Rio, no departamento de comunicação, que num passado recente oferecia apenas cursos de jornalismo e publicidade. Durante alguns anos, lecionei história do documentário para turmas de futuros jornalistas. Em 2005 foi criada a especialização em cinema -e, hoje, quase todos os meus trinta e poucos alunos são estudam cinema.

PESADELO Existem no Rio quatro universidades que oferecem cursos de cinema; no Brasil, são ao todo 28, segundo o Cadastro da Educação Superior do MEC. No ano passado, a PUC-Rio formou três físicos, dois matemáticos e 27 bacharéis em cinema.
Existem 128 cursos superiores de moda no Brasil. Em 2008, segundo o Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira], o país formou 1.114 físicos, 1.972 matemáticos e 2.066 modistas. Alimento o pesadelo de que, em alguns anos, os aviões não decolarão, mas todos nós seremos muito elegantes.
É evidente que um país pode ter documentaristas demais e físicos de menos. O Brasil já sofre uma carência de engenheiros. Segundo dados de um relatório do Iedi [Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial] entregue ao ministro da Educação, Fernando Haddad, a taxa de formação de engenheiros no Brasil é inferior à da China, da Índia e da Rússia, países emergentes com os quais competimos.
A Rússia forma 190 mil engenheiros por ano, a Índia, 220 mil e a China, 650 mil, diz o relatório. Nós formamos 47 mil. Os números da China são pouco confiáveis, mas outras comparações eliminam possíveis dúvidas. A Coreia do Sul, por exemplo, com 50 milhões de habitantes, forma 80 mil engenheiros por ano, 26% de todos os formandos.
Na China, a crer nas métricas, essa proporção chega a 40%. Em 2006, a taxa por aqui era de apenas 8%. Até o México, país com indicadores sociais semelhantes aos nossos, hoje possui 14% de seus formandos nessa área.

ESTAGNAÇÃO Companhias que integram a "Fortune 500", lista das maiores empresas do mundo, mantêm 98 centros de pesquisa e desenvolvimento na China e outros 63 na Índia. No Brasil aparentemente não é feita esta contagem; se o número existe, consegui-lo é uma proeza, o que só confirma a pouca importância atribuída ao assunto. O relatório do Iedi mostrou que os gastos totais em pesquisa e desenvolvimento como proporção do PIB estão estagnados no país. Há cinco anos não cresce o número de empresas que investem em desenvolvimento.
Em 2009, apesar da crise, a Toyota sozinha registrou mais de mil patentes. A soma de todas as patentes requeridas pelas empresas brasileiras não chegou à metade disso, segundo a Anpei [Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inovadoras]. Somos detentores de 0,3% das patentes do planeta. Em termos de inovação, ocupamos o 24º lugar entre as nações. O país prospera à força de consumo, não de investimento ou invenção.
Compramos coisas que foram pensadas lá longe, as quais serão brevemente superadas por outras coisas que também não terão sido pensadas aqui. É um processo estéril. Escritores, cineastas e editores de suplementos dominicais se espantariam em saber que, na China, a proficiência em matemática desfruta de uma forte valorização simbólica.
Na Índia, um jovem programador de software se sente no topo do mundo. Há pouco tempo, o jornalista Thomas Friedman, do "New York Times", publicou uma coluna sobre os 40 finalistas de um concurso promovido pela empresa de processadores Intel, que premia os melhores alunos de matemática e ciências do ensino médio americano.
Cada um deles solucionou um problema científico. Eis o nome dos jovens americanos premiados: Linda Zhou, Alice Wei Zhao, Lori Ying, Angela Yu-Yun Yeung, Kevin Young Xu, Sunanda Sharma, Sarine Gayaneh Shahmirian, Arjun Ranganath Puranik, Raman Venkat Nelakant -assim prossegue a lista, até terminar com Yale Wang Fan, Yuval Yaacov Calev, Levent Alpoge, John Vincenzo Capodilupo e Namrata Anand.

VALORIZAÇÃO PÍFIA Enquanto isso, como lembra o matemático César Camacho, diretor do Impa, várias universidades brasileiras têm vagas abertas para professores de matemática, não preenchidas por falta de candidatos. A valorização das ciências entre nós é pífia. Sempre me espanto com a presença cada vez maior de projetos sociais que levam dança, música, teatro e cinema a lugares onde falta quase tudo.
Nenhuma objeção, mas é o caso de perguntar por que somente a arte teria poderes civilizatórios. Ninguém pensa em levar a esses jovens um telescópio ou um laboratório de química ou biologia? Centenas de estudantes universitários gostariam de participar de iniciativas assim. Com entusiasmo -e um pró-labore-, mostrariam que a ciência também é legal e despertariam talentos. Seria bom também se o nosso sistema educacional fosse mais flexível, com cadeiras de humanidades e iniciação científica no ciclo básico de todos os cursos universitários.
É imprudente tomar uma decisão definitiva aos 18 anos de idade, mas é exatamente o que têm de fazer os alunos ao entrar na universidade -embora, como norma, eles não saibam para o que têm vocação. Uma vez escolhido o escaninho, somem as oportunidades de conhecer outras áreas e eventualmente migrar.
Se em algum momento a vocação se manifesta, em geral o aluno e sua família consideram que é tarde. Circunstâncias econômicas ou psicológicas -começar de novo exige determinação férrea- dificultam muito um ajuste de rota. (Sei bem como é, porque foi o meu caso.) É absolutamente certo que, neste momento, alguns milhares de jovens estão prestes a cometer o mesmo equívoco.
Muitos se revelarão apenas medianos ou preguiçosos, e é provável que a ciência não tenha como alcançá-los. Sem desmerecer os excelentes alunos de cinema, letras ou sociologia, é impossível negar que, para alguém sem grande talento ou dedicação, será sempre mais fácil ser medíocre num curso de humanas do que num de exatas.
Alguns desses jovens sem orientação provavelmente terão inclinação para as ciências e ainda não descobriram. É preciso criar mecanismos que os ajudem a escolher o caminho certo. Infelizmente, as artes e as humanidades, pelo menos por enquanto, não colaboram muito. Ao contrário. Nós disputamos esses jovens e, infelizmente, até aqui estamos ganhando a guerra.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

PODRES PODERES DA ELITE BRASILEIRA - MARINA SILVA TEM CARA DE FOME?

Por Jomar Ricardo da Silva - Professor da UEPB. Membro do Neab-Í (Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígena) e coordenador da Especialização em História e Cultura Afro-Brasileira.


"Há pouco, Caetano Veloso descartou do seu horizonte eleitoral o presidente Lula da Silva, justificando: “Lula é analfabeto”. Por isso, o cantor baiano aderiu à candidatura da senadora Marina da Silva, que tem diploma universitário. Agora, vem a roqueira Rita Lee dizendo que nem assim vota em Marina para presidente, “porque ela tem cara de quem está com fome”. *

Tenho sede. Mas não é sede d'agua. É sede de chama. Não chama de fogo. É chama de pessoa humana. Enquanto milhões de pessoas passam fome, a poucos lhes faltam fome de justica. Muitos não possuem educação. Eu grito no deserto pela inclusão. Almoço e não me conformo, com alguém que bate à porta, implorando de comida um prato. Se para tantos falta pão, para poucos coração e sensibilidade.

Pelo visto, é essa sensibilidade que falta, a Caetano Veloso e a Rita Lee, quando declaram suas rejeições eleitorais dirigidas a Luís Inácio Lula da Silva e a Marina Silva. Os posicionamentos explicam, em parte, a situação que nos encontramos, ao fazer conjecturas sobre a consciência dos eleitores diante dos candidatos oriundos das classes populares. Os compositores são pessoas que as estruturas sociais proveram de bens materiais e culturais qualitativa e quantitativamente acima daqueles que se encontram excluídos do mínimo para sobrevivência, e do lugar em que se distanciam dos despossuídos, tornam-se incapazes de pensar nas causas que geram tamanha desigualdade. Estão mergulhados em uma ideologia liberal, porque foram educados pela família, pela escola e pela religião (o Estado é responsável em grande parte pela difusão de representações e atitudes), e por isso, acreditam que suas aptidões de cantar numa língua estrangeira, ou citar um filósofo, ou usufruir de um padrão de vida sofisticado,  são qualidades individuais pertencentes a um grupo distinto de pessoas. Portanto, aderem a ideia de que seus capitais culturais são méritos legitimamente adquiridos, em detrimento de outros que não foram aquinhoados pela sorte, pelo destino ou por Deus.

Essa forma de pensar é constituída por uma organização social que prioriza o individualismo em sua conotação mais perversa. À medida que se possuem bens culturais restritos, ocorre uma distinção em relação aos demais e a preponderância de valores que passam a ser superiores e verdadeiros. Com isso, nas relações sociais do cotidiano percebe-se o outro, a partir de uma visão estereotipada, por exemplo: o perfil de um presidente da República seria de um candidato que fale fluente línguas estrangeiras, tenha diploma universitário, modo educados de pequeno-burguês e sem os traços fisionômicos de índio ou negro.

Todavia, os cantores, por estarem num grupo seleto de representantes de um segmento social, como diria Pierre Bourdieu, segmento dominado da classe dominante, na condição de intelectuais, promotores de visões de mundo emanadas de estratificações sociais, emergem no cenário conjuntural, entornando na lama suas marcas de bem nascidos e educados. Convenhamos, os termos chinfrins e as justificativas  preconceituosas, agridem a dignidade de qualquer ser humano e  ficam aquém das eminentes figuras da MPB. Aliás, desse modo, pode-se considerar tais musicistas pertencentes a nobre estirpe da Música Popular Brasileira? Apenas, e tão somente, se se retirar o povo, substantivo, do adjetivo popular. Pois, constata-se que ambos, além de serem provenientes de classe média, têm uma profunda ojeriza ao povo brasileiro e veem com desprezo o sofrimento dele. 

O que mais me preocupa, nessa performance midiática, é que os próceres artistas, longe de emitirem um opinião original, apenas informam a sociedade os modos de pensar da elite brasileira sobre os empobrecidos. Não que esta tenha se comportado apenas agora dessa forma, mas aponta um incômodo desse segmento com ascensão social e política de grupos marginalizados que se elevam ao cenário nacional, em função da organização de classe, trabalho e capacidade de entender a lógica de exclusão da sociedade capitalista e propor dentro dos moldes da democracia, a solução dos problemas que atingem todos indistintamente.

Antes de ser causa, essa atitude de vilipendiar os grupos marginalizados é conseqüência de um processo de fascistização que  toma paulatinamente a malha social e vai em direção a hegemonia da sociedade, que se propaga pelos meios de comunicação, são reproduzidos pelas instituições e chega as cabeças de homens e mulheres de boa consciência. Tem-se, assim, sua forma pronta e acabada nos clichês que corre de boca em boca, nas mercearias, botecos, panificadoras: “Bandido bom é bandido morto”. “O governo Lula sustenta a preguiça do povo.” Sem falar da criminalização dos Movimentos Sociais. Apenas a conscientização, através de uma educação popular, pode enfrentar esse desafio.

*Trecho do artigo "A Fome de Marina", escrito por José Ribamar Bessa Freire - professor, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ) e pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO).

quarta-feira, 9 de junho de 2010

A música e a poesia de Adeildo Vieira


Por Oziella Inocêncio, da ASCOM/UEPB

Unindo o bom ecletismo da MPB, com seus reggaes, sambas, quase-maracatus, o paraibano Adeildo Vieira coleciona admiradores. O cantor, compositor e professor da UEPB, Antonio Guedes Rangel Junior, é um deles. Nas palavras do artista, os arranjos de Vieira são de encher os ouvidos de quem gosta de música de qualidade. Outro que se curvou ao talento do gênio oriundo de Itabaiana, é o professor da UFPB, Jaldes Reis de Meneses. Para ele, Adeildo encontrou uma forma estética interessante de absorver os impasses cotidianos de um compositor popular - uma figura da alegria e da tragédia.
Apesar de sempre ter tido contato com a produção musical no seio familiar, através de seu irmão mais velho, Antônio de Pádua - que toca violão desde os oito anos – a música se inseriu em sua vida após a adolescência, de forma absolutamente espontânea. Esta necessidade súbita de lidar com a música fez com que Adeildo redirecionasse seus caminhos, posto que, quando isso aconteceu, ele cursava o segundo período de Engenharia Mecânica na UFPB. Vieira, então, passou a se interessar pela poesia e elegeu o violão como companheiro de inquietude. Diz que, desse modo, largou as Ciências Exatas para se dedicar a dúvida. E, hoje, faz dela matéria-prima.
Nesta entrevista concedida a ASCOM/UEPB, o músico revelou alguns de seus projetos futuros e discorreu acerca dos temas abordados em sua trajetória artística.


ASCOM/UEPB- Sobre o que falam suas canções? Em que se inspira para escrevê-las?

Adeildo Vieira- A existência é o elemento essencial. As emoções e o comportamento humanos dão a forma para o pensamento e para a poesia que levo pras minhas canções. Acho que quando fazemos música é porque temos algo pra dizer pra humanidade e o efetuamos através da expressão que mais nos realiza e nos dá a sensação de missão cumprida. Minhas canções são este exercício de brincar com a palavra e com os sons para dar um recado às pessoas. Isso porque o que me interessa mesmo é a música na sua concepção mais lúdica e ao mesmo tempo mais engajada.

ASCOM/UEPB- Em sua vida, o que representa a música, a criação?

Adeildo Vieira - A música que faço é o que liga a minha existência com a realidade. É uma missão que procuro cumprir com dignidade, decência e compromisso com a transformação da vida em algo melhor. A música é algo sério que infelizmente muitos confundem com o mercado e seus malefícios. A criação é a doce tarefa de caminhar para alcançar o horizonte - nós mesmos escondidos nas sombras dos ocasos e auroras. A música é o alimento da minha lira, que me fortalece e contamina aos outros com poesia. É a lança e a armadura da felicidade que acredito. Alegra, conscientiza, fortalece e enfeita a estrada dos dias.

ASCOM/UEPB- Se não fosse cantor/compositor o que gostaria de ser?

Adeildo Vieira - Não tenho a menor idéia! Talvez astronauta, talvez mecânico, ou piloto de avião, ou talvez eu vivesse desempregado sofrendo crise existencial... Sei lá, mas acho que sou um cara meio confuso. A começar pela minha formação profissional. Tenho o curso superior em Jornalismo e não nutro o menor tesão pela profissão. Costumo dizer que fiz Jornalismo por desespero vocacional. Se eu não fosse músico, com certeza eu seria louco por música. Só isso!


ASCOM/UEPB
- Qual música de sua autoria você gosta mais? Por quê?

Adeildo Vieira - Tem muitas músicas minhas que eu gosto de cantar e também ouvir. Mas tem uma muito particular, que me emociona, porque fiz pros meus três filhos, Rudá, Uaná e Cairé. Trata-se da música “Um, Dois, Três, Viva!!!”, que está no CD “Diário de Bordo” e que  tem a participação deles na gravação. Isso ficou marcado para o resto da minha vida e, por envolver os meus amados filhos, me emociona muito. É a minha “Hey Jude”. Aliás, recomendo que ouçam. Gosto tanto da música como da letra, pois é a minha verdade na minha relação com meus garotos.

ASCOM/UEPB- Quais seus cantores/compositores prediletos?

Adeildo Vieira - Muitos. Por isso minha obra é tão eclética. Chico Buarque, Paulo Ró, Elis Regina, Gláucia Lima, Beatles, Paul Simon, Jackson do Pandeiro, Sivuca, Milton Dornellas, Biliu de Campina, Chico Cesar, Gilberto Gil, Zabé da Loca, Caetano Veloso, Escurinho, João Bosco, Pedro Osmar, Dona Ivone Lara, Penha Cirandeira, Hermeto Pascoal, Mercedes Sosa, música africana e suas dezenas de compositores e cantores... É por isso que a música tem tudo pra fazer a gente feliz, porque existem sons maravilhosos de toda forma pra nosso deleite. Claro que não falei nem um décimo de minhas preferências. Há muito com o que se deleitar.

ASCOM/UEPB- Quantos CD's gravados em sua trajetória?

Adeildo Vieira
- Lancei, no ano 2000, o meu primeiro CD, intitulado “Diário de Bordo”, com recursos da então Lei Viva Cultura, da Prefeitura Municipal de João Pessoa. Depois veio, em 2008, o DVD “Chega Junto”, com produção independente e o apoio da TV Cidade João Pessoa. Finalmente lancei, em novembro passado, meu segundo CD, com recursos do FIC - Fundo de Cultura Augusto dos Anjos do Governo do Estado da Paraíba - chamado “Há Braços”, para o qual estou trabalhando na divulgação.

ASCOM/UEPB- Poderia discorrer um pouco mais acerca desta última produção?
Adeildo Vieira - “Há Braços” tem 14 faixas e está sendo vendido na rede de lojas Furtacor, em dois shoppings em João Pessoa (Shopping Sul e Shopping Tambiá). Já fiz um pré-lançamento dele no ano passado, mas estou devendo ao público, e a mim mesmo, um lançamento decente, onde possa tocar todas as músicas do CD, através de um show vibrante e bem produzido. Este espetáculo está agendado para o dia 26 de agosto próximo, no Teatro Paulo Pontes, em João Pessoa. Porém, aqueles que desejarem acessar as músicas dos meus CDs poderão visitar o site www.adeildovieira.com.br. Lá é possível baixar todas as músicas gratuitamente. Acho isso muito legal!

ASCOM/UEPB - Para além da música, quais atividades desempenha atualmente?

Adeildo Vieira - Trabalho na ilha de edição do DECOMTUR, na UFPB, onde sou editor de imagens, com muita honra. Terminei o curso de Jornalismo, mas prefiro mesmo exercer as minhas inquietudes musicais na busca da profissionalização. Do Jornalismo restou apenas a minha capacidade de entender a relação da vida com a imprensa. Isso já me basta para alimentar ainda mais minhas inquietudes. No mais, sou um defensor intransigente da cena cultural da nossa Paraíba e faço disso o meu ofício.

terça-feira, 8 de junho de 2010

O nirvana de LACHAPELLE

Por Iara Crepaldi, da Revista Serafina

Após romper com a fotografia comercial e se isolar da fama no Havaí, o fotógrafo mais pop dos anos 1990 saiu da ilha para falar e mostrar as imagens –inéditas no Brasil– de sua nova fase

David LaChapelle é o fotógrafo de celebridades mais célebre do mundo. Nos últimos 25 anos, suas imagens extravagantes e de cores saturadas estamparam capas de revistas, campanhas publicitárias milionárias e clipes de música pop premiados. De tal forma que, hoje, cobiçadas por galeristas de olho nos colecionadores que podem pagar US$ 30 mil por uma obra, suas fotos são familiares para qualquer um que leu revistas, assistiu à TV, comprou CDs ou foi ao cinema nos anos 1990.

As mais recentes manifestações de reconhecimento de seu trabalho foram o prolongamento da exposição, "The Rape of Africa", na galeria Robilant + Voena, em Londres, por um mês (até 23 de junho) em razão do interesse do público e da imprensa –sem precedentes na casa; e ainda a bilheteria recorde de sua mostra na Monnaie de Paris, em 2009. Claro, LaChapelle também recebe muitas críticas negativas. A principal delas é que seu trabalho não é arte.

"Eu não vejo nenhuma diferença entre ser fotógrafo e artista. Os críticos não gostam quando alguém usa imagens pop para falar sobre algo profundo. Eu quero fazer algo que as pessoas entendam, não quero ser conceitualmente obscuro, como muita coisa é na arte contemporânea", falou à Serafina, por telefone, de Londres, na semana de abertura de sua exposição, no final de abril.

LaChapelle sempre quis ser artista. Mudou-se de Connecticut (EUA) para Nova York com essa intenção aos 18 anos, em 1981. A carreira na fotografia começou de forma circunstancial. Pupilo de Andy Warhol (1928-1987), LaChapelle viu o artista pela primeira vez na lendária boate Studio 54, aos 14 anos, numa festa da banda norte-americana Village People. Como não conseguia viver de sua arte quando chegou à cidade, foi procurar Warhol para mostrar as fotos que produzia quando estudava na Escola de Artes da Carolina do Norte. Warhol o convidou para ser fotógrafo de sua revista, "Interview" –para LaChapelle, "suas páginas eram paredes de galerias".

A vida em Nova York com Warhol e na cena do Studio 54 era uma montanha-russa de sexo, drogas e rock’n’roll. No começo, ele fotografava somente em preto e branco, imagens escuras e densas. Muito depois de ter mudado para cor, entendeu o porquê do período sombrio e explicou que tinha uma atitude muito séria, circunspecta, diante de tudo na época, por achar que iria morrer como seu primeiro namorado, HIV positivo –LaChapelle não é portador do vírus.

Com a cor, começou a criar imagens icônicas, que registravam o mundo sem reproduzir o que é visível e retratavam as obsessões da cultura ocidental –glamour, cirurgia plástica, fama, riqueza, sexo, religião. "Eu buscava alguma forma de escapismo para o peso de tudo o que havia vivido", explica.

Em pouco tempo, um dos primeiros fotógrafos a manipular suas imagens digitalmente para criar cenas surreais e barrocas, LaChapelle havia conseguido fotografar uma série de personagens do showbiz –de Madonna, Uma Thurman e Elton John a Drew Barrymore, Naomi Campbell e Gisele Bündchen– em situações extremamente imaginativas e, frequentemente, com forte conotação sexual.

A VIRADA

Histórias de suas festas, do trabalho como garoto de programa para pagar as contas no começo da carreira e de suas passagens em clínicas psiquiátricas (ele sofre de transtorno bipolar), ajudaram a forjar o mito. Workaholic, durante duas décadas trabalhou meses seguidos sem tirar folgas, até perceber que a fotografia comercial já não era o que queria e que aquele estilo de vida o desequilibrava. "Eu senti que já havia dito tudo através do meu trabalho, e não aguentava mais aquele ritmo. Precisava levar uma vida saudável, fazer exercícios", afirma.

Então, em 2006, no topo da indústria, LaChapelle virou o jogo e rompeu com a mídia publicitária e editorial. Comprou a área de uma antiga colônia de nudismo, de 80 mil m2, em Maui, no Havaí, e a transformou em uma fazenda orgânica, para viver de modo saudável e fotografar cenas que comunicassem seus ideais.

Ele conta que, após a ruptura, ficou meses sem atender a telefonemas de revistas. Em algumas entrevistas, chegou a se referir a Hollywood como um "mundo de merda".

Mas, aos poucos, LaChapelle se reconcilia com o circo da fama. Voltou à cena para expor, segundo ele, o que está no centro do seu coração em galerias e museus.

A seguir, o fotógrafo norte-americano fala sobre a nova vida. "Para mim, viver e fotografar são uma coisa só."

(A assessora da galeria em Londres coloca LaChapelle na linha e ele começa a falar em português.)

Tudo bem Vitamina de abacate (risos). Essas são as únicas coisas que sei falar em português. Aprendi quando estive no Brasil. Não sabia que o abacate poderia ser doce, amei. Na minha fazenda, tem muitos abacateiros, e adoçamos a vitamina com o mel das abelhas de lá. Já temos tantas espécies de abacate que, em alguns anos, vamos ter a fruta o ano inteiro (risos).

Como foi sua viagem ao Brasil?
Os brasileiros são incríveis, gentis, pacíficos. Passei meu Ano Novo favorito no Brasil em 1992. Fui fotografar a noite em Ipanema. Todos os grupos religiosos vestidos de branco, as pessoas cantando para Iemanjá e mandando oferendas ao mar. A festa na favela me assustou um pouco. Mas foi a noite mais mágica da minha vida.

E o que você tem feito no Havaí?
Eu continuo fotografando na floresta, isolado, conectado pela internet. Eu recebo artistas famosos ou pouco privilegiados de vários países para trabalhar na fazenda, aprender sobre sustentabilidade e se inspirar. Todo mundo ajuda a cuidar da natureza, dos bichos, da cozinha, e tem de deixar dois livros na biblioteca antes de partir. Lady Gaga esteve lá no verão passado e cozinhou massa no meu aniversário. É uma troca de ideias, eles me interessam, quero saber o que fazem, leem, escutam, fotografam.

Qual foi o primeiro trabalho que fez depois de se mudar para a ilha?
Fui para Los Angeles criar a série "Deluge", que é uma releitura do dilúvio de Michelangelo na Capela Sistina e em museus cheios de água, uma tragédia que destrói a arte, a Igreja. Uma reflexão sobre excesso, dinheiro, consumo, fanatismo. Mas já fiz muita coisa lá. No começo, pensei que nunca mais iria trabalhar para revistas e campanhas. Mas, vez ou outra, farei algo que me interesse, mas apenas do meu jeito. Fotografei Lady Gaga para a capa da "Rolling Stone" americana no ano passado.

Você ainda usa celebridades como modelos e cenários produzidos em suas novas imagens. O que as difere das fotos comercias?
Eu amadureci trabalhando para revistas e campanhas de publicidade, aprendi a me comunicar. Eu continuo amando moda, glamour e beleza, mas, agora, comunico ideias para tocar as pessoas. Eu quero que elas saiam diferentes da galeria. Estou tentando expressar a ideia de iluminação pela natureza, a ideia do paraíso perdido, mas mantendo as coisas que amo nessas imagens.

Como foi fotografar Michael Jackson?
Eu nunca o fotografei.

Então as imagens com ele são montagens?
Sempre quis fotografá-lo, mas nunca deu certo. Eu usei um sósia e manipulei a imagem para criar o rosto que o Michael tinha nos anos 1990. O que fiz é uma foto, não um retrato. Mas não há dúvida de que é Michael Jackson, uma pessoa que viveu extremos, foi amada e odiada pela sociedade, como um personagem bíblico.


Suas fotos recentes interpretam temas mitológicos e religiosos. Você tem alguma crença?
Eu acredito na possibilidade de milagres. Tenho muita fé, sei que há algo além desta vida.

Alteraria algo em sua própria realidade, como faz com suas fotos?
Não mudaria o que já foi, mas o que é. Estou constantemente tentando melhorar. Ainda tenho muita dificuldade de lidar com a raiva, digo coisas desagradáveis, fico com remorso, peço desculpas. Mas está acontecendo menos. Controlo as oscilações de humor com dieta, exercícios e remédios. Estou saudável, tenho energia, não vivo mais aquela insanidade, como se o mundo fosse acabar se não cumprisse um prazo.