Inquieto- Sentimento de inadequação é flagrante na vida e na obra do artista
Por Alex Calheiros
Pier Paolo Pasolini, intelectual italiano morto no dia 2 de novembro de 1975, supostamente assassinado por um jovem da periferia romana que poderia muito bem ser um de seus personagens, é mais conhecido entre nós por sua atividade cinematográfica, por vezes por sua obra literária e, mais raramente, por suas ideias. Autor de filmes e romances ainda hoje muito lidos, sua obra, desde sempre múltipla, perpassa o cinema e a teoria do cinema, a literatura e a crítica literária, a poesia, o teatro e a ensaística, alcançando a crítica moral e política.
As atividades de Pasolini, no entanto, vão muito além do âmbito propriamente artístico, como facilmente poderíamos supor, porque ele foi talvez um dos intelectuais mais lúcidos e críticos de nosso tempo. Pasolini foi, acima de tudo, um homem inquieto e incômodo, podendo certamente ser alinhado àqueles que fizeram da crítica radical da cultura, para além dos meios expressivos de que se utilizaram, ponto de partida e ponto de chegada de um projeto intelectual em sentido pleno.
No dia de seu enterro, o escritor Alberto Moravia, diante de amigos e fãs comovidos e chocados pela brutalidade, mas também pela covardia de seu assassinato, disse enfaticamente que naquele dia haviam matado um poeta. Mas poetas, como todos sabem, nascem poucos, no máximo um ou dois durante todo um século, continuou. Diríamos mais; diríamos que um grande intelectual foi morto naquele dia. Intelectual inquieto e incômodo. Mas a inquietação, marca inconfundível de sua vida pública e privada, nunca foi movida por problemas abstratos, tampouco se colocava publicamente por mero narcisismo, transformando sua vida em um espetáculo. Foi, desde sempre, pela realidade, ou melhor, pelo sentimento de inadequação que a realidade lhe impunha.
Pasolini, como ninguém, transformou sua inadequação em argumento contra o fascismo que domina nossa cultura. Movido pelo que chamou de uma paixão desmesurada pela realidade, transformou-se, não por ingênua indignação, mas pelo mais forte sentimento patriótico e humano, num crítico mordaz da cultura italiana que, segundo ele, estava passando por um verdadeiro processo de decadência, uma trágica mutação.
Culpa a ser expiada
Mas é importante notar que o processo de decadência intuído e apregoado por Pasolini não era apenas uma suspeita, já estava plenamente instalado, não somente na cultura italiana, exemplo talvez mais próximo e mais esdrúxulo, mas em toda a cultura ocidental. Pasolini dizia que a vulgaridade da liberdade que nunca fora conquistada, mas concedida pela classe dominante, era o motivo pelo qual, tal como numa tragédia grega, carregávamos uma culpa que deveria ser de todo modo expiada. A decadência que Pasolini viu em nossa cultura era tão radical e violenta – mais radical e violenta que aquela, por exemplo, efetuada pelo fascismo e pelo nazismo –, que ele acreditava talvez já ser muito tarde para que algo ainda pudesse ser feito, para que pudéssemos ansiar por algum tipo de salvação. A decadência de nosso tempo é mais absoluta, diria Pasolini, porque ela não é mais imposta, mas alegremente aceita por cada um de nós.
O esquema pelo qual Pasolini explica a realidade é claramente teológico. Os homens, iludidos por aquele que se põe no lugar de Deus, o dinheiro, vivem e não percebem, como que encantados, aquele que se apossou não somente de seus corpos, mas também de suas almas. Pasolini agitava-se, ainda que no deserto, contra a nova idolatria que se instaurava. Coragem era a virtude desse italiano que, por amar o seu tempo, tornou-se justamente inimigo dele e, como um mártir, foi morto por tudo aquilo que disse e que ainda poderia dizer. A linguagem tornou-se então a mais importante questão de sua trajetória. A impossibilidade de se comunicar com seu tempo, apesar de toda sua lucidez, fez com que ele encontrasse outra forma de estabelecer relação com o mundo. Pasolini mergulhou então numa dimensão mítica, religiosa, sacra, para poder escapar desse monstro que tudo quer possuir. A paixão desmesurada pela realidade foi sua religião. “Tudo é sagrado, tudo é sagrado, tudo é sagrado e a natureza não é natural.”
Assim, já de início, ouvimos na voz do Centauro, no filme Medeia, o problema que de algum modo Pasolini desenvolveria em toda a sua obra, especialmente aquela da maturidade: a época trágica em que vivemos. Medeia, assim como Salò, pontos altos de sua obra, foram pessimamente recebidos na época de sua exibição. A crítica mais engajada disse do primeiro que era arcaísta, evasivo e espetacular; do segundo, como se pode imaginar, disse ser perverso. Mas, para além do fato de Pasolini ter sido sempre mal compreendido, a crítica naquele momento não levou em conta o que ele sempre deixou muito claro e que explicita justamente a lucidez de seu projeto, contra toda evasão e contra toda perversão. Tanto a Grécia quanto a República de Salò, lugares nos quais o autor ambienta seus filmes, não servem à história por um desejo de evasão do tempo presente, como quis a crítica, mas apresentam uma tentativa de representação das questões mais candentes de seu tempo. Representar o tempo para melhor apresentá-lo. Num, o conflito entre dois modelos culturais, um burguês e racional, encarnado por Jasão, e outro antiburguês e irracional, encarnado por Medeia. Noutro, a radicalização desse processo em que não há mais oposições, ao representar um mundo no qual as forças, inclusive toda forma de resistência, já foram subjugadas.
Descrença na razão, na gramática e na história
São essas as premissas da explicação que Pasolini dá ao momento presente italiano. Num e noutro ficou pra trás o que restava ainda de uma vida sadia, e assistimos ao prelúdio da tragédia que se tornou a vida. O itinerário de Pasolini, desde sua obra poética em dialeto friulano, é um itinerário de descrença na razão, na gramática e na história, apostando no irracional, pré-gramatical e pré-histórico. É um adensamento da crítica à cultura ocidental, apresentando um contínuo afastamento da linguagem e uma gradativa aproximação da sacralidade da comunicação arcaica. Curioso, por causa de sua origem literária, o cinema de Pasolini é absolutamente antiliteral, não verbal, notadamente em Medeia, uma das mais belas vozes dos anos 1950, quase muda, de uma mudez em tudo eloquente. Em Salò, mais radical, toda linguagem é normativa, serve apenas para antecipar aquilo a que os prisioneiros devem se submeter.
Sabemos que Pasolini se encantou pelo cinema justamente por seu caráter pré-gramatical, por sua capacidade de produzir uma comunicação primitiva, violenta, bárbara. As formulações mais consistentes de Pasolini acerca do específico cinematográfico encontram-se num livro de ensaios teóricos, Empirismo Herético. Escrito na mesma época em que Christian Metz iniciava suas pesquisas teóricas em semiologia do cinema, dizendo que o cinema seria uma linguagem sem língua, Pasolini irá mais adiante, postulando (e provocando um debate acirrado) que a língua do cinema, ou seja, o código utilizado pelo cinema para comunicar-se, era a própria realidade. A proposta de Pasolini era, portanto, uma radicalização da utopia neorrealista de narração da realidade por um processo basicamente privado de mediação. No cinema, para dizer de uma vez, o espectador decodifica as imagens fílmicas com os mesmos parâmetros com os quais decodifica a realidade.
Barbarizar é pensar contra a racionalidade burguesa
Pasolini, em sua obra e em sua vida, é marcado por esse desejo primitivo, alucinado, violento e pragmático pela realidade. E é nesse amor tornado encontro com a realidade que ele descobre a alienação do mundo. A realidade, ao contrário do que prega nossa cultura racional, é sacra, misteriosa e ambígua; de modo algum é natural. A alienação começa justamente quando se começa a ver a realidade como algo natural. O cinema, de certo modo, se desapega da tentativa de mediar abstratamente a realidade, reintroduz o homem numa dimensão sacra, misteriosa e bárbara do mundo. Assim, para falar brevemente, Pasolini não é um decadente. O barbarismo pasoliniano é uma atitude genuinamente filosófica. Barbarizar é pensar contra a racionalidade da sociedade burguesa. O cinema é uma arma não em favor da cultura, mas contra ela.
Pode soar estranha aos nossos ouvidos a conclusão tirada por esse grande intelectual: temos pouco a fazer, a não ser nos revoltar, e isso é tudo. É isso que intuímos, afinal, quando acompanhamos o desespero de Medeia, que se mata e mata os próprios filhos por sentir na pele sua incompatibilidade com o mundo estabelecido; ou ainda quando vemos o soldadinho fascista de Salò, que, ao tentar resistir, amando justamente uma vítima como ele, uma garota negra, é surpreendido pelos superiores e levanta o braço esquerdo, mesmo sabendo que vai morrer.
Mas isso nós apenas podemos compreender se antes entendermos que, distante do projeto revolucionário daquele que foi o “pai” ou humilde irmão da Itália (como diz no poema Cinzas de Gramsci), restou-lhe somente a revolta, como um herói trágico justamente, que mesmo sabendo o destino reservado, demonstra sua altivez na luta contra o que lhe é imposto. Por isso, mesmo descrente da adesão que poderiam surtir suas palavras, não deixava de gritar em praça pública.
Esse Cristo danado, herético e banido, quase religioso em sua irracionalidade, teria mesmo de morrer. A vida e a morte de Pasolini foram insistentemente marcadas pelo compromisso incondicional com uma verdade que ninguém queria escutar. O compromisso de Pasolini, mortas por sufocamento as esperanças revolucionárias, passou a ser esse amor sem crenças, desesperado e trágico, pela realidade.
O tempo de Brecht e Rossellini, quando ainda era possível aprender e ensinar, acabou, dizia o Corvo em Gaviões e Passarinhos, mas de algum modo Pasolini cumpriu seu papel, porque seu desespero, profético em seu tempo, encontra hoje na sociedade de consumo a mais justa adequação. Ou não é verdade que nossas vidas estão completamente subjugadas pelo mais poderoso dos poderes e seus ritos de morte? Ou não é verdade que nossa vida não é mais vida? Hoje, por isso mesmo, mais do que nunca, talvez seja o momento de voltar ao seu pensamento, não por mera erudição, atitude que certamente pareceria detestável aos olhos do “poeta das cinzas” (já que se trataria de uma atitude tipicamente burguesa; filisteia, para falar com sotaque nietzschiano), mas para pelo menos compreender, quiçá melhor, o mal que nos aflige.
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