sábado, 7 de agosto de 2010

Frida Khalo - Sangue e Cores Vivas

Por Gisele Kato, da Revista Bravo

Dois fortes episódios marcam a vida - e a obra - da pintora mexicana Frida Kahlo (1907-1954). O primeiro ocorreu no dia 17 de setembro de 1925. Foi nessa data que ela, então com 18 anos, subiu em um ônibus com o namorado na época, Alejandro Gómez Arias, e sofreu um terrível acidente. Um bonde em alta velocidade chocou-se contra o ônibus. A jovem teve a coluna fraturada em três partes na região lombar, o colo do fêmur rompido, a perna direita quebrada em onze lugares, o pé direito esmagado, o ombro esquerdo deslocado. Um dos corrimões do ônibus atravessou seu ventre e saiu por sua vagina (mais tarde, ela brincaria que foi assim que perdeu a virgindade). Quando os enfermeiros chegaram para atendê-la, encontraram-na coberta de sangue e tinta dourada, vinda de uma embalagem de pó de ouro que era carregada por um dos passageiros. O segundo acontecimento deu-se quatro anos mais tarde, em agosto de 1929 - seu casamento com o também pintor Diego Rivera (1886-1957). Diego, já famosíssimo, era alto, gordo, exagerado em todos os sentidos. Um médico certa vez atribui-lhe um diagnóstico dos mais convenientes: a fidelidade não lhe era compatível. Pois ele tratou de viver segundo esse princípio para o resto da vida. Frida Kahlo, a artista, nasceu desses dois momentos. O próprio fato de pintar foi consequência direta do acidente: a mãe de Frida, Matilde, mandou instalar uma espécie de dossel em cima da cama da filha convalescente, com um espelho para que ela pudesse se ver e se fazer de modelo. Já a união com Diego proporcionou-lhe uma rotina cheia de altos e baixos, o que foi, em certo sentido, a matéria-prima de boa parte de sua produção.

Dois lançamentos editoriais trazem, neste mês, novas luzes sobre a obra da pintora. Um deles é Diego e Frida, biografia do casal escrita pelo autor francês Jean-Marie Gustave Le-Clézio, prêmio Nobel de Literatura em 2008. O outro, Frida Kahlo, Suas Fotos, reúne cerca de 400 imagens inéditas do acervo pessoal da artista. Trata-se de fotografias que até 2004, por determinação do próprio Diego, permaneciam trancadas em um dos banheiros da Casa Azul, na Cidade do México, onde o casal morou e hoje funciona o Museu Frida Kahlo. O livro de Le-Clézio retrata de maneira vibrante o tumultuado cotidiano do casal, e a influência que Diego teve em várias das obras de sua mulher. Por exemplo: foi por conta de uma traição - o muralista mexicano teve um caso com uma irmã da pintora, Cristina - que Frida elaborou um de seus quadros mais famosos, As Duas Fridas. Nele, sentada em um banco, a artista mostra-se com seu duplo. A imagem da esquerda usa um vestido branco e traz o coração aberto, sangrando. Está de mãos dadas com a da direita que, vestida com o traje típico do México, revela-se mais forte e corajosa, e segura um medalhão com a foto do casal. Já a compilação de fotos oferece cenas típicas de álbum de família, algumas com intervenções feitas por Frida, como marcas de batom e recortes. É mais uma prova do jeito passional com que a pintora lidava com os fatos do dia-a-dia. Biografia e fotos, assim juntos, reforçam a maneira intensa com que sua vida e sua obra se entrelaçam. Como ela mesma dizia, no que acabou virando uma de suas frases mais famosas: "Pinto a mim mesma porque sou sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor".

Matilde, mãe de Frida, definiu a união da filha com Diego Rivera como o "casamento do elefante com a pomba". O relacionamento entre os dois artistas também pode ser visto como a junção de dois lados, um mais expansivo e outro mais intimista, de uma profunda mudança pela qual passava o México no início do século 20. A capital do país, a Cidade do México, cenário por excelência do casal, não era nem de longe a megalópole de hoje, mas uma cidade de grande efervescência cultural, na qual se encontravam estudantes, políticos, artistas, aventureiros, todos em busca do que seria o espírito da modernidade. Não é exagero afirmar que Diego e Frida estavam no centro dessa ebulição. Na época, porém, só um deles brilhava de fato como artista: Diego Rivera. Frida ficava à sua sombra. Era mais a senhora Rivera mesmo. De certa forma, ela até gostava desse papel meio secundário: o casamento, para Frida, foi a libertação de pais que a tratavam como uma inválida e o vislumbre de uma vida de aventuras ao lado de uma das maiores personalidades do momento. Isso fica bem claro na tela Frida e Diego Rivera, de 1931, em que a pintora registrou sua união. Na obra, Frida aparece delicada com seu vestido verde enquanto Diego, em escala maior, impõe-se na composição com seu terno escuro. Um detalhe não pode passar despercebido: ela segura uma das mãos do marido. Na outra, ele carrega a paleta de tintas e os pincéis. Naquele tempo, é dele o lugar de pintor profissional na família.

À jovem 21 anos mais nova, cabia cuidar das roupas e das refeições da casa. Fora isso, Frida enfeitava-se para Diego. Vestia só trajes típicos indígenas, coloridos e chamativos, um pouco porque ele gostava e outro tanto porque os dois acreditavam que a força do México concentrava-se no passado de seus povos. Ela também se cobria de joias tal qual uma deusa asteca. O excesso de pulseiras e colares ajudava a esconder o corpo torturado, a perna direita deformada por causa de uma poliomielite pega aos 6 anos de idade, o pé direito quebrado no acidente aos 18, e os oito coletes ortopédicos que passou a usar desde o cruel episódio. Há quem diga que em vida Frida chamou mais atenção por causa de sua moda peculiar do que por sua arte. É bem provável que isso tenha acontecido de verdade. A revista Vogue francesa rendeu-se a seus anéis e estampou em 1938 uma capa com uma das mãos da mexicana carregada de joias. Em uma edição da americana The New Yorker do mesmo ano, Frida também foi descrita como uma figura curiosa pelas roupas nada convencionais. À certa altura, o texto contava que, quando a dupla morou nos Estados Unidos, ela chegou a ser confundida com uma cigana dessas que lê o futuro nas mãos das pessoas no metrô de Nova York.


Viva la Vida

Cinquenta e seis anos depois de sua morte, Frida transcende sua dor e sua excentricidade. Suas pequenas pinturas (em tamanho: em média 40 x 40 cm, e em quantidade: não passam de 200), tão densas, tristes e difíceis de serem comercializadas no passado - a única grande venda que ela fez na vida foram quatro telas para o ator americano Edward G. Robinson, em 1938 - hoje têm destaque em acervos importantes como o do Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA, e batem recordes em leilões internacionais. Em 2006, a obra Raízes, de 1943, foi arrematada na Sotheby's de Nova York por 5,6 milhões de dólares, não só o valor mais alto pago por um trabalho da artista como o mais alto já atribuído à produção latino-americana. Telas de Frida Kahlo estampam cartões postais, camisetas, pôsteres e broches ao redor do mundo. Em 1997, o estilista francês Jean Paul Gaultier desenhou toda a sua coleção de verão inspirada no legado da mexicana. Em 2001, os Estados Unidos lançaram um selo de 34 cents com um autorretrato seu, marcando a primeira vez que uma personalidade latina recebia tal homenagem. Até Hollywood já se rendeu à biografia agridoce da pintora e em 2002 engrossou as sobrancelhas e o buço da atriz Salma Hayek para o desejado papel de protagonista. Em 2008, a banda inglesa Coldplay apresentou o disco Viva la Vida, título tirado de um quadro de Frida.

A arte, para Frida, viraria logo um artifício de sobrevivência. E um jeito para ela desabafar. De certa forma, sua vida toda está contada em suas telas. O que a Água me Deu, de 1938, é um bom exemplo disso. A obra oferece a perspectiva de Frida deitada em uma banheira e seus pés (o direito com a cicatriz deixada pelo acidente) emergem da água. Boiando também na água figuram elementos-chave para o acesso aos mais íntimos pensamentos da artista naquele momento. Aparecem o vestido típico mexicano, o Empire State Building sob chamas (a experiência nos Estados Unidos agradou muito a Diego mas não a Frida), seus pais escondidos sob plantas tropicais. No centro do quadro, vê-se a própria artista. Estrangulada. A composição é tida como uma das mais surrealistas de seu legado e, de fato, logo depois de terminá-la, a pintora foi convidada pelo escritor francês André Breton (1896-1966) para integrar o movimento surrealista. Frida chegou a viajar para Paris em 1939, mas nunca aceitou aliar-se à vanguarda que defendia a expressão do inconsciente: "Jamais pintei meus sonhos. Pinto a minha realidade."

É por essa biografia ao mesmo tempo pesada e sedutora que Frida foi ganhando importância na história da arte. O muralista Diego Rivera, consagrado desde sempre, conhecido de Pablo Picasso (1881-1973) e Amedeo Modigliani (1884-1920), por sua vez, não cresceu depois de sua morte. Ele está, claro, nos acervos dos grandes museus do mundo e tem o nome assegurado como protagonista do muralismo mexicano. "Rivera tinha uma importância política, mas vistos hoje, acho que muitos de seus murais não são tão arrebatadores assim. Já a pintura de Frida é absolutamente única", diz a crítica de arte e curadora Maria Alice Milliet. Por causa das diferenças artísticas entre os dois, o crítico Tadeu Chiarelli não se sente confortável em estabelecer qualquer tipo de comparação entre eles: "Se a obra de Rivera está conectada com o lado da arte engajada politicamente, transformando-o num dos principais ícones dessa corrente, a de Frida vincula-se aos artistas que desenvolveram verdadeiras mitologias individuais". Sua história pessoal é tão forte que há até quem a veja como uma pintora menor do que suas vivências. O crítico de arte Rodrigo Naves compartilha dessa opinião: "Como pintura em si, acho mediana. Acho a particularidade, o fato de ela ser mulher e de exteriorizar sua fragilidade corporal, interessante. Mas não passa muito disso."

Opiniões assim controversas, no entanto, só colaboram para aumentar o mito Frida Kahlo. Mergulhar em sua obra significa experimentar o privilégio de acompanhar alguém que amadureceu praticamente diante do público, com cada passo desse processo documentado em uma pintura. Em alguma medida, todo mundo acaba se identificando em determinado momento com a artista. E isso hoje, na arte, tem muito valor. Porque se os criadores não se contentam mais com uma postura puramente contemplativa por parte do observador, e buscam sempre a tão falada interação com os espectadores, Frida Kahlo, no início do século passado, e de um jeito só dela, já havia conseguido isso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário