quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O teatro crítico de Brecht, Beckett e Bene


 Riqueza Metafórica - Um dos objetos do estudo, obra de Beckett é considerada expoente do Teatro do Absurdo


Por Flora Sussekind, do Caderno Ilustríssima, da Folha de São Paulo

Estudos de Gilles Deleuze e José Antonio Pasta sobre Beckett, Carmelo Bene e Brecht ressaltam diferentes respostas aos dilemas da representação teatral no séc. 20: a "arte do apagamento" de Bene, o esforço brechtiano de "destruir e arruinar" o teatro e os esgotamentos que fundam espaço e figura humana em Beckett.
A publicação dos ensaios de Gilles Deleuze sobre o italiano Carmelo Bene e o irlandês Samuel Beckett, e a reedição de "Trabalho de Brecht", dissertação de mestrado apresentada em 1982 por José Antônio Pasta, permitem a observação do contraste entre projetos estético-dramatúrgicos cuja emergência se acha ligada, porém, a mal-estar evidente com relação às noções de teatralidade, aos dispositivos cênicos e modos de recepção que dominaram o teatro do século 20.
Desconforto a que os três dramaturgos-encenadores parecem responder com um enlace complexificador entre prática dramatúrgica, intensificação da consciência crítica da cena e da exposição de sua "orquestração", interferências autodemonstrativas que norteariam algumas das experiências mais transformadoras no âmbito da criação e do pensamento teatral contemporâneo.
Partindo desse mal-estar (diverso, mas em comum), chamo a atenção para "Proposições Para o Teatro", uma das muitas "deshamletizações" operadas por Bene, na qual começa implicando com o figurino tradicional do personagem: "Se querem vesti-lo de negro, eu até concordo, mas com a condição de considerarem essa cor necessidade imposta pelo rigor, e não luto pelo pai". Um não-Hamlet, então, talvez de "black tie", repetindo, "para lambuzar o cérebro do público", a chave interpretativa usual da peça e perguntando se seria -"sim ou não"- homem de ação. Não bélica, jurídica, erótica, mas de "ação pura", do "drama autêntico" de se apresentar num teatro que evidentemente não era talhado para ele. Dúvida que expõe duas marcas registradas de Bene: o fato de "não existir mais obra alheia" (via "reproposição crítica", torna-se sua) e a ênfase na "irrepresentabilidade".
A impossibilidade de ser, de se situar historicamente, a tragédia, dizia ele, são irrepresentáveis. Basta um desacordo entre o que se está por dizer e algo que se poderia contrapor para surgir "uma terceira coisa que é a impossibilidade do teatro".
Não à toa, o crítico italiano Maurizio Grande definiria o seu trabalho como uma "arte do apagamento", marcada pelo abandono da representação, das imagens (especulares ou projetivas) da cultura dominante e pela compreensão do teatro como o "lugar da destruição organizada".
É a forma particular de organização desse teatro não-representacional que interessa a Deleuze em "Um Manifesto de Menos", um dos dois ensaios reunidos em "Sobre o Teatro" [trad. Fátima Saadi, Ovídio de Abreu e Roberto Machado, Zahar, 112 págs., R$ 22]. Seguindo Bene, que descreve seu "Romeu e Julieta" como "um ensaio sobre Shakespeare", destacam-se, nessa operação, a subtração, a variação e a minorização. Pois é via amputação que Bene repropõe Shakespeare, Camus, Laforgue, Collodi, Maiakóvski, Goethe.

Extrai Romeu e amplia Mercutio. Neutraliza o Senhor, em "S.A.D.E.", e metamorfoseia e expande o Servo.
Desaparece com o Estado e enfatiza a máquina de guerra de "Ricardo 3º", que, com suas próteses, deformações, excrescências, converte a peça no processo de sua autoconstituição. Seu teatro é crítico, constituinte, observa Deleuze, pois, ao retirar elementos estáveis desses textos, libera nova potencialidade, "força não representativa sempre em desequilíbrio". Modificam-se a atuação e a ideia de teatro, não mais "representação".

Substituem-se diálogos e conflitos institucionalizados por uma composição rítmica, regida por um misto de afasia, impedimento e variação livre, que trava gestos, sobrepõe vozes, altera velocidades e alturas de emissão. Instabilizações que minam e repotencializam textos "maiores" nos quais Bene exercita sua "ciência da crítica", minorando-os, "desescrevendo-os".
Por vezes, como nos Hamlets, quando "uma única execução brutal não bastaria", numa série de reescrituras cênicas. É pena que a edição brasileira tenha deixado de lado a versão de Bene para "Ricardo 3º" que acompanha o ensaio deleuziano no volume "Superpositions" (Éditions de Minuit). Não apenas para que o leitor pouco familiarizado com o trabalho do ator-dramaturgo-encenador italiano (à exceção, em geral, do "Édipo Rei" de Pasolini) pudesse ter acesso ao menos ao texto comentado de modo mais detalhado por Deleuze. Mas para observar o que fica de fora nessa análise -fundamentalmente o que diz respeito à dinâmica particular das indicações cênicas, à tensão entre subtração e "horror vacui" [aversão ao vazio] que as caracteriza.
E as conecta não só às extrações shakespearianas, mas ao estatuto de proposição e à dimensão humorística que Bene trabalha em seus textos. E que aí se desdobram de modo desabrido, escatológico, quase como outro texto, de extrema fisicalidade, em diálogo com a operação de reescrever a peça elisabetana.
"Trata-se de extinguir a luz e ver o que ainda se move num teatro feito escuridão", dizia Bene.
E, em sua avaliação, não escapam por inteiro nem Brecht ("sua operação crítica ele a realizou na escrita, não em cena") nem Beckett (faltaria "isolamento lunar" como o de Oscar Wilde em "Salomé").
O que não exclui fortíssimos ecos de ambos em seu trabalho. A infidelidade textual como método crítico, o jogo entre senhor e servo, aparelho de Estado e máquina bélica, exibindo o rastro brechtiano; as linhas de variação no âmbito da língua e da dicção ecoando o processo beckettiano de composição e dissipação. A refiguração, por Brecht, da função do dramaturgo, e a teatralização da exposição teórica, da dinâmica processual da relação entre prática cênica e prática reflexiva (tal como se realizam em "A Compra do Latão"), parecem ter sido decisivas na produção de um campo crítico ativo, dialógico, no qual se incluiria -para além de enquadramentos representacionais, conflitos, e fábulas- um trabalho como o de Bene. Coube, nesse sentido, ao estudo de José Antônio Pasta ["Trabalho de Brecht", Duas Cidades/Ed. 34, 352 págs., R$ 46] papel pioneiro na discussão desses fragmentos crítico-dramatúrgicos para a compreensão do método brechtiano.
E em sua conexão a outros experimentos processuais e formas em aberto da tradição moderna -como o de Walter Benjamin nas "Passagens", o de Ezra Pound nos "Cantos", o de James Joyce no "Finnegans Wake".
Ou como o "Fausto", de Goethe, cuja relação com o projeto brechtiano se mostra determinante na indagação de Pasta sobre a preocupação com a forma duradoura num pensamento marcado pela reorganização da herança, pelo confronto direto com meios e formas novas, com a indústria cultural. Classicidade que, "sacudida entre forças antagônicas", se apresenta como "instrumento de luta em meio hostil", acompanhando o esforço de "destruir e arruinar tanto teatro quanto possível". Pois, anuncia-se na primeira noite de "A Compra do Latão", é no interior do edifício teatral, enquanto o maquinista desfaz o cenário, que se pensa uma maneira nova de fazer teatro. Como é na tensão entre adoção da forma-mercadoria e crítica à imposição econômica que emerge o "Processo dos Três Vinténs", e se expõe a "força com que o caráter de mercadoria modela tudo que toca", exigindo distância e demonstração das contradições da experiência histórica. O que, em "A Compra do Latão", se desdobraria em autoconstituição e inacabamento, premeditação e constante rearranjo, mantendo-se, ao longo de duas décadas, como projeto e campo expansivo às mais diversas questões e formas de escrita, assim como a continuada discussão (anunciada na parábola que lhe dá título) sobre obra e valor. A teatralidade emerge onde trabalho e valor não são mais ponto pacífico, talvez se possa dizer sobre Brecht. Nem espaço e lugar, se pensamos em Beckett. A teatralidade parecendo constituir-se, nesse caso, onde o espaço significa precisamente a sua disrupção e rearranjo (Samuel Weber, "Theatricality as Medium", Fordham University Press). Na visualização deleuziana da obra de Beckett, em "O Esgotado", o segundo ensaio de "Sobre o Teatro", uma obra como "Quad" se apresentaria como sobreposição paradigmática de esgotamentos. O das figuras vergadas, fugindo ao centro, e, nesse trânsito exasperado, exaustivo, o do próprio espaço do quadrado. Movimento semelhante ao dos fluxos vocais, enumerações e exercícios combinatórios característicos ao escritor, e que se faz presente, não de modo idêntico, nas demais peças beckettianas para TV.
Em "Trio do Fantasma", por exemplo, se persiste o esgotamento, via repetição e recorte, do que delimita o espaço, a diferença, assinala Deleuze, é que se passa aí do espaço à imagem (de um rosto). Como os que aparecem e se dissipam em "Eh Joe", "... que nuages..." e "Nacht und Träume". Pois a aparição, observa Michel Deguy em "L'Énergie du Désespoir" (PUF), é afetada diretamente pela desaparição, faz par com ela, que "não é um acaso infeliz, mas o eclipse que faz cintilar a aparência".
Tensão constitutiva à imagem, é porque se dissolvem que parecem surgir esses rostos.
Como fluxo, figurações necessariamente em dissipação. Ao contrário, porém, da aproximação sugerida por Deleuze (e, antes dele, pelo crítico Giulio Carlo Argan) entre a dissipação figural em Beckett e na pintura de Francis Bacon, talvez o caráter agônico, enclausurado, dessas aparições não seja suficiente para tal analogia. 

A não ser que só se pense em termos temáticos. Pois as jaulas e cubos que delimitam os corpos-em-torção baconianos funcionam mais como dinamização e enquadramento do que entropia espacial, como na geometria beckettiana. E não lembram imagens-em-desaparição ou monocromatismos como os de "Trio do Fantasma" ou "Ping".
Talvez em Alberto Giacometti, sim, se adivinhe algo mais próximo. Esculturas que vão se afinando espantosamente, contornos emaranhados que se multiplicam, figurando e desfigurando rostos, coisas, quase ecos, nos quais, sob forte pressão autoanulatória, persiste o outro polo, a figura. E se aproximam, desse modo, do exercício imagético beckettiano, no qual, como em seu trabalho dramatúrgico, figuração e teatralidade emergem exatamente de seus pontos de disrupção.

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