sexta-feira, 10 de junho de 2011

Na gafieira com Camus

Memória - Camus com Abdias e seu grupo de teatro após ensaio de "Calígula"


Por Abidias do Nascimento, do Carderno Arte Clássica e Contemporânea

Quando criei o Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944, a intenção era trazer à cena a cultura do negro brasileiro, até então exilado dos palcos do nosso teatro. Para realizar o seu potencial de protagonista, seria necessário superar séculos de privação do acesso à educação e às letras e construir espaços de diálogo com o mundo do teatro. O TEN promoveu cursos de alfabetização e de cultura geral, e estabeleceu relações com artistas e intelectuais como Eugene O'Neill, Richard Wright e Albert Camus (1913-60), expoentes da literatura mundial.
Em 1947, o TEN solicitou ao escritor franco-argelino permissão para encenar sua peça "Calígula", texto denso e complexo como o que havíamos escolhido para nossa estreia, dois anos antes: "O Imperador Jones", de Eugene O'Neill. A resposta de Camus veio rápida e positiva, como a de O'Neill. Foi um desafio trabalhar com textos em língua estrangeira, mas nós acompanhamos a versão ao português num rico processo de reflexão e interlocução com escritores como Ricardo Werneck, Efraín Tomás Bó e Gerardo Mello Mourão.
O grande artista Tomás Santa Rosa concebeu os cenários sempre em diálogo conosco. O trabalho de Santa Rosa enfeitiçou "O Imperador Jones" no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 8 de maio de 1945. Mas, no caso de "Calígula", não conseguimos os meios para montar a peça. Fizemos uma apresentação especial para o autor no teatro Ginástico em 1949, quando encenamos também o segundo ato da peça "Aruanda", de Joaquim Ribeiro. Camus assistiu atento e discutiu o trabalho conosco e com os atores do TEN, entre eles Claudiano Filho, Ruth de Souza, Haroldo Costa e Natalino Dionísio.
Além desse memorável encontro, tive a oportunidade de compartilhar com Camus o seu profundo interesse pela cultura brasileira de origem africana. Visitamos, no então vilarejo de Duque de Caxias, os terreiros de candomblé, onde eu tivera o privilégio de conhecer uma grande liderança religiosa, Joãosinho da Gomeia -figura forte e afirmativa, com aquela doçura dos iluminados.
Ainda dividi com Camus uma noitada na gafieira Elite, no centro do Rio. Ele aplaudiu os bailados afro-brasileiros de Mercedes Batista, ensaiou dançar o samba, ouviu a Orquestra Afro-Brasileira de Abigail Moura e assistiu à Fausta apresentando o frevo pernambucano.
Em 1950, o TEN promoveu o 1º Congresso do Negro Brasileiro, cujo registro taquigráfico e teses apresentadas compunham os anais que reuni em dois volumes. Mergulhado na organização desses anais, soube da publicação de "O Homem Revoltado", ensaio filosófico de Camus. O texto era fascinante; pude conhecê-lo de forma viva e em versão direta em longas discussões com Efraín e Gerardo. A obra inspirou o título do primeiro volume dos anais do Congresso, "O Negro Revoltado". Sumariamente rejeitado pelas editoras até 1968, o livro é todo pontuado com trechos de "O Homem Revoltado", epígrafes em homenagem a Camus.
O segundo volume dos anais seria "A Negritude Polêmica", que registrava a discussão em torno da tese "Estética da Negritude", de Ironides Rodrigues. Nunca encontrou editora. Já o volume publicado registra vários documentos como extraviados, pois um sociólogo que se aproximou do TEN para investigar a questão racial os pediu emprestados e não os devolveu. Publicou sua pesquisa recheada de referências negativas em termos, digamos, pouco científicos, agredindo o TEN e as organizações negras em geral.
Nós apontamos publicamente o caráter tendencioso do trabalho. A resposta do autor expressa bem a geografia humana dessa linha de investigação científica em relação ao negro: "Duvido que haja biologista que veja, digamos, um micróbio tomar de pena e vir a público dizer sandices a respeito da pesquisa em que participou como material de laboratório".
Ao contrário da morte inexorável do movimento social pelos direitos civis e humanos dos negros no Brasil anunciada por tais autores, hoje assistimos às suas conquistas. Entre elas estão a discussão e a formulação de políticas públicas afirmativas para a construção da igualdade racial.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

A dualidade feminina nos desenhos de Camillo Meneghetti

Do Portal Obvius, por Rejane Borges


Sua arte expressa a dualidade da figura feminina – o poder e a fragilidade. Inspirado na estética do surrealismo pop, Camilo Meneghetti cria uma intrigante atmosfera por meio de distorções que convidam o observador a imergir em seu imaginário obscuro, no qual sublima a inocência e a beleza.

Ainda pequeno, o artista Camilo Meneghetti percebeu que queria desenhar. Mas não qualquer coisa: queria desenhar emoções. O lápis, papel e alguns sentimentos, que não sabia exatamente o que eram, o inspiravam. Depois de uma grande trajetória, encontrou-se em uma interessante retratação da figura feminina, até hoje sua maior fonte de inspiração.

Camilo Meneghetti nasceu e cresceu em Novo Hamburgo, a 50 km da capital gaúcha, Porto Alegre. Ainda menino tinha aquela vaga melancolia de não saber direito de onde vinha, aquela estranha saudade de alguma coisa ou alguém. Queria descobrir todos estes sentimentos. Seus pais – salienta o artista – tiveram um importante papel em seu desenvolvimento artístico. Por terem um espírito lúdico proporcionaram muita liberdade à imaginação do então menino que se apaixonava pela arte.

Quando mais velho, e antes de se dedicar exclusivamente à arte, trabalhou, durante dez anos, com propaganda. Mais tarde, seus traços vieram inspirados na mulher, por sempre considerá-la um ser mais complexo e mais forte do que o homem – pela natural intuição e sensibilidade. Desenhava a figura feminina, exaltando as curvas e a leveza do corpo. Porém, com o tempo começou a distorcer seus desenhos, das mais variadas formas, em busca da expressão exata do que queria transmitir.
 
Influenciado por artistas como Sergey Bratkov e Margherita Manzelli – os quais retratam crianças e jovens em situações adultas, insinuantes ou incômodas, decidiu que sua figura feminina transmitiria o máximo de fragilidade possível. Buscou algo como uma entidade. “A morte, o mal, a tristeza, a força, o medo – ou qualquer outro símbolo poderoso do nosso imaginário – envelopado numa forma aparentemente frágil”, ressalta o artista.

Sua proposta são entidades, praticamente fantasmas, seres sem idade retratados na forma de uma menina de proporções distorcidas. Meninas fortes e frágeis ao mesmo tempo.

Camilo recebe, frequentemente, diversos convites para participar de exposições e intervenções artísticas. Atualmente trabalha entre Novo Hamburgo e São Paulo.
 
Mais trabalhos do artista podem ser conferidos no endereço http://www.flickr.com/photos/camilomeneghetti.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

ArteSesc expõe obras de Nuno Ramos em Campina Grande

Da Assessoria de Imprensa do Sesc/CG


Será realizado até o dia  16 de junho, no hall do Sesc Centro Campina Grande, o projeto ArteSesc, com a exposição do artista plástico Nuno Ramos, intitulada Só Lâmina. A mostra será aberta ao público e escolas públicas e privadas da cidade poderão agendar visitas, nas quais os alunos terão a oportunidade de conferir as obras do artista. As visitações acontecerão pela manhã, tarde e noite.

O intuito do projeto é favorecer a produção artística de qualidade em suas diferentes linguagens, como fotografia, pintura, videoarte, entre outras. Para isso, são apresentadas propostas distintas cujo objetivo é provocar a discussão de questões contemporâneas na produção de arte.


A atitude contemporânea da sua obra foi um dos critérios para seleção do artista plástico Nuno Ramos. Em seus três trabalhos que fazem parte deste acervo (Só Lâmina, criado especialmente para o Sesc, Carolina e Luz Negra) ficam evidentes a grande diversidade de formas, cores, materiais e texturas que compõem a obra do artista.

O ArteSesc favorece a difusão da arte, com programação sistemática e itinerante que atinge diferentes camadas sociais com o compromisso de discutir, produzir e disseminar a arte. Em 2007, tal responsabilidade cresceu: o projeto recebeu do Ministério da Cultura um selo de qualidade.
 
Desde 1981, o projeto vem realizando mostras itinerantes em centros urbanos e cidades do interior, tornando mais conhecidos os acervos de instituições culturais e a produção de artistas provenientes de várias partes do país, ao exibi-los nas unidades do Sesc em diversos estados do país ou, eventualmente, em espaços da comunidade.

O projeto é uma realização do Departamento Nacional em parceria com o Sesc Paraíba. Para agendar, as escolas devem entrar em contato com o setor de cultura do Sesc Centro Campina Grande, através do telefone (83) 3341-5800, ou se dirigir até a unidade, que fica na Rua Giló Guedes, 650, Santo Antônio.


Sobre o artista Nuno Ramos
O artista Nuno Ramos faz parte de uma geração surgida nos anos 80. Formou com um grupo o Ateliê Casa 7, que se tornou uma referência importante do período, em São Paulo. 

Sua pintura logo atraiu a atenção pela dimensão e massa de matéria que utilizava em quadros grandes e pesados. Dimensão e peso ainda são propriedades que caracterizam seus trabalhos – desenhos, esculturas, instalações, que tem em si algo do monumento e do monumental.

Seu trabalho mais emblemático é uma obra inspirada no massacre de presos do Presídio do Carandiru (São Paulo), apresentada na Bienal Brasil Século XX em 1994. No ano seguinte participou da 46ª Bienal de Veneza, e desde então seu trabalho tem sido visto em importantes mostras individuais e coletivas.

Nuno Ramos é um incansável e insaciável metabolizador de formas, materiais e linguagens, e da energia liberada neste processo. Faz parte da sua dinâmica artística este impulso ao mesmo tempo disperso e integrador, reunindo imagens, cores, palavras, sons, para sempre conferir-lhes um significado imprevisto e excitante.


Exposição Só Lâmina
Nuno Ramos mostra nesta exposição três trabalhos seus: Só Lâmina, Luz Negra e Carolina. Cada um deles representa e exemplifica uma dimensão importante e significativa da extensa obra do artista.

Só Lâmina faz parte da intensa pesquisa que Nuno, desde os anos 80, vem desenvolvendo a respeito das possibilidades que existem para a superfície bidimensional da tela. Para ele, não há quase distinção entre pintura e desenho; ambos estão sujeitos mesma dinâmica que mobiliza diferentes formas, materiais, texturas, necessariamente de qualidades e propriedades diversas e contrastantes. O seu volúvel raciocínio plástico é estimulado por oposições, confrontos, antagonismos, tudo que é heterogêneo atrai para si. Daí o aspecto tumultuado e instável de suas obras, sempre provocando e desestabilizando o olhar conformista.

A série de onze desenhos de Só Lâmina, criada especialmente para o SESC, traz encravada a poesia de João Cabral de Melo Neto. Nuno mais uma vez, como já tinha feito com Drummond e Bandeira, reconhece a forte atração que sente pelo literário e o modo como este empolga sua imaginação plástica e aqui utiliza literalmente da faca poética de Uma Faca Só Lâmina, de João Cabral.

Mais recentemente, Nuno tem se apropriado de outro material, já não pertencente à esfera visual mas auditiva: o som, que pode ser música como no caso de Luz Negra, onde de caixas acústicas enterradas no chão sai a voz de Nelson Cavaquinho cantando Juízo Final, ou simplesmente uma sequência de frases faladas e gravadas que sugerem o repertório do que se fala diariamente numa grande cidade; a interminável e bela cacofonia íntima da metrópole que uma ausente Carolina, escuta. Só Lâmina, Luz Negra e Carolina são uma tripla e potente dose da obra de Nuno Ramos.

terça-feira, 7 de junho de 2011

O dia em que troquei a Sétima Arte pelo Maior Espetáculo da Terra

Por Giuliana Rodrigues, da ASCOM/UEPB


    A noite daquele sábado prometia mais do que um DVD em casa, uma pizza em família, um barzinho com os amigos ou uma romântica sessão de cinema. Como uma menina de oito anos, bati o pé e insisti: queria mesmo ir ao CIRCO! E não era nenhum “Cirque du Soleil”, não. Era apenas um circo bonitinho e interessante que visitava a cidade, como as atrações nômades costumam ser.
    O único problema era convencer o marido a me acompanhar ao revival infantil, sem ao menos usar o pretexto de levar um sobrinho ou qualquer outra criança, cuja presença amenizasse a vergonha de dois adultos sentarem embaraçosamente no “poleiro” e se deixar admirar com trapézios e malabares, além de morrer de rir, como dois idiotas, ao ver as peripécias dos palhaços.
    Embora tentadores, os filmes em cartaz no cinema poderiam ser vistos outro dia, ou emprestados numa locadora em breve. Aquela noite, definitivamente, seria do circo! Com o obstáculo vencido (pelo cansaço), entradas compradas e nós dois devidamente instalados sob a enorme tenda colorida, teve início a atração.
Luzes, música, apresentador... crianças gritando, entusiasmadas, por todos os lados. Mágicos, dançarinas, palhaços, homem voador, cavalo adestrado, motoqueiros no Globo da Morte. E eu nem lembrava a última vez que tinha ido a um circo!
    Aquilo tudo se desdobrando na minha frente e eu só tentando imaginar como era o dia a dia daqueles artistas: o que comiam, onde dormiam, o que vestiam quando não usavam as fantasias brilhantes? Seria a contorcionista namorada do trapezista? Como era viver na estrada, mudando de cidade a cada novo espetáculo? E o menininho de 10 anos que se apresentava como equilibrista ao lado do pai, de que forma estudava, quando não trabalhava? Seriam essas pessoas verdadeiramente felizes, àquela maneira itinerante de viver?
    Com um ingresso que custou bem menos que uma entrada de cinema, ganhei muito mais: paguei não somente as fantásticas atrações, mas também a deliciosa fantasia de voltar à infância e me deixar levar pela cultura de um espetáculo tão antigo e tão atual.
    No entanto, impagável mesmo foi perceber que, ao meu lado, o inicialmente relutante e mal humorado marido há muito já baixara guarda... agora, como eu, ele gargalhava e batia palmas. Como uma criança qualquer.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

O Código Shakespeare

Por André Conti, do Caderno Ilustríssima

RESUMO
Crítico americano busca em referências políticas, sociais e culturais do ano de 1599 as marcas históricas de uma guinada na vida e na obra de William Shakespeare, que passa de talento promissor a mestre do teatro. Edição de uma versão popular de "Hamlet", escrita na mesma época, registra essa virada na vida do dramaturgo.


No nono episódio  de "Ulisses", Stephen Dedalus, um dos protagonistas do romance de James Joyce, expõe a um grupo de literatos sua teoria sobre "Hamlet". Como diz um amigo dele, Dedalus busca "provar por álgebra que o neto de Hamlet é o avô de Shakespeare e que ele próprio é o fantasma do próprio pai".
A teoria se apoia numa série de especulações biográficas, como a noção de que Anne Hathaway -a viúva a quem Shakespeare legou sua "segunda melhor cama" no testamento- era adúltera. Dedalus não convence os ouvintes. "Discussões do baixo clero sobre a historicidade de Jesus", dispensa um deles.
A suposição de que Anne Hathaway era adúltera aparece em diversas biografias a partir do século 18. Shakespeare teria lhe deixado a segunda cama porque a primeira caberia aos amantes dela. Mas os argumentos contrários são igualmente fortes: como viúva, Anne tinha direito a um terço de todos os bens de Shakespeare, de modo que a cama poderia ser um gracejo particular entre os dois.
Anne tinha 26 anos quando eles se casaram e estava grávida, o que em geral é apontado como indício de um enlace forçado. Outros biógrafos, porém, argumentam que ela, vinda de uma família rica e sem intenção de acompanhar Shakespeare na mudança de Stratford para Londres, seria a mulher ideal para um jovem de 18 anos.

FICÇÕES NECESSÁRIAS As biografias convencionais de Shakespeare, segundo o acadêmico americano James Shapiro, são "ficções necessárias". Para o autor do recém-lançado no Brasil "1599 - Um Ano na Vida de William Shakespeare", "elas revelam menos sobre a vida de Shakespeare do que sobre as fantasias de quem desejamos que ele tenha sido".
Há tantos bardos -o burocrata, o festeiro, o litigioso, o apaixonado- que, como aponta um de seus biógrafos modernos, "é espantoso que ele tenha encontrado tempo para escrever". Cada geração de críticos parece criar um Shakespeare à imagem de sua época, que, embora sirva de baliza a uma série de teorias e especulações, pouco revela sobre o homem e seu tempo.
Shapiro dedicou-se à "questão da autoria" em "Contested Will - Who Wrote Shakespeare?", lançado no ano passado no Reino Unido. O estudo procura menos cravar "quem" ele foi do que refletir sobre as especulações e teorias da conspiração sobre sua identidade, muitas vezes fomentadas por autores respeitáveis como Sigmund Freud (para quem o dramaturgo seria, na verdade, francês: "Shakespeare" era uma corruptela de "Jacques Pierre") ou Mark Twain.
Em "1599", Shapiro elege um ano na vida de Shakespeare e o investiga por meio de lentes políticas, históricas e literárias. O procedimento libera Shapiro das teorias totalizantes e permite que se concentre numa questão: como o autor de "Romeu e Julieta", "Tito Andrônico" e "Ricardo 2º", um "jovem promissor", na ironia que corria à época, vira o criador genial de "Hamlet", "Macbeth" e "Rei Lear"? Naquele ano, Shakespeare terminou "Henrique 5º", escreveu "Júlio César" e "Como Gostais", e teria esboçado o primeiro rascunho de "Hamlet". Ainda construiu seu teatro, o Globe, e perdeu (ou demitiu) William Kemp, um dos atores principais de sua companhia.

ESTILO Segundo Shapiro, é também o ano em que ocorre uma mudança estilística importante. Agora sócio da companhia que encenava suas peças -e também ator-, Shakespeare tinha mais autonomia sobre o texto final do que outros dramaturgos contemporâneos. No teatro elisabetano, ao ser adquirida por uma companhia, a peça podia ser alterada, encurtada e mexida de acordo com a ocasião.
É certo que, de sua posição privilegiada, Shakespeare garantia que suas peças fossem encenadas da maneira adequada e podia supervisionar pessoalmente as eventuais mudanças. Livre dos contratos de arrendamento e sócio de seu próprio teatro, ele poderia conduzir sua obra a outros caminhos. O discurso de Henrique 5º no campo de Argincourt soava novo aos espectadores da época, e os solilóquios de Brutus, protagonista de "Júlio César", também.
Devido à escassez de registros do período elisabetano, construiu-se o mito de que sabemos pouco sobre Shakespeare.
Um homem nasce em Stratford, casa-se, tem filhos, vai a Londres tentar a carreira de ator. Começa a colaborar em alguns roteiros, faz sucesso como dramaturgo, monta uma companhia de prestígio. Levemente enriquecido, volta a Stratford, se aposenta e morre. Por muito tempo, essa foi a versão oficial.
Na falta de dados concretos, os críticos voltavam-se às obras, tratando-as como se tivessem sido escritas fora de seu tempo, "de outro planeta", como disse Coleridge. O que Shapiro e outros críticos de hoje mostram é que a obra de Shakespeare está profundamente cravada em seu tempo, por mais que extrapole as questões locais e seja tão universal.

GOLPE LITERÁRIO Ainda assim, para muita gente é impossível aceitar que o dramaturgo-símbolo do teatro tenha deixado tão poucos registros. O mais provável, claro, é que ele nunca tenha existido. Francis Bacon, Christopher Marlowe e a própria rainha Elisabeth já foram acusados de perpetrar o maior golpe literário de todos os tempos.
Cronologicamente, o último suspeito é Edward de Vere, o conde de Oxford. Os "oxfordianos", como são chamados os adeptos dessa teoria, se referem a Shakespeare apenas como "o homem de Stratford". Por trás das teorias conspiratórias, paira um esnobismo acadêmico.
De que maneira o filho de um luveiro, um homem pouco instruído, poderia conhecer tão bem o funcionamento da corte inglesa? Ou descrever a Itália que aparece em "Muito Barulho por Nada"? Só um aristocrata sensível e culto seria capaz de tal feito.
Na realidade, a vida de Shakespeare está razoavelmente documentada para um homem do início do século 17. Quase 50 documentos com seu nome sobreviveram -o testamento, os registros de pequenas disputas legais, a ocasião em que ele foi testemunha, o pedido para ter um brasão de família.
O problema é que esses documentos, obviamente, não dizem nada sobre quem ele foi, sobre suas inclinações políticas, temperamento, caráter, preferências estéticas, eróticas, culinárias, motivações, desejos. Se ele não guardou diários e cartas, é porque o hábito era quase desconhecido na Inglaterra elisabetana, e não porque quisesse se preservar.

SOCIEDADE Na falta de dados mais concretos, Shapiro procura entender como funcionava a sociedade em torno do bardo, para só então apontar as mudanças que vinham ocorrendo tanto em sua obra como na vida inglesa. As próprias relações familiares de Shakespeare, que os biógrafos cuidaram de romantizar nos últimos 400 anos, são questionadas.
Num tempo em que a mortalidade infantil era altíssima e em que a expectativa de vida ficava na casa dos 40 anos, é provável que essas ligações afetivas fossem mais tênues. É comum dizer que Shakespeare escreveu "Hamlet" em homenagem ao filho Hamnet, morto aos 11, mas não há provas de que isso seja verdade.
A produção de Shakespeare em 1599 indica que ele estava preocupado em criar um repertório para o novo teatro. As duas partes de "Henrique 4º" haviam feito sucesso, tanto na corte como entre o público. Falstaff, o cavaleiro bufão vivido no palco por William Kemp (e escrito com o ator em mente), falava diretamente àquela plateia, com suas danças e improvisos.
O teatro era um divertimento popular, e Shapiro aponta que aquela era a "plateia mais experiente da história". Cerca de um terço da população assistia a ao menos uma peça por mês, e as companhias alternavam seus velhos êxitos com obras compradas ou escritas pelos dramaturgos da casa.
Falstaff também caiu nas graças da corte: biógrafos apontam que Shakespeare o teria incluído em "As Alegres Comadres de Windsor" para agradar a rainha. Mas "Henrique 4º" era popular entre os nobres pois estava repleta de alusões e anedotas sobre a política corrente, e muitas vezes sua trama esbarrava em acontecimentos recentes, embora fosse ambientada quase 200 anos antes.

CONTEXTO
Todos conheciam aquelas histórias, já que as fontes de Shakespeare não eram exatamente originais. O que lhe importava, parece, era inserir a trama -qualquer trama, de Júlio César a Cleópatra ou a Timão de Atenas- num contexto atual, que falasse da realidade da sua plateia, fossem quais fossem a plateia e a realidade. Por isso suas obras, mesmo quando estão sendo específicas, têm um apelo tão abrangente.
E, pelo mesmo motivo, elas parecem acomodar tantas interpretações e teorias. Não é preciso entender as piscadelas à corte elisabetana para apreciar "Henrique 4º". A realidade de cada leitor oferece as ferramentas necessárias. Que isso pareça tão deliberado quanto espontâneo, tão desprovido de esforço quanto certeiro no método, toda explicação deve ser atribuída, naturalmente, à parcela indecifrável do gênio do autor.
Mas ele conhecia muito bem sua plateia e, quando começou a escrever "Henrique 5º", sabia que Falstaff e Kemp eram esperados de volta. A peça, que ficou pouquíssimo tempo em cartaz, até para os padrões elisabetanos, matava Falstaff fora de cena e transformava uma história fácil de heroísmo nacionalista numa trama amarga sobre a guerra e o poder.
A quadra política era de instabilidade. A rainha, que não tinha herdeiros, chegava aos 70 anos, 40 deles no trono, e seu poder começava a enfraquecer. Conforme a rebelião na Irlanda contra o mando inglês atingia um momento crítico, Elisabeth se viu engalfinhada numa disputa com Robert Devereux, o conde de Essex. O "preferido da rainha", como era conhecido, iniciava sua campanha para conter os rebeldes e, num período de três anos, cairia em desgraça e seria executado como traidor.
"Henrique 5º" foi escrita nesse momento de turbulência. Shapiro, ao reconstruir todo o contexto da revolta irlandesa, mostra como a peça teria sido compreendida por uma plateia da época.

INVISÍVEL Difícil acreditar que Shakespeare escreveu "Henrique 5º" alheio aos acontecimentos daquele ano, e a ambiguidade da peça demonstra isso. Ainda assim, em meio a tantas referências e paralelos, é impossível depreender a posição do próprio Shakespeare, naquela situação política e em qualquer outra. Ao permanecer politicamente invisível no texto, e ao mesmo tempo traçar um retrato tão moderno do poder, ele permitiu que gerações seguintes continuassem adaptando suas peças ao sabor da época.
A crítica Pauline Kael aponta como, na adaptação de Laurence Olivier para o cinema, nos anos 1940, "Henrique 5º" parece enaltecer os esforços britânicos na Segunda Guerra Mundial (1939-45): o substrato do filme é a resistência patriótica, tratada como heroísmo. Já na versão de Kenneth Branagh, de 1989, cujo contexto é o da retomada das ilhas Malvinas pela Inglaterra imperialista, transparece o horror do combate, a sujeira e o sangue: o substrato, agora, é a manutenção do poder neocolonial.

HAMLET
No outono de 1599, Shakespeare teria começado a esboçar a primeira versão de "Hamlet". A fonte seria uma peça hoje perdida, escrita por Christopher Marlowe, Thomas Kyd ou pelo próprio Shakespeare, cerca de dez anos antes, que por sua vez se inspirava numa série de lendas e outros registros. Não se sabe o quanto da trama original ele aproveitou, mas já nesse primeiro tratamento, que felizmente sobreviveu, é notável o avanço em relação às obras anteriores.
Se os monólogos de Brutus, escritos naquele mesmo ano, apontavam para uma mudança na percepção de mundo do autor, os solilóquios de Hamlet abriam caminho para um tipo novo de expressão. Como afirma Shapiro, Shakespeare parece entender que seu mundo está mudando, e de certa forma o texto vai antecipar o ritmo dessa mudança.
Não por acaso, poucos anos antes Londres recebera as primeiras traduções para o inglês dos "Ensaios" de Montaigne (1533-92). É provável que Shakespeare, um leitor curioso e amigo de John Florio, tradutor de Montaigne, tenha tido acesso a um exemplar dos "Ensaios". Aquele gênero novo, misto de tratado com depoimento pessoal, também captara algo da mudança de mentalidade.
Montaigne escrevia para si, sobre si, na mesma voz com que Hamlet indagava sobre si nos corredores de Elsinore. "Hamlet" não é uma peça excepcional por sua trama, e diversos críticos, entre eles Tolstói e T.S. Eliot, apontaram lacunas e contradições na história. "Hamlet" é excepcional porque capta uma fagulha, um momento, e o expande em todas as direções.

VERSÕES Mas Shakespeare ainda voltaria ao texto de "Hamlet" antes de apresentá-lo à companhia. A segunda versão, que seria "oficializada" em 1623, quando a obra póstuma do bardo foi publicada em um volume, é a maior peça que ele escreveu. Como as encenações no Globe começavam às 14h e dependiam da luz do dia, era impossível apresentar "Hamlet" na íntegra, de modo que uma versão resumida foi criada. A peça resultou num sucesso estrondoso: permaneceu em cartaz por anos. Parte da companhia também saiu em turnê pelo interior, e uma terceira versão, ainda mais curta, surgiu.
Esses dois roteiros resumidos se perderam, e pouco sabemos de como a peça era encenada no século 17. Mas quando o público exigiu uma versão impressa de "Hamlet", membros dessa trupe itinerante teriam produzido uma versão pirata do texto, de memória. É o chamado "Quarto de 1603", que sai agora em excelente tradução de José Roberto O'Shea, "O Primeiro Hamlet - In-Quarto de 1603" . 
Os "quartos" (ou "in-quartos") eram volumes mais baratos, de tamanho reduzido, em oposição aos imensos "fólios" (ou "in-fólios"), dedicados normalmente a obras "sérias". O texto, com a metade do tamanho do original, é um vislumbre de como, mesmo na época, as peças de Shakespeare eram maleáveis e adaptáveis ao gosto do público (e às capacidades da trupe).
O que se apresenta ali é um "Hamlet" muito menos reflexivo e muito mais veloz. Uma peça que nunca teria dado origem à grande tradição do solilóquio shakespeariano, mas que funciona melhor como "ação" dramática acelerada, em um tempo muito mais reduzido de apresentação.
Em resposta, a companhia de Shakespeare publicou sua própria versão de "Hamlet", curiosamente baseada no primeiro texto, mais sombrio, de Shakespeare. Depois que ele morreu, a segunda versão, provavelmente a preferida pelo autor, foi incluída em sua obra completa. Isso fez com que editores do século 18 em diante passassem a montar um texto único, com elementos de ambos esses "Hamlets", e a tradição perdurou.
As editoras acadêmicas costumam oferecer as duas versões anotadas. E, no confronto desses textos, surge um raro vislumbre do método de Shakespeare. Suas peças não nascem do ar, não foram escritas num jorro.
Ele corta personagens, inverte cenas, muda nomes, se arrepende, volta atrás. Deixa penduricalhos e diálogos soltos. Não resolve tramas. Recorre a soluções fáceis, mas de impacto imediato no público.
O esforço pode não estar aparente na peça, mas faz parte dela. É dessa certa aspereza que o Hamlet personagem pode surgir, representando e estabelecendo um novo tempo.

Cada geração de críticos parece criar um Shakespeare à imagem de sua época, que pouco revela sobre o homem e seu tempo

O que Shapiro e outros críticos de hoje mostram é que a obra de Shakespeare está profundamente cravada em seu tempo

Shapiro aponta que aquela era a "plateia mais experiente da história". Cerca de um terço da população assistia a ao menos uma peça por mês

Quando o público exigiu uma versão impressa de "Hamlet", membros dessa trupe itinerante teriam produzido uma versão pirata do texto, de memória

Como afirma Shapiro, Shakespeare parece entender que seu mundo está mudando, e de certa forma o texto vai antecipar o ritmo dessa mudança

sexta-feira, 3 de junho de 2011

“Deixa ela entrar” e o bullying


Por Juliana Rosas, da ASCOM/UEPB

Há algum tempo atrás, ficou famoso um vídeo no Youtube em que um garoto vítima de bullying se enfeza e dá o troco em seu agressor. O episódio reavivou a já acesa chama das discussões sobre o tema. Algumas das afirmações é que bullying sempre existiu. Apenas reapareceu com nova roupagem – o cyberbullying, por exemplo – e com esse novo nome. Uma vez, assistindo a uma palestra de um professor de História, ouvi algo como, “demos esse novo nome para tal prática, que nada mais é do que a violência escolar”. Sim, é mesmo, pois apesar de o adjetivo bully em inglês se referir a alguém que importuna, usamos bullying nessa conjunção específica de brigas, cerceamentos e ameaças dentro do ambiente de ensino. Práticas semelhantes em ambientes distintos, como no trabalho, por exemplo, as chamamos de assédio moral, sexual, ou o que convier.

Pois bem, o meu título se refere a um filme sueco lançado no Brasil em 2009 (Deixa ela entrar/Lat Den Rätte Komma In/2008) que ficou bem conhecido por se tratar, também, de um filme sobre vampiros. E a onda vampiresca, advinda da saga Crepúsculo, estava em voga. Claro que “Deixa ela entrar”, justamente por ser sueco, não é o besteirol escancarado, nem a vampiraria tradicional que estamos acostumados a ver. É um filme mais decente, bem feito e com enredo mais bem construído. Chegando até onde é o propósito do artigo: há pré-adolescentes como protagonistas e retrata com sinceridade atos de violência escolar de um aluno vítima de bullying. E mais uma vez até onde queria chegar: acontecendo na civilizada Suécia.

Conheci um sueco numa das últimas viagens que fiz e até hoje nos correspondemos. Foi ele que me recomendou este filme, apesar de eu já ter ouvido falar sobre a produção na TV e em jornais brasileiros. Quando eu finalmente o assisti, fiquei espantada com o aspecto do bullying. Eu tinha ouvido falar apenas que era um filme de vampiros. E fui conversar com meu amigo nórdico. Perguntei-lhe se o bullying de fato era comum na Suécia, dada a conhecida civilidade escandinava. Ele disse que sim, era muito comum. Espantei-me mais ainda com o ‘muito’. Insisti no assunto, “mas como assim, se conhecemos os suecos como civilizados, etc, etc...?”. Peter me respondeu: “Sim os suecos são civilizados, são conhecidos por serem pacíficos e não gostam de se envolver em brigas. Mas crianças são crianças.” “De fato”. Foi a primeira coisa que consegui responder.

Crianças são crianças e crianças podem ser más. Este é um fato que muitos adultos tendem a não querer reconhecer. “Não é fácil para a sociedade aceitar a maldade infantil, mas ela existe”, diz Fábio Barbirato, chefe da Psiquiatria Infantil da Santa Casa, no Rio de Janeiro. Ele explica que a criança ou adolescente que tem essa patologia pode se transformar, na vida adulta, em alguém com a personalidade antissocial.

“Um obstáculo para o tratamento de crianças com sinais de transtorno de conduta é o próprio tabu da maldade infantil. O senso comum afirma que as crianças são inocentes – uma crença que resulta da evolução histórica da família. As escolas, porém, desmentem isso: elas costumam ser o palco diário das maldades das crianças com transtorno de conduta. A psiquiatra carioca Ana Beatriz Barbosa Silva, autora do best-seller Mentes Perigosas, diz que crianças e adolescentes com esse distúrbio costumam estar por trás dos casos mais graves de bullying”, diz um trecho da reportagem da Tribuna de Ituverava de 16/04/2010.

Em 2009, na novela Viver a Vida, escrita por Manoel Carlos, havia uma criança má na trama. No decorrer dos capítulos, à medida que aumentava a maldade da personagem mirim, o Ministério Público do Rio de Janeiro começou a acompanhar de perto Rafaela (personagem) e as atitudes desagradaram a Justiça. Tanto que o autor do folhetim chegou a ser notificado. No documento, um pedido para que ele tenha “cuidado ao elaborar a personalidade de personagens cujos atores são menores de idade”. O Ministério Público considerou a personagem pouco adequada: criança, aparentemente, não pode ser vilã.

Já no cinema, é longa a lista de crianças agressoras, possuídas, endemoniadas, psicóticas, “bullies” ou simplesmente más. A TV e a sociedade tradicional ainda querem acreditar na candura infantil. O cinema nunca acreditou na inocência das crianças.

As raízes da melancolia de Sérgio Buarque de Holanda



Por Elias Thomé Saliba, da Revista Carta Capital
“Em país como o nosso, onde em tudo domina a filosofia tupinambá, só se olham como grandes benfeitores os homens que fazem reformas de efeito. Embora para isso seja necessário onerar a nação e pejar seu futuro de incertezas, é essa a maneira mais cômoda para nossos governantes de conquistar popularidade. Bussolados pelo interesse próprio que quase em regra não é o da nação, esses políticos barafustam-se em intentonas egoístas cujo único mote é o lucro próprio. Eis como no Brasil se faz de meros bonifrates de circo, homens representativos.”
Não, o texto acima não foi escrito a propósito da política brasileira das últimas décadas. Nem quando menciona os “bonifrates de circo” está falando daqueles muitos Tiriricas que viraram parlamentares. O texto saiu na revista A Cigarra, no longínquo ano de 1920. Foi escrito por um jovem de 18 anos chamado Sérgio Buarque de Holanda, e serviu de argumento inicial para um artigo no qual apontava os equívocos históricos contidos no maior símbolo do País: a Bandeira Nacional. Este e tantos outros artigos surpreendentes e pouco conhecidos estão em Sérgio Buarque de Holanda, Escritos Coligidos, dois volumes organizados por Marcos Costa em coedição pela Fundação -Perseu Abramo e Unesp.
Cobrindo um período bastante longo, de 1920 a 1970, os livros reúnem quase 150 artigos, entre inéditos, dispersos ou pouco conhecidos, que permitem a um leitor atencioso acompanhar a fecunda trajetória e a versátil alternância intelectual de Sérgio Buarque entre o crítico literário e o historiador. Pesquisador incansável, ele nunca deixou de escrever para jornais e revistas, ainda quando esteve fora do País – na Alemanha, entre 1929 e 1931 ou lecionando na Itália, entre 1952 e 1954 – ou mesmo quando se encontrava completamente absorvido em preparar seus livros. Daí que uma grande parte dos artigos, reunidos nestes dois volumes, constituem autênticas antecipações dos seus livros clássicos e, em alguns casos, primeiras (e concisas) versões dos seus grandes livros.
Ao comparar a cronologia dos artigos na imprensa com as edições de suas- obras mais importantes, encontramos verdadeiros resumos ou anotações antecipadas de livros como Monções, Caminhos e Fronteiras e, sobretudo, do clássico Raízes do Brasil. É deste último que se reproduz Corpo e Alma do Brasil (Ensaio de Psicologia Social), de 1935, uma rápida síntese prévia, em menos de 20 páginas, do famoso livro que só sairia no ano seguinte.
Lembre-se de que a expressão “homem cordial” foi utilizada pela primeira vez pelo poeta Ribeiro Couto, em carta- ao escritor mexicano Alfonso Reyes, que divulgou a epístola no jornalzinho Monterey, editado pela embaixada do México no Brasil, em 1931. Com o título de El Hombre Cordial, Producto Americano-, Couto definia, em 50 linhas, o “ser cordial” como aquele que portava consigo uma renitente atitude de “disponibilidade sentimental”, comum a todos os povos latino-americanos. Mas, como já foi dito tantas vezes, longe de uma idílica vocação pacífica, para Sérgio Buarque a cordialidade brasileira relacionava-se a tratar a tudo e a todos como próximos ao coração, de forma familiar e nunca destituída de sentimento e emoção. Era uma espécie de recurso para sobreviver em sociedades sem mediações impessoais, ou seja, sociedades onde as leis não nascem da concretude dos costumes e, quando existem, são quase ineficazes. Nelas, o que funciona é o poder de vocação personalista, que se remete às relações familiares, tinhoso e pouco transparente, porque sempre disfarçado de intimidade e de “jeitinhos”.
“Hoje somos apenas um povo endomingado. Uma periferia sem um centro.” Esta era a frase com a qual Sérgio Buarque terminava o esboço de Raízes do Brasil, depois retirada na versão final do livro, talvez devido ao seu tom de iconoclastia risonha. De qualquer forma, ela marcava o encerramento da fase mais irreverente do jovem Sérgio, de engajamento no movimento modernista, entre os anos de 1921 e 1924. “Um rapaz algo excêntrico”, relembra Rodrigo Melo Franco, “que costumava caçar parnasianos pelas avenidas cariocas- com a intenção de provocá-los.”
É desta época, também, o seu primeiro encontro com Blaise Cendrars, quando se apresentou ao intelectual- francês como “o autor de vários livros desconhecidos e o escritor mais inédito- do Brasil”, declinando os títulos dos seus improváveis futuros livros, tais como O Automóvel Adormecido no Bosque, Ypissilone, O Magnífico, A Vida Íntima de Jesus Cristo e o último, ainda mais subversivo para os tradicionalistas, intitulado Rui Barbosa nunca Existiu. Muitos artigos desta fase já revelam a vocação crítica de Sérgio, sobretudo depois de 1926, quando rompe com os modernistas a quem aderira, rejeitando aqueles para quem a cultura brasileira nasceria de um programa intelectual- já delineado ou de mera vontade -ideológica. “Penso que teremos, com certeza, uma arte de expressão nacional. Ela não surgirá, é mais do que evidente, de nossa vontade, muito mais provavelmente, de nossa indiferença”, escreveu em melancólico artigo de 1926.
Muitos escritos denotam que a oposição a esses voluntarismos fornecia as armas para o historiador resistir, com lucidez, tanto ao fascismo quanto ao comunismo, duas grandes panaceias ideológicas a vicejar na década seguinte. O mesmo arsenal apenas se renovaria com a viagem para a Alemanha, em 1929. Como jornalista das agências Havas e United Press, Sérgio entrou em contato com um universo intelectual que só sedimentaria sua cultura relativista e crítica, sempre atenta aos processos de fluidez, de mudança e de transformação histórica. Conheceu o historiador Friedrich Meinecke, que o incentivou a uma leitura mais atenta das obras de Herder, Dilthey, Simmel, Weber e do filósofo italiano Giambattista Vico. Mas também cruzou com jornalistas afinados com a -cultura modernista e com a crítica da cultura de massas, como Siegfried Kracauer-, segundo o qual mais do que o reconhecimento entre os seus, todo bom jornalista deveria assumir o “papel de um estrangeiro em sua própria terra”. Apesar da curta passagem por Berlim, este caldo de cultura aguçou a sensibilidade de Sérgio Buarque para sobrevivências arcaicas e fenômenos tardios de adesão ao capitalismo e à modernidade.
Essa cultura filosófica, ensaiada em famoso debate com o católico Alceu Amoroso Lima, em 1926, reitera-se tanto nos artigos escritos em 1951, a propósito dos filósofos existencialistas, então capitaneados por Sartre, quanto na surpreendente análise da dialética hegeliana, em artigos de 1952, quando resenha o enorme tratado Dialética do Conhecimento, de Caio Prado Jr. Ainda aí, Sérgio Buarque surpreende os leitores pela percepção sutil e pela análise cerrada da dialética hegeliana: “Não há dúvida de que ela apreende o movimento da história, mas um movimento comparável, de certo modo, ao de um veículo que se move, sim, mas sobre trilhos de aço, fixos e irremovíveis”. Mais curioso é que, tanto no caso do pensador católico quanto no do historiador marxista, as conclusões se assemelhem, pois reconhece a atitude insistentemente polêmica dos dois autores: “Esta atitude, principalmente onde não hesita em simplificar até a caricatura as teorias adversas, para melhor contrariá-las, denota um fervor teórico incapaz de se expandir num meio em que não encontre, de antemão, a mesma elevada temperatura”. E, numa agulhada irônica, o historiador, nascido no bairro da Liberdade, concluía: “Noutras palavras, só aos que se acham firmemente convencidos, eles poderão ser realmente convincentes”.
Apesar de não dar nenhuma importância a seus artigos em periódicos, Sérgio Buarque nos deixou escritos penetrantes, sobre os mais variados temas, os quais, em diferentes épocas, serviram para marcar seus posicionamentos críticos, eruditos sem afetação e sempre abertos, porque cheios da sua penetrante e pontual lucidez. Lá estão os textos publicados em 1947 nos quais desmistifica a iconografia heroica dos bandeirantes, mostrando que, ao menos durante as expedições, andavam eles descalços, completamente diferentes da silhueta heroica posteriormente projetada em pinturas e monumentos. Suas observações sobre o nhengatu e a língua geral falada em São Paulo no século XVII, ainda quando se perdem em digressões que contam fofocas deliciosas sobre personagens da história, constituem, até hoje, notáveis indicações de pesquisa.
Também não será preciso muito esforço para rastrear nos artigos alguns dos seus sutis posicionamentos políticos. Como em texto de 1978 no qual, a pretexto de divulgar uma carta inédita de Alberto Torres, adverte que, se este último fosse vivo, não hesitaria em subscrever opiniões como a do jogador Pelé, “para quem o brasileiro não sabia votar”. Termina o artigo com uma estocada irônica: “Por isso mesmo, chega a afirmar (Torres, não Pelé) que deseja um governo para o povo, nunca pelo povo. É a volta de dom Pedro I”. Não era uma leitura oblíqua da inconsistência institucional e do estado discricionário então forjado pela ditadura? Apesar de datados e circunscritos ao ambiente da época na qual foram escritos, são artigos que revelam um escritor com aquela habilidade rara, de se apropriar do vocabulário dos documentos típicos do passado para nuançar conceitos abstratos, atingindo o universo mais sublime do conhecimento, que nos acostumamos a chamar de história.