quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Natal sem entulho

Por Iara Biderman, da Revista Equilíbrio

Eliminar excessos para começar o ano mais leve é um dos clichês da hora: quase ninguém discorda, tampouco põe em prática. E fica todo mundo na mesma, depois da overdose de compras e presentes. Mesmo para quem já adotou uma vida simples, a época é um desafio, diz o empresário americano Dave Bruno, 40. Autor de "100 Thing Challenge" (O Desafio das Cem Coisas) e da proposta de viver com poucos itens, ele dá ideias para aliviar a "bagagem".
 
Qual é o maior desafio do Natal para você?

Dave Bruno - É nos sentirmos obrigados a dar algo especial, que mostre à pessoa "Gastei um bom dinheiro com seu presente". Dar e receber presentes é bom, mas, nessa época, parece que a única forma de expressar afeto é por meio de objetos. O desafio é dar coisas simples. Mas, também, saber recusar presentes em excesso de forma gentil. É difícil, porque as pessoas ficam ofendidas se você diz não querer presentes.

A crise econômica pode ajudar a mudar hábitos de consumo?

Se a crise nos ensinar a ser mais responsáveis e éticos com a economia, pode trazer benefício. Mas já vimos outras situações em que as pessoas esquecem essas lições e voltam a consumir loucamente.

Por que é tão difícil mudar?

Muita gente pensa: "Amanhã, vou doar minhas coisas e me tornar uma pessoa diferente". Não funciona. É mais fácil pensar que, ao longo de um ano, você vai viver com menos e continuar sendo alguém comum. Sugiro eliminar um pouco de cada vez. Comece pelo armário: escolha um conjunto de roupa diferente para usar a cada dia, por duas semanas, e passe dois meses só com essas peças. Assim é fácil perceber o que você precisa e que não é tão difícil viver com menos.

Na sua lista de cem coisas, você contou todos os seus livros como um só item. Isso pode?

Sem flexibilidade, não dá para vencer o desafio. Se há um grupo de objetos muito significativos para você, pode contar como um item só.

Mesmo se for uma coleção com cem pares de sapatos?

Não há nada de errado em gostar de sapatos, eles são maravilhosos. O que você precisa pensar é o que espera daquele monte de coisas.

Você fica mais feliz vivendo com menos coisas?

Quando você se livra do excesso, fica feliz. Depois passa, a vida continua. Isso é o que faz muita gente desistir. Parar de acumular coisas pode ser bom para o planeta, mas você não vai virar um herói só porque limpou seu armário.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

A moral é medida em dinheiro?

Por Marcia Tiburi, da Revista Cult

A tradição teológica e filosófica nunca conseguiu explicar o “mistério da iniquidade”, a existência do mal como potência do desejo e da ação humanas.

Ora, a corrupção é o mal do nosso tempo. Curiosamente, ela aparece como uma nova regra de conduta, uma contraditória “moral imoral”. Da governalidade aos atos cotidianos, o mundo da vida no qual ética e moral se cindiram há muito tempo transformou-se na sempre saqueável terra de ninguém.

Como toda moral, a corrupção é rígida. Daí a impossibilidade do seu combate por meios comuns, seja o direito, seja a polícia. Do contrário, meio mundo estaria na prisão. A mesma polícia que combate o narcotráfico nas favelas das grandes cidades poderia ocupar o Congresso e outros espaços do governo onde a corrupção é a regra.

Mas o problema é que a força da corrupção é a do costume, é a da “moral”, aquela mesma do malandro que age “na moral”, que é “cheio de moral”. Ela é muito mais forte do que a delicada reflexão ética que envolveria a autonomia de cada sujeito agente. E que só surgiria pela educação política que buscasse um pensamento reflexivo.


Pobre, mas honesto

O sistema da corrupção é composto de um jogo de forças do qual uma das mais importantes é a “força do sentido”. É ela que faz perguntar, por exemplo, “como é possível que um policial pobre se negue a aceitar dinheiro para agir ilegalmente?” O simples fato de que essa pergunta seja colocada implica o pressuposto de que uma verdade ética tal como a honestidade foi transvalorada. Isso significa que foi também desvalorizada.

Se a conduta de praxe seria não apenas aceitar, mas exigir dinheiro em troca de uma ação qualquer na contramão do dever, é porque no sistema da corrupção o valor da honestidade, que garantiria ao sujeito a sua autonomia, foi substituído pela vantagem do dinheiro.

Mas não somente. Aquele que age na direção da lei como que age contra a moral caracterizada pelo “fazer como a grande maioria”, levando em conta que no âmbito da corrupção se entende que o que a maioria quer é “dinheiro”.

Verdade é que a ação em nome de um universal por si só caracteriza qualquer moral. É por meio dela que se faz o cálculo do “sentido” no qual, fora da vantagem que define a regra, o sujeito honesto se transfigura imediatamente em otário.

Se a moral é medida em dinheiro, não entregar-se a ele poderá parecer um luxo. Mas um contraditório luxo de pobre, já que a questão da honestidade não se coloca para os ricos, para quem tal valor parece de antemão assegurado.

Daí que jamais se louve nos noticiários a honestidade de alguém que não se enquadra no estereótipo do “pobre”. Honesto é sempre o pobre elevado a cidadão exótico. Na verdade, por meio desse gesto o pobre é colocado à prova pelo sistema. Afinal ele teria tudo para ser corrupto, ou seja, teria todo o motivo para sê-lo. Mas teria também todo o perdão?

O cidadão exótico – pobre e honesto – que deixa de agir na direção de uma vantagem pessoal como que estaria perdoado por antecipação ao agir imoralmente sendo pobre, mas não está. A frase de Brecht seria sua jurisprudência mais básica: “O que é roubar um banco comparado a fundar um?”.

Ora, sabemos que essa “moral imoral” tem sempre dois pesos e duas medidas, diferentes para ricos e pobres. No vão que as separa vem à tona a incompreensibilidade diante do mistério da honestidade. De categoria ética, ela desce ao posto de irrespondível problema metafísico.

Pois quem terá hoje a coragem de perguntar como alguém se torna o que é quando a subjetividade, a individualidade e a biografia já não valem nada e sentimos apenas o miasma que exala da vala comum das celebridades da qual o cidadão pode se salvar apenas alcançando o posto de um herói exótico, máscara do otário da vez?

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Évora: O sentir mais profundo da música

Por Christiane Marcondes, do Portal Vermelho

Em Todos os Homens são Mortais, a escritora Simone de Beauvoir narra a vida do Conde Fosca, personagem do século XIII que toma o lendário elixir da vida eterna. No século XX, já imerso em tédio e decepção, Fosca conhece uma vaidosa atriz que descobre sua sina e passa a ter uma ambição além das materiais: quer que ele a ame, assim conquistará uma fama que ultrapasse o tempo, permanecendo para sempre na lembrança de um imortal.

Regine, a personagem, não conquista o conde e morre ignorando que a arte é imortal por sua própria natureza. A definição é de Bakunin: “a verdadeira arte é aquela através da qual perpassam rumores de futuro”.

É um bom critério para julgar o contemporâneo em relação ao eterno. Quantos atores, músicos, artistas vivem a fama e desaparecem no rastro do tempo ainda vivos ou após a morte? Outros estão aqui ainda agora e jamais sairão de cena, permanecem com uma vivacidade a toda prova, é o caso de Cesária Évora. 

Cesária por Cesária

Mas a imortalidade de um talento não chega de mãos beijadas. A imprensa e a própria história não cultuam obscuridade e fracasso. Por isso  é que as honrarias que a morte lega aos escolhidos da arte geralmente não fazem menção aos sacrifícios que a trajetória em direção à consagração exigem. 

Para Cesária, os aplausos da crítica e a luz dos holofotes da fama chegaram tarde, após 1985 e um período de 10 anos afastada da carreira; "Vivia com minha mãe, que me sempre me amparou", conta no vídeo a seguir, com a tranquilidade de quem nunca se iludiu com outra ambição a não ser dar corpo e voz a uma vocação natural e irrecusável. Confessa que viveu tempos difíceis.

E que não foi Cabo Verde, terra natal, mas a França, onde deixou muitos fãs e boas lembranças, que elevou seu nome ao panteão dos eleitos: "Até aí, talvez, não tenha encontrado ninguém que me ajudasse", tenta explicar.

Faz referência a mestres portugueses, que lhe ensinaram muito, e arrisca palpite de sucessores seus na sua terra, como a cantora Lura.

Quando confrontada com a afirmação de que ela cantava mais por amizade do que por dinheiro, reage sem alarde: "Quando a gente faz uma apresentação, espera ser paga por ela. Agora, a gente é pouco exigente, contenta-se com um envelope fechado que nos entregam depois de cantarmos", conta.

Na época da entrevista, estava às vésperas de um grande espetáculo em Lisboa. Seria diferente dos outros? "Será igual", responde sem titubear, sem maiores expectativas: "A minha voz mudou, mas a prática me faz cantar melhor, é técnica, só isso", resume.

Conclui a entrevista dizendo que, quando tiver que parar, será de vez: "Não quero sentir saudades do palco".

Cesária pelos amantes da sua música

A cantora de Cabo Verde faleceu no sábado, será enterrada nesta terça (20), mas sua obra não passará. E ela já começa a trilhar nova carreira, primeiro na lembrança dos próximos, que aqui a recordam, depois descoberta por gerações que ainda virão. Sua música está em toda parte onde se buscar. Viva a tecnologia!

Nação de pés descalços

"A primeira vez que chorei em Cabo Verde, há quase vinte anos, foi por ter ouvido a voz de Cesária Évora, que se apoderou de mim como um furacão de alma e sentimento. Tinha acabado de chegar ao Mindelo e pela mão do músico Vasco Martins fomos a um bar de amigos, para um serão tranquilo de boa conversa. Estava sentado, distraído com uma qualquer leitura, quando aquele espaço foi invadido por uma voz única, grave, possante. O disco era o “Miss Perfumado”, o CD que haveria de catapultar Cesária para a fama internacional, por via do mercado francófono e a transformaria na maior embaixadora da história do arquipélago, hoje no mapa global muito por responsabilidade do retumbante e espantoso sucesso da sua impar carreira. 

No saudoso Café Royal, da mítica Rua de Lisboa, para onde ela ia quase diariamente, numa época em que ainda não tinha que viajar constantemente, com tournês que a obrigavam a ficar tão longe da sua cidade querida, a sua chegada de carro, sempre com um condutor próprio, e a entrada com os pés descalços no estabelecimento, eram dignos de um cerimonial que nunca mais esquecerei. 

A mesa onde se sentava Cesária ia-se enchendo e esvaziando, à medida que ela recebia amigos, familiares, conhecidos ou curiosos. Pagava bebidas a todo o mundo, dava dinheiro aos pedintes, brincava constantemente com aqueles que a rodeavam, muitos já adivinhando que ali estava uma fonte inesgotável de talento e projecção. Na sua casa, sempre tinha a porta aberta, com o mesmo espírito generoso, próprio de uma grande matriarca. 

Hoje, depois do choque inicial, a voz de Cesária Évora ecoa por toda a cidade do Mindelo. Nas ruas, nos cafés, nos bares, nos carros, nas vozes das pessoas. Um mendigo grita no centro histórico do Mindelo: Cesária já morrê! Hoje, Cabo Verde, é uma Nação que se curva, de pés descalços, perante a sua maior Diva."

(João Branco, diretor do Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo)

Saudade com tinta e pincel

Como na tela de um quadro, a tua voz pinta estas paisagens perdidas e os sentimentos que animam o povo das tuas ilhas. Agradeço à vida o privilégio de te ter conhecido, tu que pela tua voz nos fizeste existir perante os olhos do mundo. Sentimos terrivelmente a tua falta.
Sodade, sodade, sodade..."

(Mayra Andrade, cantora)

Um país empobrecido

“Recebi a notícia com profunda tristeza. Cabo Verde fica mais pobre, da mesma forma que ficou mais rica quando ela nasceu, porque nasceu uma estrela que não se apagará, ficará sempre acesa, a brilhar através da sua música. 

Espero que todos os cabo-verdianos, sobretudo os mais jovens, dêem valor ao que ela nos deu; muitos não têm noção do que ela nos ofereceu. A Cesária levou-nos de uma parte do mundo para a outra, levou o nome de Cabo Verde por todo o mundo e, quando ela estava em palco, todo o cabo-verdiano estava lá com ela. Ela levou a morna, e o sorriso, e o calor do Mindelo, e ficará na nossa memória. Estamos profundamente tristes. Que descanse em paz. Todo o mundo da música ficou mais pobre, mas um artista, um poeta, nunca morre.”

(Tito Paris, músico)

A dor que se espera não dói menos

“É uma notícia triste, embora esperada. A Cesária já não estava bem há algum tempo, mas quando a notícia chega nunca estamos preparados. O extraordinário sucesso internacional da Cesária mudou por completo a forma como a música cabo-verdiana passou a ser acolhida no mundo e, dessa forma, mudou a própria música cabo-verdiana. Mas mais do que isso, julgo que ela foi muito importante para todo o mundo da música em língua portuguesa, porque ela abriu caminhos para todas as outras culturas.

O que foi extraordinário nela foi ter sido capaz de dar voz a todo esse património que criou. Lembro-me de a ter entrevistado para o Público no início de tudo, antes do sucesso em França. Ela fazia muitos concertos, sobretudo para cabo-verdianos, lembro-me de um na Voz do Operário, para muito pouca gente. E ela já era todo aquele património extraordinário de Cabo Verde, o que explica o seu sucesso era o facto de ela ser muito autêntica naquilo que fazia.”

(José Eduardo Agualusa, escritor)

Perfeição musical, referência humana

“Soube esta manhã, um irmão que vive em Cabo Verde ligou-me a dar a notícia. Fiquei atónito: nos últimos tempos tinha-me dedicado, com uma alegria tremenda, a escrever sobre a Cesária, a sua faceta de artista e pessoal, porque muita gente me perguntava sobre ela. Por todos os contactos que tinha, a informação era que a Cesária estava bem, tranquila, a repousar. Eu imaginava-a à espera da sua passagem de ano, que para nós é uma festa muito mais importante do que o Natal. E agora vem esta surpresa. Ouço as reações, todos falam sobre esta perda irreparável, mas nem consigo pensar nisso, só consigo pensar numa enorme tristeza.

Para mim a Cesária sempre foi o mundo. Cresci numa família de músicos, e ela sempre foi uma grande referência, a Cesária e a minha avó tinham uma relação de grande amizade. Cresci com a ideia que a Cesária era quase a perfeição ao nível musical. Mas eu adorava ir vê-la quando ela ia cantar aem qualquer espaço por causa da sua pessoa, da sua maneira brincalhona. Era isso que eu adorava antes de saber o que a música dela representava. Ela é uma referência incontestável em termos musicais, mas para mim é uma referência humana, absolutamente forte e inspiradora e que eu não quero nunca esquecer.”

(Flávio Hamilton, ator)

O sentir mais profundo da música

Artista singular, que tão bem soube exprimir a cultura e a tradição musical da sua terra, muito para além das fronteiras da Língua Portuguesa, a memória de Cesária Évora é merecedora da nossa elevada consideração.

É com pesar que presto a minha homenagem a Cesária Évora, cujo desaparecimento deixa de luto não só a nação cabo-verdiana mas toda a comunidade da lusofonia, ao mesmo tempo que nos lega uma saudade patente na memória de quem a ouviu cantar o sentir mais profundo da música do seu país, um patrimônio que continuará a ser partilhado por todos nós.

(Cavaco Silva, Presidente da República)


Deusa feita música

"O desaparecimento físico de Cesária deixa-nos sem palavras adequadas e seguras para exprimirmos a funda dor que atravessa o nosso ser. Não se trata aqui de dizer coisas exigidas pelo protocolo ou pela nossa condição de Presidente da República. Cize era - é - única, ímpar, na voz que sobrevoa o pequeno espaço das ilhas e paira sobre o continente vasto de uma nossa alma que rejeita ser feita de pedaços de cada um de nós. Na impossibilidade de retribuirmos a Cesária o que ela nos deu, apenas podemos aprisioná-la nos nossos corações, torná-la deusa, feita música, de um país sofrido, combalido mas eternamente grato a quem tanto fez para dar razão aos que um dia disseram "meu país é uma música".

(Jorge Carlos Almeida Fonseca, Presidente da República de Cabo Verde)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Enquanto o Chaplin dos games não vem

Por Gabriela Longman, da Ilustrada

O especialista em estudos visuais Josep Català, professor da Universitat Autònoma de Barcelona, defende que a interação possível entre espectador e narrativa pode transformar os jogos de videogame no grande suporte expressivo das próximas décadas, assim como foi a sétima arte ao longo do século 20.

Quando o cinema surgiu, era coisa de mágico, artimanha do demônio, algo a se espiar com desconfiança. Atração de feiras e parques de diversões, dividia espaço com dançarinos anões, animais adestrados, espelhos deformadores de corpo e outras distrações que faziam a alegria das camadas populares em fins do século 19. Mulheres e homens ditos refinados não o frequentavam.

Apesar do sucesso imediato no grande "museu de novidades", o cinema carregava certa aura vulgar num mundo pautado pelas artes visuais e pela literatura. Àquela altura, ninguém poderia supor que a técnica se tornaria a principal plataforma artística narrativa do século 20.

O espanhol Josep Català, professor de direção cinematográfica e estética da imagem na Universitat Autònoma de Barcelona, sugere que fenômeno análogo esteja em curso em relação aos videogames. Vistos ainda pela maior parte das pessoas como brinquedos de adolescentes que buscam apenas dar tiros, pular de fase ou salvar princesas, a interface dos jogos permite uma interação entre o espectador e a narrativa que, segundo o teórico, pode transformar o formato no grande suporte expressivo das próximas décadas.

"'Anna Kariênina' foi escrita no século 19, virou filme no século 20 e poderia perfeitamente se tornar um jogo de videogame no século 21", disse o teórico, durante recente visita ao Brasil para ministrar palestras sobre estudos visuais, tema de seu livro "A Forma do Real" [Summus Editorial].

Os estudos visuais representam para Català uma ampliação da noção de história da arte. Estendem suas fronteiras para além dela e consideram manifestações visuais de naturezas mais amplas -campanhas publicitárias, produtos audiovisuais de toda espécie. Lugar de encontro entre "o real, o imaginário, o simbólico e o ideológico", as imagens e as plataformas de interface são uma forma, talvez a única forma, de adentrar a subjetividade contemporânea.

O processo de multiplicação de imagens na sociedade em que vivemos tende a deixar as pessoas menos imaginativas?

Josep Català - A princípio, quando comecei a estudar as questões da imagem, essa era a minha tese. Pensava que a imagem detinha a imaginação na comparação com a literatura, porque aquele que lê pode imaginar, enquanto a imagem já nos oferece essa passagem por feita. Agora já não vejo assim. A imagem não é um muro que bloqueia a imaginação, pelo contrário: está cheia de impulsos e estímulos que projetam a imaginação para mais além.

É possível ficar só com a superfície da imagem, contentar-se com ela, até porque a imaginação é um procedimento que requer esforço, não se produz automaticamente. Penso, então, que há vários tipos de imagem, algumas mais imaginativas e outras que de certa forma fecham as portas.

A literatura foi fonte para modos de comportamento no século 19, tal e qual o cinema inspirou comportamentos culturais do século 20. Podemos antever um pouco os suportes que pautam nosso comportamento na chamada nova era?

Há um fenômeno bem concreto. O século 19 produziu um largo processo de letramento. Com a alfabetização e introdução no mundo literário nas zonas urbanas mais desenvolvidas, o romance se converte no instrumento de socialização por excelência e o mesmo acontece com o cinema. Penso que, neste momento, os videogames estariam prestes a assumir esse posto. Existem a internet e todas as novas tecnologias, mas, de todas, a mais capaz de incorporar a condição emocional e socializante da narrativa é o videogame.

Ali há uma história que se vive, como se vivia no cinema ou na literatura, e poderíamos pensar inclusive em adaptações. "Anna Kariênina", de Tolstói, foi escrita no século 19, virou filme no século 20 e poderia perfeitamente virar um jogo para videogame.

Quais os indícios desse processo?

Ainda não vimos isso porque a indústria, por enquanto, atira para outro lado, mas dá perfeitamente para pensar. Por enquanto, um videogame dificilmente consegue igualar a complexidade de um livro ou de um filme, mas temos que pensar que, no início do cinema, este também não era capaz de nada muito elaborado. Uma grande parcela da população torceu o nariz para o cinema até os anos 40, 50, sem se dar conta de que ali havia algo muito importante.

Quando o cinema começou, as pessoas punham o olho no cinematógrafo e viam um casal que dava um beijo e nada mais. Na época, se alguém dissesse que ali havia um novo parâmetro artístico, seria acusado de louco. E, no entanto, o cinema chegou num ponto em que é capaz de expressar a mesma complexidade de um grande romance.

É preciso então parar, com calma, e ver o videogame como forma simbólica -a possibilidade de criação de mundos imaginários e interface do jogador com esses mundos. A tendência é a de uma maior participação no mundo narrativo, de tal forma que a identificação, que se estabelecia de forma passiva, passe à forma ativa. Essa é a mudança que poderia haver, mas que ainda não se deu.

Como se estivéssemos esperando por um Chaplin dos videogames...

Sim, exatamente. O exemplo de Chaplin é muito bom, porque Chaplin, de cara, move as massas, faz-se extremamente popular. Também temos que ver que esses novos meios não anulam os anteriores, mas vão se sobrepondo. Ler um livro, ver um filme e participar de um game são experiências distintas e até complementares.

Por enquanto, temos visto com cada vez mais frequência no Brasil a adaptações de grandes romances para os quadrinhos...

As histórias em quadrinhos são um meio poderoso que, por muito tempo, foi visto como infantil. Nos últimos anos surgiram as "graphic novels" com histórias pessoais, memórias, investigações. Há uma densidade dos personagens combinadas com potência visual.

Do ponto de vista estrutural, a HQ se adianta ao cinema. O cinema é um conjunto de imagens que se sobrepõem de modo que a arquitetura cinematográfica não fica visível, enquanto a HQ traz a montagem à tona. No momento em que os desenhistas se deram conta de que tinham uma página para brincar, começaram a inventar novas formas de articulação, muito mais ousadas do que as velhas tirinhas que imitam quadros cinematográficos. Há uma capacidade de interação tremenda, que o próprio cinema agora começa a descobrir, quando reparte a tela e brinca com esses formatos.

Estamos vivendo a transição entre uma geração que cresceu com a televisão -um meio passivo- para uma geração que cresceu com internet, que é interativa. A tendência é que seja uma geração mais criativa, mais ousada?

Eu diria que sim. A geração da televisão, estamos vendo na Europa, é bastante passiva. Há reações ao que está acontecendo, mas também há uma passividade geral diante da crise. As novas tecnologias estão incentivando uma maior participação, mas que ainda não está bem desenvolvida. O potencial da internet como fonte de conhecimento ainda é muito pouco aproveitado.

O sr. costuma falar de uma crise no modelo universitário corrente. De onde ela deriva?

Penso que existe na Europa, mas também em outras partes do mundo, uma espécie hegemonia da mentalidade científica. Campos mais imaginativos têm que se submeter a funcionamentos que não lhes são próprios, com resultados mensuráveis e quantificáveis. Produziu-se uma indústria de produção de conhecimento "útil", enquanto para uma pesquisa de caráter imaginativo, que ninguém sabe ao certo onde vai dar, não há verba. Formarmos alunos para o que as empresas querem nesse momento, mas deveríamos formar alunos capazes de dizer às empresas o que elas vão precisar daqui a cinco ou seis anos. A universidade deveria estar alimentando a sociedade de ideias, e não está.

O sr. opõe duas formas de representação do real, o simulacro de Baudrillard e o espetáculo de Guy Debord. Qual dos dois serve melhor para interpretar a sociedade contemporânea?

Os dois eram muito apocalípticos, mas Baudrillard foi um pouco mais longe. O conceito de simulacro vê sentido na criação de imagens novas, que agora não precisam mais de um referente "real". O pensamento de interface parte disso. A interface é o dispositivo em que, na medida em que atuamos, mudamos a plataforma de modo seja possível continuar. É por aí que estamos indo.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Niemeyer desafia as linhas do tempo e completa 104 anos


Do Portal Vermelho

O homem que desafia as linhas retas e o tempo. Oscar Niemeyer completou 104 anos ontem (15). O famoso arquiteto brasileiro produziu mais de 600 obras no mundo inteiro, entre elas Brasília. Para marcar a data, Niemeyer apresentará os projetos que desenhou para a sede da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) em uma nova edição da revista que edita.

"Como sempre a comemoração será limitada a seus amigos mais íntimos, em casa, mas, para não deixar o dia passar em branco, Niemeyer fez coincidir o aniversário com o lançamento da 11ª edição da (revista) Nosso Caminho", disse Luiz Otavio Barreto Leite, um de seus colaboradores.

A revista, outra iniciativa de Niemeyer para continuar ativo e expor suas ideias, destacará nesta edição os planos da sede da Universidade Latino-Americana, que está sendo construída em Foz do Iguaçu, na fronteira com Argentina e Paraguai.

"A revista incluirá um texto inédito sobre o Haiti do (escritor uruguaio) Eduardo Galeano e uma extensa homenagem a Vinícius de Moraes, mas no que Niemeyer mais trabalhou foi na apresentação de suas ideias para a Universidade Latino-Americana e dos diferentes detalhes da obra", antecipou seu colaborador.

De acordo com Leite, "se trata de um projeto pelo qual Niemeyer tem muito apreço" e com o qual quer desenvolver uma velha aspiração do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da atual governante Dilma Rousseff.

O projeto para a universidade, que ocupará 40 hectares na sede de Itaipu, a hidrelétrica compartilhada por Brasil e Paraguai, inclui seis edifícios, alguns já em construção, destinados à reitoria, biblioteca, anfiteatro, restaurante, laboratórios e salas de aula.

Segundo o Governo Federal, a universidade terá capacidade para dez mil estudantes, metade brasileiros e metade de outros países latino-americanos, e oferecerá cursos nas áreas de ciências e humanidades, tanto em espanhol como em português.

A revista Nosso Caminho também apresentará em sua nova edição outros dois projetos desenvolvidos pelo arquiteto nos últimos meses. O primeiro é uma residência particular na Inglaterra que Niemeyer, nascido no Rio de Janeiro em 15 de dezembro de 1907, quer transformar em um modelo da arquitetura moderna.

O outro é o Teatro Musical Rio's, um enorme espaço destinado a shows e musicais, situado no Aterro do Flamengo, que ainda precisa do aval do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e da Prefeitura do Rio para sair do papel.

"A dedicação às diferentes obras que lhe encomendaram, à revista, a seus encontros com amigos para falar de filosofia e a outras atividades é uma forma de mostrar que quer seguir ativo e que não pensa em se aposentar", comentou o colaborador de Niemeyer.

Há exatamente um ano, quando completou 103 anos, o arquiteto de Brasília surpreendeu ao apresentar a letra de um samba que compôs com o enfermeiro Caio Almeida e o músico Edu Krieger. A composição foi a forma que encontrou para se distrair durante o período em que esteve internado em um hospital pelos problemas de saúde que sofreu no ano passado.

Por ocasião do 104º aniversário do artista, o recém criado Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro realizará amanhã sua primeira reunião em homenagem a Niemeyer, um dos impulsores do órgão.

Outra homenagem acontecerá no Parque Dona Lindu, projetado por Niemeyer no Recife, onde será inaugurada nesta quinta-feira uma exposição retrospectiva de sua obra que incluirá esculturas, maquetes e desenhos.

Se o 103º aniversário do arquiteto esteve marcado pela inauguração de um dos edifícios que desenhou para o Centro Cultural Oscar Niemeyer em Avilês, na Espanha, o 104º o estará por mudanças na administração do espaço e a possível retirada do nome do brasileiro do complexo.

O Governo do Principado de Astúrias anunciou no meio de uma polêmica que assumirá a gestão do Centro, até agora administrado pela Fundação Oscar Niemeyer, e por isso o local terá que mudar de nome.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Nova produção cinematográfica paraibana "Onde Borges tudo vê" será lançada neste sábado (17) em CG

Universo borgeano - Reflexões existenciais, intimistas e surrealistas em cena

Da Assessoria do filme
Crédito da foto: Wagner Pina

Conflitos humanos e literatura permeiam o longa-metragem “Onde Borges Tudo Vê”, a mais nova obra do diretor Taciano Valério que terá seu lançamento neste sábado (17) no Cinesercla - Boulevard Shopping, localizado na Avenida Prefeito Severino Bezerra Cabral, 1050 Campina Grande, às 10h30.

O filme é baseado em uma livre adaptação do conto homônimo publicado no livro "Fragmentos de um Olhar" lançado em 2002 de autoria do próprio Taciano. Com brilhantes atuações de atores paraibanos, premiados e reconhecidos nacionalmente, como Everaldo Pontes (Napoleão), Verônica Cavalcanti (Yara), Fabiano Raposo (Romão) e Paulo Philippe (Vladimir). A trama se passa através dos olhos de um singelo hamster (Borges). Os personagens interagem a partir de suas particularidades e problemáticas numa atmosfera cotidiana usando locais próprios de Campina Grande, como a Rua Maciel Pinheiro e zona rural de Lagoa de Roça, o filme em seu todo é legitimamente paraibano, tanto no elenco como na equipe de produção e locações filmadas.

O longa-metragem contextualiza em seu enredo a história do falecido poeta argentino Jorge Luis Borges. Importante expoente da literatura latino-americana, sua obra se destaca por abordar temáticas como filosofia, metafísica, mitologia e teologia, em narrativas fantásticas onde figuram os "delírios do racional", expressos em labirintos lógicos e jogos de espelhos, abrangendo o caos que governa o mundo e o caráter de irrealidade em toda a literatura. A partir dessa premissa, Taciano Valério cria em seu longa-metragem um universo tipicamente borgeano inserido no ventre da vida urbana campinense. 

A câmera contemplativa leva a perspectiva do filme tanto para reflexões existenciais e intimistas, quanto para aquelas mais subjetivas e surrealistas. Na questão existencialista, o cotidiano de Napoleão, um homem que vive para a literatura, desloca o nosso olhar diante da labuta, paciência, silêncio e isolamento. Na forma intimista a câmera entra em contato com detalhes do espaço físico e na perspectiva surreal os sonhos aparecem através de memórias literárias.

O filme, que conta com o incentivo do FIC (Fundo de Incentivo a Cultura – Augusto dos Anjos) sendo aprovado em 2008, foi gravado em duas etapas, pois sua ideia inicial era para um curta-metragem, virando depois um longa-metragem, o primeiro a ser finalizado nessa retomada que o cinema paraibano vem vivendo. 

A primeira etapa foi gravada em meados de dezembro de 2010 e a segunda em 29 de abril do corrente ano. A equipe técnica conta com nomes já conhecidos do cenário artístico da Paraíba, a exemplo de Amazile Vieira na Produção Executiva, Luciano Mariz e Danielle Freire na Direção de Produção, Breno César na Direção de Fotografia, Allanclerystton Pequeno na Direção de Som.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Por que e para que direitos humanos?

Por Paulo César Carbonari, doutorando e professor de Filosofia

Em 10 de dezembro de 1948 a Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) proclamava a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Documento fundacional dos anseios de respeito à dignidade humana, de justiça, de paz e de solidariedade. Em razão desse fato histórico é que esta data é anualmente celebrada no mundo inteiro como o Dia Mundial dos Direitos Humanos. Mas, por que, 63 anos depois, falar de direitos humanos? Para que direitos humanos?

Antes de enfrentar as questões indicadas, uma breve contextualização sobre a elaboração da Declaração. Foi longa e exigiu muitos debates, enfrentou muitas controvérsias e resistências, chegou ao texto que conhecemos depois de muitas votações. A elaboração do documento iniciou-se na sessão plenária da Comissão de Direitos Humanos (CDH/ONU), de janeiro/fevereiro de 1947. Foi conduzida por um comitê de elaboração do qual participaram representantes de oito países (Austrália, Chile, China, EUA, Franca, Líbano, Reino Unido e União Soviética).

A primeira minuta do texto foi anunciada na sessão de dezembro de 1947. Recebeu sugestões até a sessão da CDH/ONU realizada em maio de 1948, que trabalhou até 16 de junho daquele ano para finalizar o texto que apresentou ao Conselho Econômico e Social. Por sua vez, o Conselho o encaminhou para a Assembleia Geral em agosto. O texto foi analisado na terceira Assembleia Geral, que funcionou em Paris de setembro a dezembro de 1948. Foram 1400 votações para que o texto chegasse ao plenário.

Na sessão de 10 de dezembro de 1948, o plenário promulgou o texto que conhecemos depois de votação que registrou 48 votos a favor, nenhum contra, oito abstenções e duas ausências. A Declaração Universal dos Direitos Humanos saiu a público através da Resolução 217-A (III) da Assembleia Geral da ONU.

Austregésilo de Athayde, representante do Brasil, foi escolhido para ser o orador responsável pela apresentação do texto para a Assembleia, em 10 de dezembro. Em seu discurso, declarou que o documento não resultara da imposição de “pontos de vista particulares de um povo ou de um grupo de povos, nem doutrinas políticas ou sistemas de filosofia” e continuou dizendo que “a sua forca vem precisamente da diversidade de pensamento, de cultura e de concepção de vida de cada representante. Unidos formamos a grande comunidade internacional do mundo e é exatamente dessa união que decorre a nossa autoridade moral e política”.

Agora vamos às questões. Primeiro para tratar de explicitar o porquê dos direitos humanos. Esta questão pode ser enfrentada se lembrarmos de que: 1) milhões de seres humanos ainda não vivem em condições humanas e humanizadas – existem “vítimas” e excluídos; 2) seres humanos são/querem ser sujeitos de direitos – exigem a dignidade como valor intrínseco; e 3) somente em relações livres, justas e respeitosas há humanização – se constrói a dignidade e em dignidade e se pode realizar os direitos humanos – mas ainda não as vivemos significativamente.

Agora vamos tratar da finalidade, do para que dos direitos humanos. Esta questão pode ser compreendida se tomarmos em conta ao menos os seguintes aspectos: 1) direitos humanos existem para promover e proteger a dignidade de cada uma e de todas as pessoas; 2) direitos humanos existem para enfrentar todo tipo de vitimização, de exploração, de discriminação, de desigualdade; e 3) direitos humanos existem para gerar animar a luta para garantir acesso e usufruto dos bens necessários à vida boa e para promover o reconhecimento de cada pessoa como quer ser e não como as outras gostariam que ela fosse.

As razões aduzidas para justificar os direitos humanos e para indicar sua finalidade continuam desafiantes nos dias atuais, assim como foram no momento da proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Por isso é que cada pessoa e a sociedade como um todo estão chamadas à reflexão para que os direitos humanos, mais do que serem a lembrança de um dia, sejam a ação de todos os dias. Este é o compromisso que se renova neste mês de dezembro de 2011.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Você está se tornando uma máquina humana?

Por Eliane Brum, da Revista Época

Pedro – o nome é fictício porque ele não quer ser identificado – é um cara por volta dos 40 anos que adora o seu trabalho e é reconhecido pelo que faz. É casado com uma mulher que ama e admira, com quem tem afinidade e longas conversas. Juntando os fundos de garantia e algumas economias os dois compraram um apartamento anos atrás e o quitaram em menos de um ano. Este é o segundo casamento dele, e a convivência com os dois filhos do primeiro é constante e marcada pelo afeto. Ao contrário da regra nesses casos, a relação com a ex-mulher é amigável. Pedro tem vários bons amigos, o que é mais do que um homem pode desejar, acha ele, porque encontrar um ou dois bons amigos na vida já seria o bastante, e ele encontrou pelo menos uns dez com quem sabe que pode contar na hora do aperto. A vida para Pedro faz todo sentido porque ele criou um sentido para ela.

Ótimo. Ele poderia ser personagem de uma daquelas matérias sobre sucesso, felicidade e bem-estar. Mas há algo estranho acontecendo. Algo que pelo menos Pedro estranha. Há dois anos, Pedro toma Lexapro (um antidepressivo), Rivotril (um ansiolítico, tranquilizante) e Stilnox (um hipnótico, indutor de sono). Dou os nomes dos remédios porque os psicofármacos andam tão populares que se fala deles como de marcas de geleia ou tipos de pão. E o fato de nomes tão esquisitos estarem na boca de todos quer dizer alguma coisa sobre o nosso tempo.

Pedro conta que a primeira vez que tomou antidepressivo, anos atrás, foi ao perder uma pessoa da família. A dor da perda o paralisou. Ele não conseguia mais trabalhar. Queria ficar quieto, em casa, de preferência sem falar com ninguém. Nem com a sua mulher e com os filhos ele queria conversar. Pedro só queria ficar “para dentro”. E, quando saía de casa, sentia um medo irracional de que algo poderia acontecer com ele, como um acidente de carro ou um assalto ou ser atingido por uma bala perdida. Ele mesmo pediu indicação de um bom psiquiatra a uma amiga que trabalha na área. Pedro sentia que estava afundando, mas temia cair na mão de algum charlatão do tipo que receita psicofármacos como se fossem aspirinas e acredita que tudo que é do humano é uma mera disfunção química do cérebro.
 
O psiquiatra era sério e competente. Ele disse a Pedro não acreditar que ele fosse um depressivo ou que tivesse síndrome do pânico, apenas estava em um momento de luto. Precisava de tempo para sofrer, elaborar a perda e dar um lugar a ela. Receitou um antidepressivo a Pedro para ajudá-lo a sair da paralisia porque o paciente repetia que precisava trabalhar. A licença em caso de luto – dois (!!!!) dias, segundo a legislação trabalhista – já tinha sido estendida por um chefe compreensivo. Por Pedro ser muito bom no que faz recebera o privilégio de duas semanas de folga para se recuperar da perda de uma das pessoas mais importantes da vida dele. Pedro não queria “fracassar” nessa volta. E não “fracassou”. Com a ajuda do antidepressivo, depois de algumas semanas ele voltou a produzir com a mesma qualidade de antes. Três meses depois da morte de quem amava, ele já voltara a ser o profissional brilhante.

Pedro tomou o antidepressivo por cerca de um ano, com acompanhamento rigoroso e consultas mensais. Como não agradava nem a ele nem era o estilo do psiquiatra que escolheu, pediu para parar de tomar o remédio. O psiquiatra concordou, e Pedro foi diminuindo a dose da medicação até cessar por completo. Tocou a vida por mais ou menos um ano e meio.

Neste intercurso, ele se tornou ainda mais criativo. Aumentou o número de horas de trabalho, que já eram muitas, porque se sentia muito potente. Pedro multiplicou o seu sucesso, que sempre foi medido por ele não pela quantidade de dinheiro, mas de paixão. E achava que tudo estava maravilhoso até começar a ter insônia. Pedro dormia e acordava, sobressaltado. Sem conseguir voltar a dormir, pensamentos terríveis passavam pela sua cabeça. Pedro pensava que perderia todo o seu sucesso, a sua possibilidade de fazer as coisas que acreditava e às vezes temia morrer de repente. As noites de Pedro passaram a ser povoadas por catástrofes imaginárias, mas bem reais para ele. E, toda vez que saía de casa pela manhã, voltara a ter medo de ser atingido por alguma fatalidade, por algo que estaria sempre fora do seu controle.

Algumas semanas depois do início da insônia, Pedro paralisou de novo. Não conseguia trabalhar – e este, para Pedro, era o maior dos pesadelos reais. Voltou ao consultório psiquiátrico e há dois anos toma os três remédios citados. Pedro, que sempre tinha olhado com desconfiança para a prateleira de psicofármacos, começou a achar natural precisar deles para enfrentar os dias e também as noites. “Que mal tem tomar uma pílula para dormir?”, dizia para a mulher, quando ela o questionava. “Ou tomar umas gotas de tranquilizante para não travar o maxilar de tensão? Ou 15 mg de antidepressivo para vencer a vontade de se atirar no sofá e ficar apenas olhando para dentro?” Sua mulher conta que ele parecia o Capitão Nascimento, em “Tropa de Elite”, tomando comprimidos no banheiro e dizendo à esposa: “Isso aqui não tem problema nenhum. Todo mundo faz isso. Não tem problema nenhum”.
 
Em 2011, Pedro teve momentos em que achou que tudo estava muito bem mesmo. E, se para tudo ficar tão bem era preciso tomar algumas pílulas, não tinha mesmo problema nenhum. Pedro talvez nunca tenha produzido tanto como neste ano e, por conta disso, até ganhou um aumento de salário sem precisar pedir. Mas, às vezes, não com muita frequência, ele se surpreendia pensando que algumas dimensões da sua vida tinham se perdido. Pedro não tinha mais o mesmo desejo pela sua mulher, e o sexo passou a ser algo secundário na sua vida. Não tinha mais tanto desejo pela sua mulher nem desejo por mulher alguma. “Efeito colateral do antidepressivo”, conformou-se.

Pedro trabalhava tanto que tinha reduzido às idas ao cinema, os encontros com os amigos e a pilha de livros ao lado da cama continuava no mesmo lugar. Ele também tinha perdido o interesse por viagens de lazer com a família, porque estava ocupado demais com seus projetos profissionais. Pedro constatou que os momentos de subjetividade eram cada vez mais escassos na sua vida. E, embora o trabalho lhe desse muita satisfação, ele tinha eliminado uma coleção de pequenos prazeres do seu cotidiano. Por volta do mês de setembro, Pedro começou a sentir uma difusa saudade dele mesmo que já não conseguia ignorar.

“Devagar eu comecei a perceber que tinha criado uma vida que não podia sustentar sem medicação. E tinha aceitado isso. Como, acho, boa parte das pessoas que conheço e que tomam esse tipo de remédio”, conta. “Eu só consigo fazer tudo o que faço porque tenho essa espécie de anabolizante. Sou um bombado psíquico. Vivo muitas experiências todo dia e não tenho nenhum tempo para elaborar essas experiências, como não tive tempo para elaborar o meu luto. É uma vida vertiginosa, mas é uma vida não sentida. Às vezes tenho experiências maravilhosas, mas, na semana seguinte, ou na mesma semana, já não me lembro delas, porque outras experiências se sobrepuseram àquela. E sei que só durmo porque engulo pílulas, só acordo porque engulo pílulas. Só suporto esse ritmo porque engulo pílulas. Até pouco tempo atrás eu achava que tudo bem, então eu ficaria tomando pílulas pelo resto da vida. Em vez de mudar meu cotidiano para que ele se tornasse possível, eu passei a esticar meus limites porque sabia que podia contar com os medicamentos e, se voltasse a cair, me iludia que bastaria aumentar a dose. Eu me tornei uma equação: Pedro + medicamentos. Aos poucos, porém, comecei a perceber que não é essa vida que eu quero para mim. Tem algo errado quando a vida que você inventou para você só é possível porque você toma três comprimidos diferentes para poder vivê-la. E, talvez, daqui a pouco, eu esteja tomando Viagra para ter desejo pela mulher que amo. Isso aos 40 anos. E, com o tempo, os efeitos colaterais desses remédios vão causar, pelo prolongamento do uso, doenças em outras partes do meu corpo. Eu sei que muita gente, como eu, já se habituou a achar que é normal viver à custa de pílulas. Mas, se você parar para pensar, isso é uma loucura. Isso, sim, é doença. E os médicos estão nos mantendo doentes, mas produtivos, usando os remédios para ajustar a máquina a um ritmo que a máquina só vai aguentar por um certo tempo. De repente, percebi que eu era uma máquina humana. E que eu estava usando remédios legais como se fossem cocaína e outras drogas criminalizadas. E o mais maluco é que todo mundo acha que tenho uma vida invejável e que está tudo ótimo comigo. Por serem drogas legais, por causa da popularização de coisas como depressão e síndrome do pânico, todo mundo acha normal eu tomar pílula para ter coragem de sair da cama de manhã e pílula para conseguir dormir sem ter medo de morrer no meio da noite. De repente, me caiu a ficha, e eu comecei a enxergar que estamos todos loucos, a começar por mim. Loucos por achar que isso é normal.”

Com a autorização de Pedro, procurei o psiquiatra dele para uma conversa. É um profissional inteligente e sério. E foi de uma honestidade rara. Perguntei a ele porque receitava psicofármacos para gente como Pedro. “Porque vivemos num mundo em que as pessoas não têm tempo para elaborar o que é do humano. Muitas vezes eu me deparo com essa situação no consultório. Vejo uma pessoa ali me pedindo antidepressivo porque não consegue mais trabalhar, não consegue mais tocar a vida. Eu sei que ela não consegue mais trabalhar nem tocar a vida porque é a sua vida que se tornou impossível, porque precisa de um tempo que não tem para elaborar o vivido. É óbvio que não é possível, por exemplo, elaborar um luto ou uma separação em uma semana e seguir em frente como se nada tivesse acontecido. Assim como não é possível viver sem dúvidas, sem tristezas, sem frustrações. Tudo isso é matéria do humano, mas o ritmo da nossa vida eliminou os tempos de elaboração. Essa pessoa não é doente – é a vida dela que está doente por não existir espaço para vivenciar e elaborar o que é do humano. Só que esse cara precisa trabalhar no dia seguinte e produzir bem ou vai perder o emprego. Então eu dou o antidepressivo e faço um acompanhamento sério, com psicoterapia, para que esse cara possa dar um jeito na vida e parar de tomar remédios. É um dilema e não tem sido fácil lidar com ele, mas é neste mundo que eu exerço a profissão de psiquiatra. Porque no tratamento da depressão, de verdade, a doença, de fato, é muito difícil obter resultados, mesmo com os medicamentos atuais. Assim como outras doenças psíquicas, quando são doenças mesmo. Os resultados são muito mais lentos – e às vezes não há resultado nenhum. A maioria das pessoas que estamos medicando hoje não é doente. E por isso o resultado é rápido e parece altamente satisfatório. Estas pessoas só precisam dar conta de uma vida que um humano não pode dar conta.”

Pedro, que nunca foi adepto das famosas resoluções de Ano-Novo, desta vez se colocou uma que talvez seja a empreitada mais difícil que já enfrentou. “Estou reduzindo progressivamente a dose dos medicamentos e vou parar até março. Minha meta, em 2012, e talvez leve muitos réveillons para conseguir alcançar isso, é criar uma vida possível para mim. Uma vida e uma rotina que meu corpo e minha mente possam dar conta, uma vida em que seja possível aceitar os limites e lidar com eles, uma vida em que eu tenha tempo para sofrer e elaborar o sofrimento, e tempo para usufruir das alegrias e dos pequenos prazeres e da companhia dos que eu amo. Sei que vai ter um custo, sei que vou perder coisas e talvez tenha até de mudar de emprego, mas acho que vai valer a pena. Não quero mais uma mente bombada, nem ser uma máquina bem sucedida. Quero só uma vida humana.”
 

Torço por Pedro, torço por nós.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Louvando quem bem merece



Por Lucia Couto, professora e prefeita universitária da UEPB
Crédito da foto: Paizinha Lemos


Na última quarta-feira (07) a professora Marlene Alves chamou a seu  gabinete a equipe da Prefeitura Universitária, atualmente envolvida em dedicação exclusiva à conclusão dos blocos 4 e 5 da Central de Aulas. Um pouco constrangidos por estarem com as roupas empoeiradas, a equipe entrou e se acomodou nas cadeiras e poltronas do gabinete. 

Em silêncio escutaram da reitora palavras de gratidão e respeito pela atitude corajosa e respeitosa de todos os que fazem a Prefeitura Universitária para com a Instituição. É a dedicação, competência e tenacidade desses funcionários que irá garantir o início do semestre 2012.1 na Central de Aulas, com a tão esperada transferência dos cursos do Centro de Educação e do curso de Serviço Social.

Uma reunião histórica pela demonstração de valorização desses trabalhadores, que em sua humildade, se sentiram honrados por terem sido chamados pela Reitora que, num gesto nobre e honesto, afagou seus egos fazendo-os superar o constrangimento de adentrarem, em trajes de trabalho, um recinto onde até hoje só entraram para cumprir missões de trabalho. Quarta-feira passada foram chamados e recebidos como todos os ilustres que já passaram por aquela sala.

Bravo ao suor do trabalhador.
Bravo professora Marlene! 
"Louvando o que bem merece e deixando o ruim de lado". (Louvação - Elis Regina e Torquato Neto)

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Crianças: presas no mundo, soltas na Internet

Por Rosely Sayão, psicóloga e escritora

Uma pesquisa apontou, em 2005, as crianças brasileiras como as que mais assistiam à televisão. Será que a situação mudou de lá para cá? Ou nossas crianças continuam campeãs nessa modalidade?
Pode ser que tenham trocado a televisão pelo computador, porque uma pesquisa atual revelou que nossas crianças são as que acessam as redes sociais mais cedo. Ou será que somaram as horas em frente à TV com as horas diante do computador?
Muitas crianças, aos nove anos, já tinham telefone celular e o usavam com intimidade. Agora, com essa mesma idade, muitas já possuem vários outros aparelhos, com funções variadas. O tablet é apenas mais um deles que permite acesso à internet.
Criar páginas e perfis em sites de relacionamento é uma entre as várias atividades que os mais novos podem realizar na internet.
O curioso fica por conta de um detalhe: esses sites não são indicados para crianças. Pelo menos, não para as que têm menos de 13 anos.
Muitos insistem que nossas crianças se mostram cada vez mais precoces. Apostam que elas sabem o que querem, que usam todos os recursos da informática de forma até melhor que os próprios pais e outros adultos da família, que têm vida social intensa etc.
Por outro lado, com a violência urbana, as crianças têm sido cada vez mais tuteladas em sua relação com o mundo real.
Os pais temem que seus filhos transitem pelo mundo público desacompanhados. Desse modo, crianças e adolescentes vão de casa para a escola sempre levados pelos pais ou por seus substitutos, assim como para festas e outros locais que frequentam. Mas, nesses locais, ficam sozinhos ou com seus grupos.
É comum vermos grupos de crianças entre nove e 12 anos nos shoppings sem a companhia de adultos, não é?
O mais provável é que seus pais as levem até lá e marquem uma hora para buscá-las depois que a programação planejada terminar.
Mas, nesse intervalo de tempo, as crianças ficam sozinhas. Como o local é fechado, os pais consideram a situação segura.
Da mesma maneira, consideram segura a relação dos filhos com a internet.
Mesmo com todos os alertas que têm sido dados, o mundo virtual parece bem menos ameaçador do que o real, para os pais.
Agora, vamos juntar algumas informações que temos.
Escolas têm tido dificuldade para contribuir positivamente com a socialização de seus alunos no espaço público. A explosão de pequenas violências entre eles no espaço escolar -fenômeno que tem sido chamado de bullying indiscriminadamente- é uma prova disso.
Além disso, a própria competição escolar por boas colocações, classificação etc. em nada ajuda na socialização dos mais novos.
Quanto aos pais, esses socializam seus filhos para o convívio no espaço privado, que é marcado pela afetividade. E, nas cidades, não há outro espaço além da escola que tenha a função de contribuir de maneira educativa com o processo de socialização dos mais novos.
Isso significa que eles têm crescido sem aprender, no conceito e na experiência, a conviver respeitosamente com o outro com quem não tenha vínculos afetivos.
E tem mais: também não aprendem a proteger a sua intimidade e a sua privacidade. Aliás, talvez nem aprendam o sentido disso.
E, quem não aprende a ter habilidade social no mundo real, como poderá ter habilidade no mundo virtual?
Precisamos pensar nisso antes de considerar os inúmeros e reais benefícios que as crianças podem colher no mundo da internet.



segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

INCRA/PB contratará pessoas para elaboração de Relatórios Antropológicos de territórios quilombolas


A Superintendência Regional do INCRA na Paraíba, lançou na última  quarta-feira (30), um processo de licitação a  fim de contratar pessoas físicas ou jurídicas  para elaborar Relatórios  Antropológicos de seis territórios quilombolas no Estado.  O  objetivo é acelerar o processo de regularização das áreas, que culmina  com a concessão do título de propriedade da terra às comunidades,  beneficiando aproximadamente 390 famílias. 

O aviso de licitação - na modalidade pregão eletrônico, do tipo menor  preço global - foi publicado no Diário Oficial da União e as propostas já podem ser entregues a partir desta data. Os interessados terão até as 10h do dia 12  de  dezembro para enviar as propostas de realização do trabalho, que envolve levantamento de campo, pesquisas etnográficas, bibliográficas e  documentais para a caracterização histórica, econômica, sociocultural  e ambiental das comunidades. 

O relatório antropológico é a peça inicial do processo administrativo  de regularização dos territórios quilombolas. A missão foi atribuída  ao INCRA em 2003, com a promulgação do Decreto nº 4.887, que  regulamentou o procedimento para identificação, reconhecimento,  delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos  remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata a  Constituição Federal, em seu Artigo 68, do Ato das Disposições  Constitucionais Transitórias. 

Atualmente existem 27 processos de regularização territorial cadastrados nesta superintendência. O Edital está disponível no portal http://www.comprasnet.gov.br/

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Mulheres ou pedaços de carne?

Da Revista Cult

Sherazade, personagem da obra As mil e uma noites é o objeto das críticas da escritora libanesa Joumana Haddad, que, na verdade, se dirigem a uma questão maior, a posição da mulher na atualidade. “Não é apenas no mundo árabe, eu não aceito que haja mulheres que precisem negociar um direito que já lhes pertença. Também acho que as que aceitam ser tratadas como um pedaço de carne são comparáveis às que vestem burcas”, afirmou durante o painel “Quem é a nova mulher árabe”, na Fliporto.

Em conversa com o jornalista Silio Boccanera, Haddad comentou o título de seu livro, Eu matei Sherazade – confissões de uma árabe enfurecida, relembrando a história da personagem. “Ela era uma mulher inteligente, que se salvou da morte utilizando sua cultura e imaginação, mas o problema é que ela estava negociando o direito de permanecer viva. Eu a matei porque não temos que dizer: ‘dê esse mundo para nós’, esse mundo é nosso.” A escritora ainda comentou a tendência a se eximir da culpa pelo problema, “a responsabilidade de fazer as coisas mudarem não é dos homens, é das mulheres. Quando você dá encargos a alguém, também dá poder”.

Muito aplaudida pela plateia, Haddad leu partes de seu livro e explicou suas críticas. “Eu falo basicamente sobre a autoridade patriarcal, que não é fortalecida apenas por homens, mas por algumas mulheres”. A escritora comentou que se define uma pós feminista, por não concordar com algumas posturas do movimento precursor. “Um erro foi transformar os homens em demônios. Existem misóginos, como existem os que podem ser feministas. Outro erro foi dizer não à feminilidade, como se isso fosse sinônimo de fraqueza.”

Haddad nasceu e ainda vive no Líbano: “dizem que o país é bem moderno se comparado ao outros árabes. Essa é uma visão perigosa, porque tudo acontece apenas superficialmente, as leis não são tão modernas assim”. Sobre a publicação de seu livro no país, disse que há um mês foi lançado na capital, Beirute. “Meu editor diz que está vendendo bem, mas ninguém comenta, os jornais não dizem nada, a não ser que estou me ocidentalizando. Eu digo que não, apenas sou favorável aos direitos da Declaração, que os países árabes também assinaram”.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A maturidade dos documentários nacionais

 "Ônibus 174"- Documentário retrata sequestro de um ônibus na zona sul do Rio de Janeiro

Por Amir Labaki, do Caderno Ilustríssima

RESUMO
Em texto publicado originalmente no catálogo oficial do Festival Internacional de Documentários de Amsterdã, o diretor do É Tudo Verdade, membro do conselho do festival holandês, analisa como a revolução digital e outros fatores impulsionaram a revitalização dos documentários brasileiros.


Um balanço inicial do documentário brasileiro no século 21 aponta uma produção crescente, mais variada e complexa, com ampliada presença nas salas de cinema. A mostra especial "Cinema do Brasil" no IDFA (International Documentary Film Festival Amsterdam) deste ano apresentou uma seleção representativa dos títulos mais marcantes do período, com 13 longas-metragens, além de uma retrospectiva especial de nosso principal cineasta, Eduardo Coutinho, e de seis curtas-metragens experimentais no ciclo paralelo "Paradocs do Brasil".

O documentário atravessa com rara regularidade a história do cinema brasileiro. Em vários momentos, como durante o cinema novo, nos anos 60, e a retomada, a partir de meados dos 90, cumpriu o papel de locomotiva estética que desbravou caminhos desconhecidos e puxou os vagões. Os principais cineastas brasileiros assinaram documentários, de pioneiros, como Alberto Cavalcanti e Humberto Mauro, a realizadores com recente consagração internacional, como Fernando Meirelles, José Padilha e Walter Salles.

Hoje a produção brasileira de longas documentais alcança a expressiva marca anual de cerca de 70 títulos, principalmente devido aos subsídios e financiamentos públicos e ao voluntarismo de produtores e cineastas. A parceria com a televisão, essencial nos grandes centros produtivos do mundo, é quase inexistente.

A participação do gênero nas salas de cinema ampliou-se neste século. Dos dois títulos que estrearam no país em 1998, alcançou-se uma nova média anual de 35 longas documentais a conseguir distribuição comercial, o que representa um terço dos lançamentos brasileiros. O calcanhar de Aquiles, contudo, é a performance nas bilheterias de cada título, raramente ultrapassando a marca de 10 mil ingressos. O melhor resultado recente (70 mil ingressos vendidos no ano passado) deve-se ao documentário musical "Uma Noite em 67", de Renato Terra e Ricardo Calil, presente neste IDFA.

FORTALECIMENTO

Um dos primeiros marcos da revitalização do documentário brasileiro, impulsionado, entre outros fatores, pela revolução digital, foi "Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos" (1999), de Marcelo Masagão, exibido e debatido pelo cineasta no IDFA do mesmo ano. Estreando em longa-metragem, Masagão inovou o cinema de arquivo a partir de uma recontextualização radical do "found footage" numa fragmentária narrativa histórica com toques ficcionais que resume "o breve século 20", segundo a célebre fórmula do historiador Eric Hobsbawm.

Submetendo o cinema de arquivo às regras dramáticas dos "thrillers documentários" à moda "Um Dia de Setembro" (1998), de Kevin Macdonald, o também estreante José Padilha ajudou a despertar o interesse internacional pelo novo documentário brasileiro com "Ônibus 174" (2002). Tendo como montador e codiretor Felipe Lacerda, reconstituiu o trágico sequestro de um ônibus no Rio a partir, principalmente, de imagens e sons do cerco captadas por inúmeras câmeras, inclusive as do departamento de trânsito. O cinema de Padilha já exibia aqui uma de suas maiores qualidades: a sintonia com grandes temas nacionais, como a imensa dívida social e a violência urbana."Tropa de Elite" (2007) não tardaria.

O mais popular subgênero a firmar-se nas salas de cinema tem sido o documentário musical. Uma de suas obras formalmente mais originais, ao incluir rara reflexividade, é "A Pessoa É para o que Nasce" (2003), de Roberto Berliner, apoiado pelo Jan Vrijman Fund. Berliner documenta o cotidiano e a evolução da vida de três irmãs cegas que lutam pela sobrevivência como cantadoras de coco.

"A Pessoa É para o que Nasce" vai muito além de retratá-las em suas existências de imensas privações e tocantes dramas familiares. Radicalizando as lições da escola antropológica do cinema verdade segundo Jean Rouch (1917-2004), Berliner explicita a intervenção do aparato cinematográfico em suas vidas e discute o impacto da absorção de sua arte e de suas histórias pela indústria cultural brasileira.

A reconstituição dos primeiros passos artísticos de alguns dos nomes centrais da atual música brasileira, como Caetano Veloso, Chico Buarque, Edu Lobo e Gilberto Gil, explica o grande sucesso em 2010 de "Uma Noite em 67". Os estreantes Renato Terra e Ricardo Calil apresentam pela primeira vez em tela grande a crônica do espetáculo de premiação do popularíssimo festival televisivo de música, consagrado como um dos divisores de águas na cultura nacional contemporânea, por exemplo, como um dos berços do tropicalismo.

Três títulos sinalizam uma guinada mais cosmopolita da recente produção. Vencedor da disputa nacional do festival É Tudo Verdade de 2006, "Cidadão Boilesen", de Chaim Litewski, pesquisou na Dinamarca as raízes do imigrante que, como empresário, se vinculou à máquina repressora da ditadura militar de 1964. Por sua vez, Vicente Ferraz foi à Cuba, onde estudara, para recuperar os bastidores da produção de uma obra-prima subestimada do início da Revolução Cubana -"Sou Cuba" (1964), de Mikhail Kalatozov.

Devido a seu formalismo de planos-sequência inimagináveis e distorções fotográficas e sonoras, o filme foi tratado como um tropeço indesculpável por mais de três décadas. Um dia, Francis Ford Coppola e Martin Scorsese o descobriram, restauraram e, em 1995, relançaram. O crítico J. Hoberman, da revista nova-iorquina "Village Voice", comparou o achado com um "mamute siberiano". Eis a origem do subtítulo do documentário de estreia de Ferraz, que leva o nome do filme de Kalatozov.

José Padilha também lançou os olhos para além das fronteiras nacionais para realizar seu mais recente documentário, "Segredos da Tribo" (2010), uma coprodução BBC/HBO. Ele disseca os bastidores de uma missão antropológica junto a uma tribo ianomâmi nos anos 60. Acusações de abusos opõem pesquisadores e pesquisados, colocando em xeque a relação entre ética e ciência.

O mais importante projeto de renovação do cinema etnográfico brasileiro, Vídeo nas Aldeias, fundado por Vincent Carelli, conhece sua síntese autobiográfica em "Corumbiara" (2009). Um quarto de século de militância audiovisual pelo respeito à população indígena, tornada documentarista da própria história pelo projeto, é sumarizada enquanto se busca esclarecer uma antiga chacina na ocupação da Amazônia.

NOVOS DISCURSOS

Na busca de novos discursos não ficcionais, três realizadores se consolidaram na última década: Cao Guimarães, Kiko Goifman e Maria Augusta Ramos. Em "Andarilho" (2006), Guimarães radicaliza a inflexão de sua obra em direção às artes visuais. A ênfase concentra-se no registro de uma situação no mundo, aqui a errância de homens, e não na explicação. É a plasticidade sobrepondo-se aos compromissos narrativos.

Formado na escola da videoarte, Goifman articula em "33" (2002) um dispositivo original. Todo um projeto multimidiático, centrado num diário on-line, acompanhou a gravação, por 33 dias (sua idade à época), de sua busca pela mãe biológica, que o legou em adoção quando bebê. A obra fílmica resultante tinge o estilo consagrado do videodiário com tintas emprestadas pelo policial noir clássico.

Por sua vez, Maria Augusta tem dado continuidade em sua carreira brasileira à exploração das fronteiras entre documentário e ficção, característica de sua primeira fase de formação na Holanda ("Desi", apresentado no IDFA 2000). A partir de uma proibição legal de exibir adolescentes infratores sob cuidados da Justiça, "Juízo" reencena casos verídicos de audiência judicial usando jovens habituados às mesmas circunstâncias de risco social. Contracenando com eles, os demais participantes vivem seus verdadeiros papéis: familiares, juízes, advogados, funcionários de uma instituição reformadora.

Talvez nenhuma trajetória espelhe com maior nitidez a crescente sofisticação do documentário brasileiro na era digital que a de João Moreira Salles -que, com o irmão Walter Salles, foi curador os "Top Ten" do IDFA 2002. A exibição de "Entreatos" (2004) e "Santiago" (2006) pelo ciclo explicita a curva de sua produção, do domínio do cinema direto clássico até o documentário autobiográfico ensaístico.

Realizado na mesma época de "Peões", de Eduardo Coutinho, também presente na mostra, "Entreatos" segue a primeira campanha vitoriosa de Lula à Presidência. Ao contrário de clássicos do gênero, como "Primary" (1960), de Robert Drew, e "The War Room" (1993), de D. A. Pennebaker e Chris Hegedus, nada se registra dos compromissos públicos da disputa, mas sim os intervalos privados do cotidiano do candidato. É assim, entre o épico e o íntimo, que se desenvolve "Entreatos".

"Santiago" é, por sua vez, reflexivo e autobiográfico, desenvolvido a partir de um depoimento do idiossincrático mordomo argentino da mansão em que João cresceu no Rio. A incapacidade de fazer um filme daquelas entrevistas, rodados uma década antes, é o motor do agora ensaio fílmico.

Involuntariamente, "Santiago" dialoga com "De Zee Die Denkt" (o mar que pensa, 2000), ensaio documental sobre a feitura de documentários que valeu a Gert de Graaf o prêmio máximo do IDFA 2000. Enquanto o holandês discute o processo de forma externa, criando um roteiro que exemplifica as etapas da feitura de um documentário, o brasileiro o faz como autocrítica, a partir de material preexistente captado pelo próprio realizador. Com "Santiago", o documentário brasileiro parece ter deixado para trás sua era da inocência.