O especialista em estudos visuais Josep Català, professor da Universitat Autònoma de Barcelona, defende que a interação possível entre espectador e narrativa pode transformar os jogos de videogame no grande suporte expressivo das próximas décadas, assim como foi a sétima arte ao longo do século 20.
Quando o cinema surgiu, era coisa de mágico, artimanha do demônio, algo a se espiar com desconfiança. Atração de feiras e parques de diversões, dividia espaço com dançarinos anões, animais adestrados, espelhos deformadores de corpo e outras distrações que faziam a alegria das camadas populares em fins do século 19. Mulheres e homens ditos refinados não o frequentavam.
Apesar do sucesso imediato no grande "museu de novidades", o cinema carregava certa aura vulgar num mundo pautado pelas artes visuais e pela literatura. Àquela altura, ninguém poderia supor que a técnica se tornaria a principal plataforma artística narrativa do século 20.
O espanhol Josep Català, professor de direção cinematográfica e estética da imagem na Universitat Autònoma de Barcelona, sugere que fenômeno análogo esteja em curso em relação aos videogames. Vistos ainda pela maior parte das pessoas como brinquedos de adolescentes que buscam apenas dar tiros, pular de fase ou salvar princesas, a interface dos jogos permite uma interação entre o espectador e a narrativa que, segundo o teórico, pode transformar o formato no grande suporte expressivo das próximas décadas.
"'Anna Kariênina' foi escrita no século 19, virou filme no século 20 e poderia perfeitamente se tornar um jogo de videogame no século 21", disse o teórico, durante recente visita ao Brasil para ministrar palestras sobre estudos visuais, tema de seu livro "A Forma do Real" [Summus Editorial].
Os estudos visuais representam para Català uma ampliação da noção de história da arte. Estendem suas fronteiras para além dela e consideram manifestações visuais de naturezas mais amplas -campanhas publicitárias, produtos audiovisuais de toda espécie. Lugar de encontro entre "o real, o imaginário, o simbólico e o ideológico", as imagens e as plataformas de interface são uma forma, talvez a única forma, de adentrar a subjetividade contemporânea.
O processo de multiplicação de imagens na sociedade em que vivemos tende a deixar as pessoas menos imaginativas?
Josep Català - A princípio, quando comecei a estudar as questões da imagem, essa era a minha tese. Pensava que a imagem detinha a imaginação na comparação com a literatura, porque aquele que lê pode imaginar, enquanto a imagem já nos oferece essa passagem por feita. Agora já não vejo assim. A imagem não é um muro que bloqueia a imaginação, pelo contrário: está cheia de impulsos e estímulos que projetam a imaginação para mais além.
É possível ficar só com a superfície da imagem, contentar-se com ela, até porque a imaginação é um procedimento que requer esforço, não se produz automaticamente. Penso, então, que há vários tipos de imagem, algumas mais imaginativas e outras que de certa forma fecham as portas.
A literatura foi fonte para modos de comportamento no século 19, tal e qual o cinema inspirou comportamentos culturais do século 20. Podemos antever um pouco os suportes que pautam nosso comportamento na chamada nova era?
Há um fenômeno bem concreto. O século 19 produziu um largo processo de letramento. Com a alfabetização e introdução no mundo literário nas zonas urbanas mais desenvolvidas, o romance se converte no instrumento de socialização por excelência e o mesmo acontece com o cinema. Penso que, neste momento, os videogames estariam prestes a assumir esse posto. Existem a internet e todas as novas tecnologias, mas, de todas, a mais capaz de incorporar a condição emocional e socializante da narrativa é o videogame.
Ali há uma história que se vive, como se vivia no cinema ou na literatura, e poderíamos pensar inclusive em adaptações. "Anna Kariênina", de Tolstói, foi escrita no século 19, virou filme no século 20 e poderia perfeitamente virar um jogo para videogame.
Quais os indícios desse processo?
Ainda não vimos isso porque a indústria, por enquanto, atira para outro lado, mas dá perfeitamente para pensar. Por enquanto, um videogame dificilmente consegue igualar a complexidade de um livro ou de um filme, mas temos que pensar que, no início do cinema, este também não era capaz de nada muito elaborado. Uma grande parcela da população torceu o nariz para o cinema até os anos 40, 50, sem se dar conta de que ali havia algo muito importante.
Quando o cinema começou, as pessoas punham o olho no cinematógrafo e viam um casal que dava um beijo e nada mais. Na época, se alguém dissesse que ali havia um novo parâmetro artístico, seria acusado de louco. E, no entanto, o cinema chegou num ponto em que é capaz de expressar a mesma complexidade de um grande romance.
É preciso então parar, com calma, e ver o videogame como forma simbólica -a possibilidade de criação de mundos imaginários e interface do jogador com esses mundos. A tendência é a de uma maior participação no mundo narrativo, de tal forma que a identificação, que se estabelecia de forma passiva, passe à forma ativa. Essa é a mudança que poderia haver, mas que ainda não se deu.
Como se estivéssemos esperando por um Chaplin dos videogames...
Sim, exatamente. O exemplo de Chaplin é muito bom, porque Chaplin, de cara, move as massas, faz-se extremamente popular. Também temos que ver que esses novos meios não anulam os anteriores, mas vão se sobrepondo. Ler um livro, ver um filme e participar de um game são experiências distintas e até complementares.
Por enquanto, temos visto com cada vez mais frequência no Brasil a adaptações de grandes romances para os quadrinhos...
As histórias em quadrinhos são um meio poderoso que, por muito tempo, foi visto como infantil. Nos últimos anos surgiram as "graphic novels" com histórias pessoais, memórias, investigações. Há uma densidade dos personagens combinadas com potência visual.
Do ponto de vista estrutural, a HQ se adianta ao cinema. O cinema é um conjunto de imagens que se sobrepõem de modo que a arquitetura cinematográfica não fica visível, enquanto a HQ traz a montagem à tona. No momento em que os desenhistas se deram conta de que tinham uma página para brincar, começaram a inventar novas formas de articulação, muito mais ousadas do que as velhas tirinhas que imitam quadros cinematográficos. Há uma capacidade de interação tremenda, que o próprio cinema agora começa a descobrir, quando reparte a tela e brinca com esses formatos.
Estamos vivendo a transição entre uma geração que cresceu com a televisão -um meio passivo- para uma geração que cresceu com internet, que é interativa. A tendência é que seja uma geração mais criativa, mais ousada?
Eu diria que sim. A geração da televisão, estamos vendo na Europa, é bastante passiva. Há reações ao que está acontecendo, mas também há uma passividade geral diante da crise. As novas tecnologias estão incentivando uma maior participação, mas que ainda não está bem desenvolvida. O potencial da internet como fonte de conhecimento ainda é muito pouco aproveitado.
O sr. costuma falar de uma crise no modelo universitário corrente. De onde ela deriva?
Penso que existe na Europa, mas também em outras partes do mundo, uma espécie hegemonia da mentalidade científica. Campos mais imaginativos têm que se submeter a funcionamentos que não lhes são próprios, com resultados mensuráveis e quantificáveis. Produziu-se uma indústria de produção de conhecimento "útil", enquanto para uma pesquisa de caráter imaginativo, que ninguém sabe ao certo onde vai dar, não há verba. Formarmos alunos para o que as empresas querem nesse momento, mas deveríamos formar alunos capazes de dizer às empresas o que elas vão precisar daqui a cinco ou seis anos. A universidade deveria estar alimentando a sociedade de ideias, e não está.
O sr. opõe duas formas de representação do real, o simulacro de Baudrillard e o espetáculo de Guy Debord. Qual dos dois serve melhor para interpretar a sociedade contemporânea?
Os dois eram muito apocalípticos, mas Baudrillard foi um pouco mais longe. O conceito de simulacro vê sentido na criação de imagens novas, que agora não precisam mais de um referente "real". O pensamento de interface parte disso. A interface é o dispositivo em que, na medida em que atuamos, mudamos a plataforma de modo seja possível continuar. É por aí que estamos indo.
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