terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Évora: O sentir mais profundo da música

Por Christiane Marcondes, do Portal Vermelho

Em Todos os Homens são Mortais, a escritora Simone de Beauvoir narra a vida do Conde Fosca, personagem do século XIII que toma o lendário elixir da vida eterna. No século XX, já imerso em tédio e decepção, Fosca conhece uma vaidosa atriz que descobre sua sina e passa a ter uma ambição além das materiais: quer que ele a ame, assim conquistará uma fama que ultrapasse o tempo, permanecendo para sempre na lembrança de um imortal.

Regine, a personagem, não conquista o conde e morre ignorando que a arte é imortal por sua própria natureza. A definição é de Bakunin: “a verdadeira arte é aquela através da qual perpassam rumores de futuro”.

É um bom critério para julgar o contemporâneo em relação ao eterno. Quantos atores, músicos, artistas vivem a fama e desaparecem no rastro do tempo ainda vivos ou após a morte? Outros estão aqui ainda agora e jamais sairão de cena, permanecem com uma vivacidade a toda prova, é o caso de Cesária Évora. 

Cesária por Cesária

Mas a imortalidade de um talento não chega de mãos beijadas. A imprensa e a própria história não cultuam obscuridade e fracasso. Por isso  é que as honrarias que a morte lega aos escolhidos da arte geralmente não fazem menção aos sacrifícios que a trajetória em direção à consagração exigem. 

Para Cesária, os aplausos da crítica e a luz dos holofotes da fama chegaram tarde, após 1985 e um período de 10 anos afastada da carreira; "Vivia com minha mãe, que me sempre me amparou", conta no vídeo a seguir, com a tranquilidade de quem nunca se iludiu com outra ambição a não ser dar corpo e voz a uma vocação natural e irrecusável. Confessa que viveu tempos difíceis.

E que não foi Cabo Verde, terra natal, mas a França, onde deixou muitos fãs e boas lembranças, que elevou seu nome ao panteão dos eleitos: "Até aí, talvez, não tenha encontrado ninguém que me ajudasse", tenta explicar.

Faz referência a mestres portugueses, que lhe ensinaram muito, e arrisca palpite de sucessores seus na sua terra, como a cantora Lura.

Quando confrontada com a afirmação de que ela cantava mais por amizade do que por dinheiro, reage sem alarde: "Quando a gente faz uma apresentação, espera ser paga por ela. Agora, a gente é pouco exigente, contenta-se com um envelope fechado que nos entregam depois de cantarmos", conta.

Na época da entrevista, estava às vésperas de um grande espetáculo em Lisboa. Seria diferente dos outros? "Será igual", responde sem titubear, sem maiores expectativas: "A minha voz mudou, mas a prática me faz cantar melhor, é técnica, só isso", resume.

Conclui a entrevista dizendo que, quando tiver que parar, será de vez: "Não quero sentir saudades do palco".

Cesária pelos amantes da sua música

A cantora de Cabo Verde faleceu no sábado, será enterrada nesta terça (20), mas sua obra não passará. E ela já começa a trilhar nova carreira, primeiro na lembrança dos próximos, que aqui a recordam, depois descoberta por gerações que ainda virão. Sua música está em toda parte onde se buscar. Viva a tecnologia!

Nação de pés descalços

"A primeira vez que chorei em Cabo Verde, há quase vinte anos, foi por ter ouvido a voz de Cesária Évora, que se apoderou de mim como um furacão de alma e sentimento. Tinha acabado de chegar ao Mindelo e pela mão do músico Vasco Martins fomos a um bar de amigos, para um serão tranquilo de boa conversa. Estava sentado, distraído com uma qualquer leitura, quando aquele espaço foi invadido por uma voz única, grave, possante. O disco era o “Miss Perfumado”, o CD que haveria de catapultar Cesária para a fama internacional, por via do mercado francófono e a transformaria na maior embaixadora da história do arquipélago, hoje no mapa global muito por responsabilidade do retumbante e espantoso sucesso da sua impar carreira. 

No saudoso Café Royal, da mítica Rua de Lisboa, para onde ela ia quase diariamente, numa época em que ainda não tinha que viajar constantemente, com tournês que a obrigavam a ficar tão longe da sua cidade querida, a sua chegada de carro, sempre com um condutor próprio, e a entrada com os pés descalços no estabelecimento, eram dignos de um cerimonial que nunca mais esquecerei. 

A mesa onde se sentava Cesária ia-se enchendo e esvaziando, à medida que ela recebia amigos, familiares, conhecidos ou curiosos. Pagava bebidas a todo o mundo, dava dinheiro aos pedintes, brincava constantemente com aqueles que a rodeavam, muitos já adivinhando que ali estava uma fonte inesgotável de talento e projecção. Na sua casa, sempre tinha a porta aberta, com o mesmo espírito generoso, próprio de uma grande matriarca. 

Hoje, depois do choque inicial, a voz de Cesária Évora ecoa por toda a cidade do Mindelo. Nas ruas, nos cafés, nos bares, nos carros, nas vozes das pessoas. Um mendigo grita no centro histórico do Mindelo: Cesária já morrê! Hoje, Cabo Verde, é uma Nação que se curva, de pés descalços, perante a sua maior Diva."

(João Branco, diretor do Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo)

Saudade com tinta e pincel

Como na tela de um quadro, a tua voz pinta estas paisagens perdidas e os sentimentos que animam o povo das tuas ilhas. Agradeço à vida o privilégio de te ter conhecido, tu que pela tua voz nos fizeste existir perante os olhos do mundo. Sentimos terrivelmente a tua falta.
Sodade, sodade, sodade..."

(Mayra Andrade, cantora)

Um país empobrecido

“Recebi a notícia com profunda tristeza. Cabo Verde fica mais pobre, da mesma forma que ficou mais rica quando ela nasceu, porque nasceu uma estrela que não se apagará, ficará sempre acesa, a brilhar através da sua música. 

Espero que todos os cabo-verdianos, sobretudo os mais jovens, dêem valor ao que ela nos deu; muitos não têm noção do que ela nos ofereceu. A Cesária levou-nos de uma parte do mundo para a outra, levou o nome de Cabo Verde por todo o mundo e, quando ela estava em palco, todo o cabo-verdiano estava lá com ela. Ela levou a morna, e o sorriso, e o calor do Mindelo, e ficará na nossa memória. Estamos profundamente tristes. Que descanse em paz. Todo o mundo da música ficou mais pobre, mas um artista, um poeta, nunca morre.”

(Tito Paris, músico)

A dor que se espera não dói menos

“É uma notícia triste, embora esperada. A Cesária já não estava bem há algum tempo, mas quando a notícia chega nunca estamos preparados. O extraordinário sucesso internacional da Cesária mudou por completo a forma como a música cabo-verdiana passou a ser acolhida no mundo e, dessa forma, mudou a própria música cabo-verdiana. Mas mais do que isso, julgo que ela foi muito importante para todo o mundo da música em língua portuguesa, porque ela abriu caminhos para todas as outras culturas.

O que foi extraordinário nela foi ter sido capaz de dar voz a todo esse património que criou. Lembro-me de a ter entrevistado para o Público no início de tudo, antes do sucesso em França. Ela fazia muitos concertos, sobretudo para cabo-verdianos, lembro-me de um na Voz do Operário, para muito pouca gente. E ela já era todo aquele património extraordinário de Cabo Verde, o que explica o seu sucesso era o facto de ela ser muito autêntica naquilo que fazia.”

(José Eduardo Agualusa, escritor)

Perfeição musical, referência humana

“Soube esta manhã, um irmão que vive em Cabo Verde ligou-me a dar a notícia. Fiquei atónito: nos últimos tempos tinha-me dedicado, com uma alegria tremenda, a escrever sobre a Cesária, a sua faceta de artista e pessoal, porque muita gente me perguntava sobre ela. Por todos os contactos que tinha, a informação era que a Cesária estava bem, tranquila, a repousar. Eu imaginava-a à espera da sua passagem de ano, que para nós é uma festa muito mais importante do que o Natal. E agora vem esta surpresa. Ouço as reações, todos falam sobre esta perda irreparável, mas nem consigo pensar nisso, só consigo pensar numa enorme tristeza.

Para mim a Cesária sempre foi o mundo. Cresci numa família de músicos, e ela sempre foi uma grande referência, a Cesária e a minha avó tinham uma relação de grande amizade. Cresci com a ideia que a Cesária era quase a perfeição ao nível musical. Mas eu adorava ir vê-la quando ela ia cantar aem qualquer espaço por causa da sua pessoa, da sua maneira brincalhona. Era isso que eu adorava antes de saber o que a música dela representava. Ela é uma referência incontestável em termos musicais, mas para mim é uma referência humana, absolutamente forte e inspiradora e que eu não quero nunca esquecer.”

(Flávio Hamilton, ator)

O sentir mais profundo da música

Artista singular, que tão bem soube exprimir a cultura e a tradição musical da sua terra, muito para além das fronteiras da Língua Portuguesa, a memória de Cesária Évora é merecedora da nossa elevada consideração.

É com pesar que presto a minha homenagem a Cesária Évora, cujo desaparecimento deixa de luto não só a nação cabo-verdiana mas toda a comunidade da lusofonia, ao mesmo tempo que nos lega uma saudade patente na memória de quem a ouviu cantar o sentir mais profundo da música do seu país, um patrimônio que continuará a ser partilhado por todos nós.

(Cavaco Silva, Presidente da República)


Deusa feita música

"O desaparecimento físico de Cesária deixa-nos sem palavras adequadas e seguras para exprimirmos a funda dor que atravessa o nosso ser. Não se trata aqui de dizer coisas exigidas pelo protocolo ou pela nossa condição de Presidente da República. Cize era - é - única, ímpar, na voz que sobrevoa o pequeno espaço das ilhas e paira sobre o continente vasto de uma nossa alma que rejeita ser feita de pedaços de cada um de nós. Na impossibilidade de retribuirmos a Cesária o que ela nos deu, apenas podemos aprisioná-la nos nossos corações, torná-la deusa, feita música, de um país sofrido, combalido mas eternamente grato a quem tanto fez para dar razão aos que um dia disseram "meu país é uma música".

(Jorge Carlos Almeida Fonseca, Presidente da República de Cabo Verde)

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