terça-feira, 29 de novembro de 2011

Mário Lago em família: “a porta de casa estava sempre aberta”

Por Christiane Marcondes, do Portal Vermelho

Antônio Henrique Lago, jornalista de longa e inspirada carreira, fala aqui do pai, Mário Lago, recordando cenas entre quatro paredes. Diz quais são seus trabalhos favoritos e compartilha ensinamentos de toda uma vida. Os fãs do artista plural vão adorar saber que, além de grande na vida pública, ele foi o pai que todo mundo gostaria de ter!

No último dia 26, Mário Lago completaria 100 anos. Morreu em 2002 sem contas a acertar com a vida. Foi tudo o que quis, dispensando já aos 13 anos a casaca de diplomata da qual a mãe fazia questão. Justificou para o filho: “Você é alto, magro, vai cair muito bem”. 

Lago tinha outros planos e, apesar da pressão contra, ninguém na casa tinha moral para reclamar. O pai e avós, além de tios, eram todos músicos, como Mário que, já aos 15, fez uma marchinha para a namorada, com declaração de amor ditada pela militância política, outra vocação. Dizia: “nosso amor vai melhorar quando vier a Constituição”. 

Com esses versos, o adolescente selou o destino definitivo e um elefante branco invadiu a sala de visitas da casa. O pai sentenciou: “Você está treinando para profissão de fome”.

Ainda bem que não foi praga, nem foi de coração, não pegou. Mas dinheiro, a julgar pelo que o Mário personagem público expunha, nunca sobrou. Nem faltou. Em entrevista no programa “Ensaio”, da TV Cultura, Mário se aventurou a fazer uma conta de cabeça. Complicou-se tanto que ninguém conseguiu sequer ajudá-lo. Explicou que foi reprovado três vezes em matemática e soltou a piada, já que bom humor, sim, esbanjava: “Eu não sei somar, por isso sou pobre, sei menos ainda multiplicar”.

Este é "o" Mário, segundo contam a lenda, a história e seu filho, Antônio Henrique Lago, jornalista, que faz aqui um rápido e delicioso perfil do pai. Antônio Henrique tem o mesmo humor e convicções do pai, além de já ter produzido obras memoráveis no campo da reportagem.

Acompanhe a entrevista a seguir:

Vermelho - Ator, produtor, diretor, compositor, radialista, escritor, poeta, autor de teatro, cinema, rádio e TV, frasista (que eu trocaria por “filósofo do cotidiano”), militante sindical, ativista político e boêmio. Está tudo lá, no site oficial do Mário Lago. Entre tantas facetas, uma ou algumas se sobrepunham a outras? 
Antônio Henrique Lago - O político sempre. Discutia as questões brasileiras diariamente com a família, amigos, o motorista de táxi, qualquer um que puxasse conversa. A pregação por uma sociedade mais justa e igualitária jamais ficava escondida ou em plano secundário. Papai nunca perdeu uma campanha política. Comunista por formação ideológica, sempre apoiou os candidatos de esquerda e do seu partido. 

Mas há também o ator, sempre, porque este foi uma parte importante da vida profissional dele. Dar vida a personagens era parte do “ser Mário Lago”. Fazia laboratório sozinho para enriquecer o papel, discutia com o autor e diretor todas as cenas. Atuar era um exercício de vida! 

E o escritor/autor/poeta, igualmente, sempre. Nos intervalos de gravação, nas férias, ele criava sempre um projeto para escrever. Durante as filmagens de O Padre e a Moça, recolheu material para um livro sobre o Chico Nunes das Alagoas, repentista e boêmio. Numas férias, traduziu a peça Fuente Ovejuna, do espanhol Lope de Vega. Do mesmo modo, escreveu uma peça sobre a revolução dos alfaiates - Foru Quatro Tiradentes na Conjuração Baiana -- que acabou censurada. Nunca deixou de compor, não havia como conter os versos.

Em casa, quais características pessoais predominantes você enumeraria?
Conversa franca, sobre qualquer assunto. Respeito às decisões de cada um da casa. Clima muito democrático.

Boêmio em um casamento que durou a vida toda. Como o Mário dividia o tempo entre o amor/família e as paixões, como a arte. Ficava em déficit com um lado ou outro?
Olha, papai sempre ia para os locais da boemia e levava minha mãe junto, mas eu lembro de ele chegar para uma conversa noturna sobre política, meus estudos - às vezes ele até me ajudava com os trabalhos escolares. Discutíamos minhas decisões pessoais e ele sempre respeitou as minhas escolhas. Ele e mamãe tinham a democracia entranhada no corpo e na mente.

Como era a casa do Mário? Um burburinho de música, amigos, festas? E o silêncio para criar, também habitava esse lar de artista?
A porta da casa de papai estava sempre aberta. Dolores Duran ia lá mostrar músicas. Carlos Marighela ia lá discutir coisas do PCB. Meus amigos e companheiros de militância política iam lá conversar. Era assim desde que me entendo por gente.

Na hora de criar, papai ia pro quarto, fechava a porta e se transportava para a criação, quer fosse para estudar as falas de um personagem, quer fosse para tocar o projeto de um livro.

Em uma frase, na sua opinião, qual o maior legado do Mário para:

- Você, filho 
AHL - A defesa de uma sociedade justa e igualitária com o fim da exploração do homem pelo homem. 

- A arte
AHL - Grandes interpretações como a do pescador Santiago, de O Velho e o Mar; e o Atílio da novela Casarão. Os versos de Nada Além, de Aí que saudades da Amélia e Aurora.

- A sociedade
AHL - Um exemplo de coerência política, honestidade de princípios. Tudo parte da luta pela sociedade sem exploração e opressão.

Sem segunda opção, qual música, filme (como ator ou diretor), papel na TV você colocaria como número 1 no ranking das criações do Mário?
Como música, eu gosto mais, puramente pessoal, do Nada Além. Mas sempre me emocionei muito nos bailes de carnaval ao ouvir o povo cantando Aurora. O Padre e a Moça, de Joaquim Pedro de Andrade, como filme. E papel na TV foi o Atilio, do Casarão.

Mário criava compulsiva ou metodicamente? Há ainda muita produção dispersa, inéditos? O que podemos esperar?
Papai era um criador compulsivo/metódico. Ele não podia ficar parado. Se não estivesse gravando, estava bolando algo e escrevendo.Escrevia, depois lia, corrigia, mudava, lia de novo e assim por diante, até ficar satisfeito.

O Mário era polivalente e multimídia. Como ele se relacionava com as novas tecnologias? Chegou a incorporar essa linguagem internética a seus trabalhos?
Papai não chegou a usar a tecnologia multimídia moderna. Ele exercia a multimídia pessoalmente. Acho que a formação sem a internet bastou para ele. Além do que ele conviveu muito pouco com a internet.

Qual, na sua opinião, foi a grande realização dele no campo das artes? De qual ou quais obras ele mais se orgulhava?
Papai achava que cada texto, música e personagem eram um sucesso particular e parte do todo que ele considerava o melhor da sua obra. Ele realmente gostava de tudo que fez. 

E na política, qual a grande conquista e a grande frustração na sua vida de lutador?
Ele tinha muito orgulho de ter participado do comando da greve dos radialistas de 1962, que resultou na regulamentação da profissão. E de ter participado das lutas pela liberdade e ter visto as quedas das ditaduras de Getúlio Vargas e dos militares. Acho que frustração foi a de ver que o homem ainda vive numa sociedade intrinsecamente injusta e exploradora.

Pacifista e inconformado, por isso mesmo eterno militante, que causa ou causas você acha que ele defenderia hoje?
Acho que ele continuaria a lutar contra a exploração do homem pelo homem. E, é claro, as causas ambientais também estariam entre as suas preocupações. 

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