Por Otávio Frias Filho, da Ilustríssima
Ilustração: Elisa Von Randow
RESUMO A narrativa biográfica ganhou feições modernas e autonomia literária no século 20, tanto no Brasil como em outros países. Recentemente, o gênero passou a espelhar as contradições de uma época em que o indivíduo se reconfigura entre o narcisismo midiático e a cultura das celebridades.
A biografia sofre conhecidas limitações como gênero literário. Apesar dos grandes escritores que se dedicaram a ela e dos biógrafos que deixaram obras-primas, as restrições nem por isso deixam de ser apontadas.
Tendo de se ater a fatos, o biógrafo jamais alcança a plena autonomia criativa do poeta e do romancista. Tendo por assunto a vida de um personagem, ele tampouco atina, se não de relance, com a compreensão profunda de uma época, própria do historiador. Além disso, há os percalços inerentes ao gênero. Como confiar no biógrafo? Parecido com o tradutor, a quem às vezes é comparado, ele também é um traidor. Tenderá a minimizar ou suprimir certos aspectos desfavoráveis na atuação do biografado, a confiar em sua versão nos pontos controvertidos, a compreender demais seus motivos e fraquezas. Ou, no caso das biografias ditas não autorizadas, destinadas a provocar sensação, fará quase o contrário disso.
MAGNETISMO Precisa-se, então, de biógrafos imparciais e neutros. Mas estes quase sempre se revelam os menos aptos a extrair da massa de eventos biográficos um sentido revelador, uma síntese significativa.
Parece que a boa biografia depende do magnetismo entre duas personalidades -de uma dialética peculiar em que o biógrafo cria, por sua própria conta e risco, o sentido apenas sugerido na vida do biografado, dispersiva e amorfa como a de toda pessoa. "A Vida de Samuel Johnson" (1791), de James Boswell, considerado o maior clássico do gênero em inglês, é resultado de uma cumplicidade desse tipo. Johnson era a figura literária suprema em Londres, onde reinava como crítico temido e dicionarista incontestável, quando Boswell, um jovem literato recém-chegado da Escócia, conquistou sua amizade.
Durante 11 anos, Boswell perseguiu Johnson com a obsessão de um repórter, registrando episódios pitorescos e frases iluminadoras. Chegou ao cúmulo de montar situações, como um jantar a que compareceria um desafeto de Johnson sem que este soubesse, a fim de observar as reações do sábio.
No afã de pintar um retrato exaustivo e irretocável, que incorporasse "até as verrugas", Boswell produziu um livro com mais de mil páginas, hoje pouco legível, mas que teve poderosa influência no gênero biográfico que floresceria desde então.
APELO A biografia veio a exercer apelo de leitura quase universal, sobretudo numa época, como a nossa, em que o mecanismo midiático projeta as personalidades famosas num perímetro antes inimaginável, ao mesmo tempo que glamuriza sua intimidade, convertida em produto simbólico.
Nos Estados Unidos, a biografia é o quinto gênero mais editado, depois de ficção, religião, economia e ciência. Vendeu-se cerca de um milhão de exemplares de biografias no mercado brasileiro no ano passado. Quase toda lista de "dez mais" inclui algumas delas. Se nos EUA a explosão biográfica remonta aos anos 1960, ela teve início no Brasil na década de 1990, com as obras de Ruy Castro (sobre Nelson Rodrigues), Fernando Morais (Assis Chateaubriand) e Jorge Caldeira (visconde de Mauá), três escritores egressos do jornalismo.
Seus livros combinavam pesquisa meticulosa e narrativa carismática; apesar de longos e bem documentados, garantiam leitura cativante. Como compete ao biógrafo ambicioso, adotavam um enfoque atual de seus protagonistas, apresentados no contexto de seu tempo, mas à luz do nosso. Conduzidos de modo profissional, os lançamentos pareciam preparar o transplante para outros meios, como TV e cinema.
TRADIÇÃO O êxito desse novo veio biográfico, enriquecido pela contribuição de outros autores, joga uma cortina de esquecimento, entretanto, sobre uma respeitável tradição. Na última Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em julho, o poeta e tradutor Paulo Henriques Britto lamentou que o Brasil não tivesse uma sólida vertente biográfica. Juízo questionável em autor tão qualificado, a declaração talvez se deva menos ao ambiente de entrevista onde ocorreu do que ao ofuscamento que a onda biográfica dos últimos 20 anos gerou.
Na terra do "homem cordial", onde a pessoalidade prevalece sobre normas e fatores gerais, o relato biográfico logo prosperou. Em meio a uma profusão de biografias anódinas e encomiásticas, destinadas a entronizar a personagem escolhida num panteão de gesso, destacam-se livros de valor duradouro. Despontam entre eles, por exemplo, os estudos de Lucia Miguel Pereira sobre Machado de Assis (1936) e de Francisco de Assis Barbosa sobre Lima Barreto (1952).
Para além desses clarões confinados ao âmbito literário, a biografia brasileira se estendeu a empreendimentos de mais envergadura, nos quais, ao focalizar a vida de um estadista ou de um punhado deles, descortina-se uma era.
O melhor exemplo é a mais célebre biografia escrita no Brasil, "Um Estadista do Império" (1896), na qual Joaquim Nabuco narra a trajetória pública do pai, considerada uma das melhores reconstituições políticas do Segundo Reinado. O historiador Octavio Tarquínio de Sousa levou a termo tarefa semelhante em sua série "História dos Fundadores do Império do Brasil" (1957), sobre D. Pedro I, José Bonifácio, Bernardo Pereira de Vasconcelos, Evaristo da Veiga e Diogo Feijó.
Afonso Arinos emulou Nabuco ao escrever o livro intitulado, com algum exagero, "Um Estadista da República" (1955), também sobre seu pai, Afrânio de Melo Franco -personagem mais periférico do que o senador Nabuco de Araújo. Mas a obra constitui, ao lado de sua biografia do presidente Rodrigues Alves, um substancioso painel da vida política e cultural na República Velha. (Historiador-jornalista dos nossos dias, Elio Gaspari terá se inspirado nesses antecessores ao condensar quase duas décadas de história política numa espécie de biografia, ou, antes, na narrativa da parceria entre "o sacerdote" e "o feiticeiro", os generais Geisel e Golbery, crucial na instalação e na derrocada do regime militar.)
Certos personagens que chegaram ao reconhecimento unânime, como Ruy Barbosa e o próprio Nabuco, foram alvo de sucessivas investidas em livros que se leem até hoje com proveito, como os de Luís Viana Filho e Álvaro Lins (este sobre o barão do Rio Branco). É verdade que essa alentada tradição biográfica, desenvolvida entre o início e a metade do século passado, nutrida numa vaga obrigação patriótica das belas-letras de reverenciar o grande personagem da história ou do saber, foi quase sempre convencional, quando não oficiosa.
São trabalhos amparados numa documentação admirável naquelas épocas em que não havia os recursos eletrônicos de hoje, nem a política de adiantamento das editoras ou as atuais equipes de pesquisadores-auxiliares. São livros instrutivos e muito bem escritos, apesar do inevitável timbre antiquado da prosa e do laivo cerimonioso que a percorre. Mas ainda não são biografias modernas.
PRECURSORES Os precursores da biografia, ao menos na cultura ocidental, foram Plutarco, Suetônio e Tácito, autores que viveram na segunda metade do século I.
Escrevendo em grego, Plutarco justapôs figuras históricas e semilendárias da Grécia e de Roma, agrupando-as nos pares de seu famoso "Vidas Paralelas". Os outros dois, escrevendo em latim, deixaram esboços biográficos de uma sucessão de imperadores romanos.
É notável que os detalhes escandalosos e os episódios anedóticos, longe de ser invenção recente, já figuram nesses primórdios do gênero. Suetônio narra pormenores da intimidade sexual de Calígula que não destoam do filme pornográfico feito nos anos 1970 sobre a corte do tirano. Várias das imagens forjadas pelo biógrafo atravessaram os séculos, como Nero a tocar lira enquanto Roma arde ou lastimando, ao morrer, o artista que o mundo perdia.
Existe um substrato qualquer de curiosidade frívola e apetite pelo escabroso em todo psiquismo humano; a anedota biográfica decerto responde a uma combinação sublimada desses impulsos menos confessáveis.
Mas nos autores clássicos ela serve ao propósito de sintetizar as configurações exemplares da virtude e do vício. O episódio anedótico é invocado porque seu impacto memorável corporifica a virtude que se quer enaltecer ou o vício que se quer deplorar (no caso de Suetônio, em especial, a virtude convertida em vício pelo exercício imoderado do poder).
Essa tradição se projetou nos autores cristãos que escreveram numerosas vidas de santos na Idade Média. Embora a virtude cristã se expressasse na imitação de Jesus e na obediência à Igreja, em lugar do sentimento de honra perante a pátria e os antepassados, os autores desses livros buscavam, como na matriz clássica, circunscrever o acontecimento superlativo capaz de tornar indelével o exemplo dos maiores. São testemunhos de milagres realizados e de bênçãos alcançadas, são incidentes em que as crueldades e provações mais inconcebíveis apenas fortalecem a têmpera do cristão no rumo da santidade.
AUTONOMIA Foi mais ou menos a partir do calhamaço de Boswell sobre o dr. Johnson, no final do século 18, que a biografia se desprendeu das motivações cívicas e religiosas na exaltação do biografado para adquirir alguma autonomia literária. A caracterização da personalidade notável e de suas passagens célebres persiste, mas agora o objetivo é atingir a verdade encerrada no ciclo de uma vida, revelar o sentido oculto em que ela se articula com a história ou com o próprio destino.
É um período de biografias gigantescas que se espraiam por vários volumes. Alguns biógrafos acreditam que o sentido de uma vida está inscrito de antemão, por algum processo místico ou desconhecido, na origem de cada existência, como se vivê-la fosse desdobrar um roteiro prévio comparável ao "design inteligente" dos criacionistas. Outros, ao contrário, pensam que toda vida é produto de circunstâncias fortuitas, como se o meio "selecionasse" o personagem para o papel que vai exercer. Combinações das duas doutrinas frutificaram.
Ao atingir a maturidade como gênero no século 19, quando passa a se ocupar do âmago da vida narrada, a biografia ingressa, porém, num terreno dificultoso e cada vez mais movediço. Uma das mais avassaladoras realizações intelectuais da modernidade foi dissolver a identidade do eu, a própria base onde se assentava o edifício biográfico. Não existe uma pessoa, mas várias, conforme o momento e o ângulo em que é observada. Assim também o sentido de uma vida é sempre múltiplo: será um para a própria pessoa, outro para quem lhe é próximo, um terceiro para o historiador e ainda outro para o historiador rival.
Há tantas vidas num indivíduo quantos biógrafos que se disponham a escrever sobre ele. Mais do que isso, toda pessoa faz parte de um encadeamento infinito que se perde na imensidão de causas e efeitos do mundo. Onde começa a pessoa e onde termina o mundo?
COLAPSO DA IDENTIDADE Num livro publicado há pouco no Brasil, "O Pequeno X - Da Biografia à História" [trad. Fernando Scheibe, Autêntica, 232 págs.], a pesquisadora francesa Sabina Loriga faz um recenseamento dos efeitos que o colapso da identidade do eu acarretou na historiografia biográfica do século 19. Razoavelmente livre de jargão acadêmico, o trabalho discute a questão tal como aparece nos escritos de autores como Thomas Carlyle, Jacob Burckhardt e Leon Tolstói. A figura do "grande personagem" vai sendo abalada em seus alicerces tanto pelo advento das massas urbanas na cena histórica como pelas inquirições perturbadoras em torno dos abismos da psicologia individual.
Dessa crise emergiu, em 1918, o livro apontado como divisor de águas entre a biografia tradicional e a moderna, "Eminent Victorians", de Lytton Strachey, até hoje sem tradução brasileira.
Para reconstituir o reinado da rainha Vitória, quando se organizou o imperialismo britânico em escala mundial, Strachey seleciona as quatro personalidades eminentes do título, nenhuma delas protagonista da época. Numa proeza de concisão, dedica pouco mais de 50 páginas a cada uma.
Sua narração é descritiva, factual sem ser enfadonha. Ele não especula, não exagera e não opina -os personagens são como espécimes submetidos à lupa do naturalista. No entanto, sob prosa aparentemente tão inofensiva, uma devastadora dose de crítica social era inoculada no leitor.
Florence Nightingale, a veneranda enfermeira que reformou o sistema hospitalar do Exército britânico na Guerra da Crimeia [1853-56], surge como neurótica obsessiva cujo caráter não seria isento de morbidez. O cardeal Manning, líder de um cisma de prelados anglicanos que retornaram à Igreja Católica, parece concluir que, dentre tantas crenças absurdas e incompatíveis, melhor ficar com a original.
O doutor Arnold é um dos eméritos educadores responsáveis pela introdução dos métodos disciplinares que tornaram infames os internatos ingleses. E o general Gordon, herói das guerras no Sudão, parece o coronel Kurtz de Joseph Conrad, encomendando caixas de conhaque e de água, provavelmente enlouquecido pela febre na selva onde se isolara.
Strachey era irmão do editor da obra de Freud em inglês e amigo íntimo de Virginia Woolf, que integrava como ele o círculo de intelectuais de vanguarda conhecido como Bloomsbury, do qual também fez parte o economista John Maynard Keynes.
Talvez as extravagâncias atribuídas ao grupo tenham pesado na recepção escandalizada do livro que, ao inaugurar o modernismo na biografia literária, desfechou mais um golpe insidioso na sociedade hierárquica e tradicional que periclitava e viria a se desfazer nas décadas seguintes.
MODERNIDADE A biografia moderna expande o universo de seus personagens, realizando a premonição de Samuel Johnson de que, assim como toda vida merece ser vivida, merece também ser biografada.
Ao mesmo tempo, diferente do tom elegíaco da biografia tradicional, que se atém à camada visível da vida do personagem, ela adota uma disposição investigativa, crítica, revisória. Em face da dificuldade de fixar um "eu" sempre fugaz e do inextricável turbilhão de partículas que faz a história, o biógrafo moderno assume o protagonismo da obra e faz do biografado quase uma invenção artística sua. Desde meados do século passado, porém, o desenvolvimento do cinema e da televisão passou a exercer uma irresistível atração sobre o gênero biográfico. Uma quantidade inédita de leitores, muitas vezes com pouca experiência intelectual, começou a ler biografias vorazmente. A difusão extraordinária da literatura biográfica é consequência, sobretudo, dessa evolução na demografia de leitores.
CELEBRIDADE Numa era de igualdade de direitos e de padrões massificados, surge como por encanto uma nova hierarquia, fundada na riqueza como a anterior, mas expressa no culto à celebridade. Talvez porque o sentimento de devoção já não seja dirigido à veneração de santos e heróis, que caiu em desuso, ele tenha de se deslocar para essas figuras de fama mundana, mas resplandecente e inatingível como os antigos modelos, geradas pela indústria midiática. Todas essas personagens se dispõem também numa hierarquia, desde a estrela internacional até a celebridade privativa pulverizada pelos "daily me" das redes sociais.
Essa forma sôfrega e impaciente de narcisismo integra o espírito da época, seria inútil resistir a ele. Sempre houve e haverá biografias melhores e piores, de toda forma. Mas as pressões culturais contemporâneas desafiam o projeto modernista em todos os campos, inclusive o biográfico.
O episódio anedótico, recurso essencial na história do gênero como porta de acesso à revelação biográfica, começa a valer por si mesmo, dadas as solicitações de um público cada vez mais treinado no entretenimento leve. A complexidade de toda vida, campo de exploração do biógrafo, tende a se conformar aos enredos pré-fabricados da psicologia popular.
Caberá ao bom biógrafo aceitar o espírito da época em que está imerso, sem com isso comprometer a busca solitária da verdade que viu no outro -nessa busca interminável reside, talvez, o sentido último da biografia, como o da própria vida que se resume a ser vivida.