Por Juliana Marques
(Comunicóloga)
“A educação modela as almas e recria os corações. Ela é a alavanca das
mudanças sociais”. Estas palavras de Paulo Freire retratam de forma fidedigna a
vida do professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Ênio Wocyli
Dantas, que mesmo diante das maiores adversidades da vida recusou o rótulo de
nordestino pobre, ergueu a cabeça e foi em busca de seus sonhos.
Nascido em Parelhas (RN),
ainda criança Ênio foi morar em Nova Floresta, região do Curimataú paraibano,
distante 120 km da capital, João Pessoa. Filho de uma professora e um
agricultor, sonhava em ser padre e botânico. Gostava de assistir programas de
Ecologia e fazer experimentos com as plantas de casa, chegando a criar flores
com cores diferentes, a partir de experiências que pesquisava em livros.
E foi por meio dos livros que ele
conheceu o padre Gregor Mendel,
considerado o pai da genética, em quem passou a inspirar-se. A trajetória de
Mendel tinha muitas semelhanças com a vida do estudante nordestino. Além da
identificação com a área de atuação de Mendel, nessa época, Ênio também sonhava
em ser padre.
Seguiu estudando à noite e trabalhando na plantação de dia. Apesar
na rotina cansativa, era um bom aluno. As horas vagas eram dedicadas ao estudo
na Biblioteca Municipal de Nova Floresta. Os familiares, que sempre o viam
estudando, achavam que seria um desperdício tentar outra profissão que não
fosse de médico e se voltaram contra o menino que tinha convicção que seguiria
a profissão de biólogo. “Havia um preconceito com a profissão de biólogo,
diziam que era coisa de gente que não presta”, relembra.
Contrariando a vontade de
parentes e amigos, Ênio resolveu prestar vestibular para Ciências Biológicas na
UEPB, sendo aprovado para o primeiro período. Vencido esse primeiro desafio,
vinha mais um obstáculo: se manter em Campina Grande. Tinha uma tia na cidade,
mas a mesma não o queria em casa por não aceitar sua escolha acadêmica.
Nessa época, um casal de
conhecidos que trabalhavam em Cuité queria colocar o filho para estudar em
Campina Grande, como forma de dar mais oportunidades de desenvolvimento ao garoto,
que tinha cinco anos de idade, e passaria a viver em uma cidade maior, mas
precisavam de alguém que pudesse cuidar da criança. Então, Ênio passou a fazer
a comida, lavar roupa e cuidar da criança em troca da hospedagem e da comida. Foi
a forma que ele conseguiu para se manter.
Um mundo novo
A vinda para Campina Grande
trouxe muitas novidades para a vida do jovem interiorano, que comeu o primeiro
pedaço de pizza aos 18 anos de idade, que ficava fascinado ao ver uma
escadaria, elevador ou escada rolante à sua frente e aprendia aos poucos a
viver em uma realidade bem diferente da qual estava acostumado.
Com o tempo, o “emprego” de babá não deu mais certo, porque a criança
era diabética e começou a apresentar problemas em seus exames, o que fez com
que o acordo firmado entre os pais da criança e Ênio fosse desfeito e mais uma
vez o estudante ficou sem moradia. Passou a dormir nas prateleiras da
biblioteca da UEPB, escondido dos funcionários. Rotina que não durou muito,
porque foi logo descoberto.
Ênio apelou para a tia, que o aceitou em sua casa, porém não o tratava
como sobrinho, deixando claro que o mesmo teria direito apenas à hospedagem. Recebia
R$ 10 por semana do pai, para bancar apostilas, transporte e alimentação. Para conseguir
mais algum dinheiro, arranjava bicos como balconista de farmácia, apostava
pratos de comida, comia folhas enquanto caminhava quilômetros de distância até
chegar ao seu destino a pé, pegava caronas em ônibus de prefeituras que levavam
estudantes à universidade. “O motorista já me conhecia e sempre parava pra que
eu subisse, mas às vezes me mandavam descer e eu tinha que prosseguir meu caminho
a pé mesmo”, relata Ênio.
Passou por momentos de aflição.
Um deles foi quando ao voltar da faculdade à noite, foi confundido com um
médico, por estar trajando jaleco branco, e foi obrigado a fazer o parto da
mulher de um criminoso em numa casa que ficava no seu trajeto de retorno pra
casa. “Mesmo com uma arma apontada para minha cabeça eu procurei manter a
tranquilidade e como no interior eu já tinha visto alguns partos, tentei
lembrar como era e consegui realizar o procedimento”, relembra. Ao se deparar
com a emoção de carregar um bebê no colo, sob sua guarda e proteção, deixou de
lado o sonho de ser padre, o substituindo pelo desejo de um dia viver novamente
essa sensação e ser pai.
A rotina de aperto financeiro
e dificuldade passou a mudar quando o estudante foi aprovado no Programa de
Bolsa de Iniciação Científica (PIBIC), no qual desenvolveu pesquisas na área de
ecologia de algas, visando o Mestrado em Botânica. Estava no 5º período do
curso, época em que contou com o apoio do atual vice-reitor da UEPB, professor Ethan
Barbosa, hoje colega de trabalho de Ênio, na época professor e orientador.
“Nesse período, o orçamento melhorou. Dava pra pagar café, almoço e jantar,
além de bancar as necessidades básicas, mas sem luxos”, conta Ênio.
O então estudante lia muito e
dentre os textos preferidos se destacava os de autoria de Ariadne do Nascimento
Moura, pós-doutora em Biologia Molecular de Cianobactérias pela USP, com a qual
se identificava e tinha o sonho de conhecer pessoalmente. Pôde realizar tal
desejo no Congresso Brasileiro de Limnologia, em Minas Gerais, evento que
participou depois de, sem dinheiro, batalhar para conseguir arcar com os custos
de passagem, hospedagem e taxa de inscrição.
“Eu e alguns amigos rifamos de
tudo. Saímos pedindo ajuda de um e outro até juntarmos uma quantia suficiente
para pagar a hospedagem e passagem de ida. Ao chegar lá nos alimentávamos com o
café da manhã da pousada onde estávamos e os lanches do evento e fizemos uma
campanha para custear nossa volta. No fim deu tudo certo”, relembra.
Apresentado pelo orientador, professor Ethan, à pesquisadora Moura, Ênio
aproveitou a oportunidade e criou coragem para convidá-la para orientá-lo a
chegar ao mestrado.
Mais estudos e desafios
Quando estava próximo de
concluir a graduação, resolveu participar da seleção do Mestrado na UFPE. Após
ser aprovado, outro desafio surgiu na vida do estudante, quando a casa simples
de sua família foi destruída e ele teve que ajudar a reconstruí-la, ficando sem
saber ao certo se poderia deixar a família nesse momento de dificuldade para
cursar o mestrado. Encorajado pelo pai, ele resolveu seguir sua carreira
acadêmica.
Sem conhecer quase nada de
Recife, partiu com uma sacola de roupa na mão, pouco dinheiro no bolso e uma
grande vontade de vencer. Foi aprovado entre os primeiros lugares e conseguiu
uma bolsa, que o ajudou a custear suas despesas enquanto estudava. Passou a
desenvolver suas pesquisas em um sítio do município de São João do Cariri, onde
passava cerca de 50 dias isolado. Nessa
época também teve que superar muitos obstáculos, desde picada de cobra, andar de
50 a 100 km de bicicleta diariamente, até ser enganado por um colega com o qual
deixou uma procuração para administrar suas contas enquanto se ausentava e fez
empréstimos, deixando várias dívidas em nome do estudante.
“Tive meus experimentos
sabotados, ganhei a inimizade de colegas e até da minha orientadora. Tive que
mudar meu projeto de última hora, mas continuei a estudar e me dedicar às
minhas pesquisas, até que com o tempo ficou provado que eu não tive culpa de
nenhum dos problemas ocorridos”, recorda Ênio. Ao encerrar com êxito, em 2006, o Mestrado em Botânica pela Universidade
Federal Rural de Pernambuco, surgiram convites para o doutorado na mesma área e
o estudante cursou na sequência, também com a orientação de Ariadne do
Nascimento Moura.
Com tamanha dedicação à vida
acadêmica, era natural que a vida pessoal fosse deixada de lado por um tempo,
até que em uma missa na cidade de Carpina (PE), Ênio apaixonou-se e começou a namorar
a professora da UFPE e terapeuta ocupacional Cibele Dantas. Algum tempo depois,
já com o título de doutor, ficou sabendo da seleção de professores da UEPB, na
qual se inscreveu e foi aprovado.
Por coincidência do destino,
dois órgãos públicos da Paraíba também realizaram seleção para terapeuta
ocupacional e a noiva de Ênio foi selecionada em 1º e 2º lugar nos concursos.
Com a vida profissional encaminhada, os dois marcaram o casamento, mas no dia da
cerimônia um tiroteio na frente da casa de festas onde ocorria a comemoração resultou
na morte de dois filhos de um grande amigo do casal e dono do sítio onde os
noivos se conheceram. Uma tragédia marcava um dos dias mais especiais da vida
de Ênio.
Após uma série de
dificuldades, hoje Ênio Wocyli pode ser considerado um vencedor. Superou todos
os preconceitos e barreiras que a vida impôs e realizou seus maiores sonhos,
tornando-se biólogo, coordenador do curso de Ciências Biológicas do Campus V da
Universidade Estadual da Paraíba, em João Pessoa, formando uma família, sendo
pai de duas filhas e tornando-se um cidadão respeitado por sua postura digna e
honrada.
Ao considerar o pensamento
de Abraham Lincoln, que afirma que
“o êxito da vida não se mede pelo
caminho que você conquistou, mas pelas dificuldades que superou no caminho”,
pode-se dizer que o professor Ênio conquistou êxito em tudo que fez. Graças a
seu esforço, chegou mais longe do que qualquer um podia imaginar, com
esforço e determinação. Um exemplo a ser seguido.