terça-feira, 31 de janeiro de 2012

PÓS-GRADUAÇÃO: Educação estendida

Por Bianca Bibiano, para o Especial/Folha

O PNPG (Plano Nacional de Pós-Graduação) 2011-2020 divulgado pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) no ano passado estabelece como objetivo para a década um crescimento de pouco mais de 15% a cada três anos no número de cursos de pós-graduação registrados no país.

Se a expectativa se cumprir, em 2013 serão 6.029 cursos formando mais de 60 mil mestres e doutores.

A projeção favorece quem procura cursos nos campos de tecnologias, ciências agrárias e da terra, engenharia e saúde, considerados prioritários para esses dez anos.

"O cenário da formação superior é positivo para todas as áreas, mas o Brasil carece de mão de obra especializada sobretudo nesses setores", explica Lívio Amaral, diretor de avaliação da Capes.

Pelos dados de 2009, a maior parte dos cursos são de ciências da saúde e ciências humanas, com respectivamente 725 e 588 registros. De 2004 a 2009, o número total de cursos passou de 2.970 para 4.101 -alta de 38,1%-, chegando, em 2010, a 4.757.

DISTRIBUIÇÃO DESIGUAL

Ana Lúcia Almeida Gazzola, relatora do PNPG e docente da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), diz concordar que o quadro atual é positivo, mas ressalva que ele só será eficaz quando o crescimento for redimensionado, considerando-se a capacidade instalada do parque universitário brasileiro.

A especialista diz acreditar que a formação de centros de referência espalhados pelo território nacional possa direcionar as metas repassadas às instituições de ensino. A maioria dos cursos de pós se concentra no Sudeste e no Sul.

"Em 24,1% das mesorregiões brasileiras [subdivisões dos Estados que agrupam cidades pelo perfil econômico e social], há apenas um ou nenhum doutor, e essa ausência é maior no Norte, no Nordeste e no Centro-Oeste", situa Danilo Giroldo, pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da Furg (Universidade Federal do Rio Grande).

"É grave se pensarmos no destaque que essas regiões terão com a Copa de 2014."

Programas como a Rede Centro-Oeste, do governo federal, e a Renorbio (Rede Nordeste de Biotecnologia) buscam suprir a falta de pós-graduandos e de pesquisa científica em regiões como a do cerrado e o Pantanal.

"Criar cursos que tenham no corpo docente professores de diferentes faculdades é alternativa para se instituir um campo de pesquisa forte nessas regiões", frisa Giroldo.

MASSA CRÍTICA

Para 2013, as agências de fomento Capes e CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) estimam a distribuição de 105 mil bolsas para mestrado e doutorado.

"Teremos o resultado apenas daqui a quatro ou cinco anos, quando essa massa crítica estará formada e produzindo", destaca Amaral.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Diretores do cinema paraibano homenageiam Linduarte Noronha

Por Krystine Carneiro, do G1 PB

“Não é apenas um cineasta, não é apenas um personagem famoso. É o símbolo da realização do cinema que busca ser brasileiro, que busca ser nordestino”. Foram essas as palavras usadas pelo presidente da Academia Paraibana de Cinema, Wills Leal, para descrever o cineasta Linduarte Noronha, que morreu na madrugada desta segunda-feira (30) em João Pessoa.

Precursor do movimento Cinema Novo com o documentário ‘Aruanda’, de 1960, Linduarte morreu aos 81 anos na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Memorial São Francisco. Segundo informações da família do cineasta, ele sofreu uma parada respiratória. A morte dele foi repercutida por vários nomes do cinema paraibano na manhã desta segunda. “O falecimento do Linduarte é um marco, um acontecimento lamentável sobre todos os aspectos”, completou Wills Leal. O corpo está sendo velado no Parque das Acácias, na capital, onde também acontece o enterro às 18h.

Apesar de ser pernambucano, Linduarte construiu sua carreira na Paraíba. “Ele era uma referência maior do cinema paraibano, historicamente falando, e uma referência do cinema documental brasileiro e latino americano”, explicou o jornalista e cineasta Lúcio Vilar.

Para Lúcio, a importância dele não se restringia apenas ao Brasil. “'Aruanda' teve uma alcance que extrapolou as fronteiras nacionais”. Como estudioso do cinema, Lúcio Vilar explicou que o documentário influenciou diretamente jovens cineastas brasileiros, como Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, na década de 60 e que essa influência deu força para que o Cinema Novo passasse a existir.

Glauber Rocha chegou a publicar um artigo elegendo ‘Aruanda’ como o filme que introduziu o ‘Moderno Documentário Brasileiro’. “Esse é o legado. Nosso reconhecimento não é ufanismo, é reconhecido por especialistas”, disse Lúcio.

Em 2005, o jornalista batizou o principal festival de cinema da Paraíba com o nome do documentário Aruanda de Linduarte. “Ele era muito generoso. Quando decidimos mudar o nome para Aruanda, fui perguntar se ele autorizava. Ele riu muito e disse que aquilo já era domínio público, que não tinha nada que pedir autorização. Ele já tinha noção que o filme dele não era mais dele, era do público, dos estudiosos, dos pesquisadores”.

A jovem jornalista Larissa Claro também lamentou a morte de Linduarte nesta manhã. Larissa é diretora do documentário ‘Lição de Fogo’, de 2007, que mostra o processo de produção do filme ‘Salário de Morte’, filmado no início da década de 70 em Pombal, a 377km de João Pessoa. “Tive a grande honra e privilégio de bater na porta de Linduarte e ouvi-lo dizer que aquela seria última vez que ele iria falar sobre ‘Salário de Morte’, que é um filme muito polêmico”, disse Larissa. “Todo mundo que teve algum trabalho ligado ao cinema paraibano lamenta a morte dele. É uma perda irreparável”.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O Tratamento pela Escrita - Reescrevendo sua história

REGISTRO -  Izabel escreve até hoje sobre as emoções que 
sente após ter sido tratada de um tumor cerebral


Por Monique Oliveira, da Revista Istoé

Há muito a psicologia clínica indica que mudar as emoções diante de um evento é uma maneira eficaz de conseguir viver em paz com uma experiência dolorosa. Agora, a ciência confirma que a escrita não só é uma ferramenta importante nesse processo como pode alterar as respostas fisiológicas a doenças crônicas, melhorando o quadro de saúde de pacientes. Ao escrever os doentes tornam suportável uma experiência tida anteriormente como pesada demais. Ela passa a integrar a biografia de quem vive o trauma, abrindo o caminho para a recuperação, como se cada um reescrevesse sua história.

Por essa razão, a chamada “expressive writing” (algo como expressão pela escrita, em inglês) ganha cada vez mais espaço na medicina. Na última semana, por exemplo, dois novos estudos reforçaram o poder do método. O primeiro, aliás, apontou uma evolução interessante. Cientistas da Universidade de Haifa, em Israel, descobriram que a técnica, quando usada em blogs pode ser tão ou mais eficaz que no papel. Os pesquisadores chegaram à conclusão após analisar a reação ao experimento por eles organizado com a participação de 161 adolescentes com ansiedade e fobia social. Os jovens foram divididos em grupos que receberam orientações distintas. Alguns, por exemplo, deveriam escrever em blogs abertos, com comentários, e outros, em blogs fechados.

Depois de dez semanas escrevendo pelo menos duas vezes semanalmente, todos apresentaram melhora na autoestima, na autoconfiança e na capacidade de se sentir confortável em situações sociais que evitavam antes de iniciar a prática da escrita. Mas aqueles que escreveram em blogs com espaço para comentários manifestaram melhora mais significativa. De acordo com os autores do estudo, as características da internet e das qualidades da “expressive writing” podem ser potencializadas no blog. “Ele fornece uma combinação única de espaço confortável para a autoexpressão com um ambiente de interação social”, escreveram.

O segundo trabalho, da Universidade de Waterloo, no Canadá, mostrou a eficiência da técnica no controle do peso. Nele, a psicóloga Christine Logel demonstrou que as mulheres convidadas a escrever sobre seus sentimentos e valores perderam, em média, 3,4 quilos, enquanto as que não participaram da oficina ganharam cerca de 2,7 quilos. “Escrever funcionou como um incentivo”, disse Christine à ISTOÉ. A pesquisadora observou que a escrita ajudou as participantes a se sentir bem com elas próprias na medida em que descreviam o que consideravam importante em suas vidas. “E elas não utilizaram a comida como escape”, explicou Christine.

De fato, um estudo da Universidade de Baylor (EUA) com 48 portadores de câncer de testículo revelou que escrever sobre as emoções relacionadas à doença acelerou a recuperação dos participantes. Como justificativa, os cientistas levantaram a hipótese de que, como a escrita auxiliou no controle do estresse ocasionado pela enfermidade, o sistema imunológico entrou em equilíbrio. Resultado: ele deixa de reconhecer como nocivos agentes inofensivos, causando complicações como alergias, e continua a luta contra a doença.

Outras pesquisas também demonstraram os efeitos positivos da escrita no tratamento de doenças infecciosas, como a Aids, e diversos tipos de câncer. A dona de casa Izabel Modesto de Araújo, 47 anos, de São Paulo, por exemplo, encontrou na escrita uma maneira de amenizar o sofrimento após passar por três cirurgias para retirar um tumor cerebral. No processo de recuperação, ela começou a escrever já na cama do hospital. Acabou escrevendo dois livros e mantém o hábito da escrita até hoje, já recuperada. “Mesmo nos momentos mais difíceis não precisei tomar antidepressivo”, conta. “Escrever é minha terapia.”

No Rio Grande do Sul, a psicóloga Ana Maria Rossi, presidente da seção brasileira da International Stress Management Association, organização internacional para o controle do estresse, indica a escrita terapêutica para pacientes que não conseguem lidar com o acesso de raiva. “Ela tem efeitos positivos naquelas pessoas com dificuldade de descrever a experiência sem se descontrolar ou ficar extremamente emocionadas.”

Não basta, entretanto, apenas escrever. “É preciso ter um propósito. A escrita organiza o pensamento e facilita o autoconhecimento”, diz a professora Solange Pereira Pinho, que comanda uma oficina de escrita terapêutica em Brasília. Isso é possibilitado porque, sob orientação correta, o paciente não somente descreve a reação ao evento, mas o que foi sentido no momento.

Também não é qualquer conteúdo que surtirá resultados positivos. Na literatura médica, as investigações do pesquisador americano James Pennebaker, que descreveu o poder da escrita terapêutica em “Abra o Seu Coração: O Poder da Cura Através da Expressão das Emoções” (Editora Gente), apontaram que escrever sobre os aspectos emocionais afeta a saúde positivamente, mas descrever apenas os fatos da experiência traumática pode surtir o efeito contrário.  

O Tratamento pela Escrita - Reescrevendo sua história

REGISTRO -  Izabel escreve até hoje sobre as emoções que 
sente após ter sido tratada de um tumor cerebral


Por Monique Oliveira, da Revista Istoé

Há muito a psicologia clínica indica que mudar as emoções diante de um evento é uma maneira eficaz de conseguir viver em paz com uma experiência dolorosa. Agora, a ciência confirma que a escrita não só é uma ferramenta importante nesse processo como pode alterar as respostas fisiológicas a doenças crônicas, melhorando o quadro de saúde de pacientes. Ao escrever os doentes tornam suportável uma experiência tida anteriormente como pesada demais. Ela passa a integrar a biografia de quem vive o trauma, abrindo o caminho para a recuperação, como se cada um reescrevesse sua história.

Por essa razão, a chamada “expressive writing” (algo como expressão pela escrita, em inglês) ganha cada vez mais espaço na medicina. Na última semana, por exemplo, dois novos estudos reforçaram o poder do método. O primeiro, aliás, apontou uma evolução interessante. Cientistas da Universidade de Haifa, em Israel, descobriram que a técnica, quando usada em blogs pode ser tão ou mais eficaz que no papel. Os pesquisadores chegaram à conclusão após analisar a reação ao experimento por eles organizado com a participação de 161 adolescentes com ansiedade e fobia social. Os jovens foram divididos em grupos que receberam orientações distintas. Alguns, por exemplo, deveriam escrever em blogs abertos, com comentários, e outros, em blogs fechados.

Depois de dez semanas escrevendo pelo menos duas vezes semanalmente, todos apresentaram melhora na autoestima, na autoconfiança e na capacidade de se sentir confortável em situações sociais que evitavam antes de iniciar a prática da escrita. Mas aqueles que escreveram em blogs com espaço para comentários manifestaram melhora mais significativa. De acordo com os autores do estudo, as características da internet e das qualidades da “expressive writing” podem ser potencializadas no blog. “Ele fornece uma combinação única de espaço confortável para a autoexpressão com um ambiente de interação social”, escreveram.

O segundo trabalho, da Universidade de Waterloo, no Canadá, mostrou a eficiência da técnica no controle do peso. Nele, a psicóloga Christine Logel demonstrou que as mulheres convidadas a escrever sobre seus sentimentos e valores perderam, em média, 3,4 quilos, enquanto as que não participaram da oficina ganharam cerca de 2,7 quilos. “Escrever funcionou como um incentivo”, disse Christine à ISTOÉ. A pesquisadora observou que a escrita ajudou as participantes a se sentir bem com elas próprias na medida em que descreviam o que consideravam importante em suas vidas. “E elas não utilizaram a comida como escape”, explicou Christine.

De fato, um estudo da Universidade de Baylor (EUA) com 48 portadores de câncer de testículo revelou que escrever sobre as emoções relacionadas à doença acelerou a recuperação dos participantes. Como justificativa, os cientistas levantaram a hipótese de que, como a escrita auxiliou no controle do estresse ocasionado pela enfermidade, o sistema imunológico entrou em equilíbrio. Resultado: ele deixa de reconhecer como nocivos agentes inofensivos, causando complicações como alergias, e continua a luta contra a doença.

Outras pesquisas também demonstraram os efeitos positivos da escrita no tratamento de doenças infecciosas, como a Aids, e diversos tipos de câncer. A dona de casa Izabel Modesto de Araújo, 47 anos, de São Paulo, por exemplo, encontrou na escrita uma maneira de amenizar o sofrimento após passar por três cirurgias para retirar um tumor cerebral. No processo de recuperação, ela começou a escrever já na cama do hospital. Acabou escrevendo dois livros e mantém o hábito da escrita até hoje, já recuperada. “Mesmo nos momentos mais difíceis não precisei tomar antidepressivo”, conta. “Escrever é minha terapia.”

No Rio Grande do Sul, a psicóloga Ana Maria Rossi, presidente da seção brasileira da International Stress Management Association, organização internacional para o controle do estresse, indica a escrita terapêutica para pacientes que não conseguem lidar com o acesso de raiva. “Ela tem efeitos positivos naquelas pessoas com dificuldade de descrever a experiência sem se descontrolar ou ficar extremamente emocionadas.”

Não basta, entretanto, apenas escrever. “É preciso ter um propósito. A escrita organiza o pensamento e facilita o autoconhecimento”, diz a professora Solange Pereira Pinho, que comanda uma oficina de escrita terapêutica em Brasília. Isso é possibilitado porque, sob orientação correta, o paciente não somente descreve a reação ao evento, mas o que foi sentido no momento.

Também não é qualquer conteúdo que surtirá resultados positivos. Na literatura médica, as investigações do pesquisador americano James Pennebaker, que descreveu o poder da escrita terapêutica em “Abra o Seu Coração: O Poder da Cura Através da Expressão das Emoções” (Editora Gente), apontaram que escrever sobre os aspectos emocionais afeta a saúde positivamente, mas descrever apenas os fatos da experiência traumática pode surtir o efeito contrário.  

O Tratamento pela Escrita - Reescrevendo sua história

REGISTRO -  Izabel escreve até hoje sobre as emoções que 
sente após ter sido tratada de um tumor cerebral


Por Monique Oliveira, da Revista Istoé

Há muito a psicologia clínica indica que mudar as emoções diante de um evento é uma maneira eficaz de conseguir viver em paz com uma experiência dolorosa. Agora, a ciência confirma que a escrita não só é uma ferramenta importante nesse processo como pode alterar as respostas fisiológicas a doenças crônicas, melhorando o quadro de saúde de pacientes. Ao escrever os doentes tornam suportável uma experiência tida anteriormente como pesada demais. Ela passa a integrar a biografia de quem vive o trauma, abrindo o caminho para a recuperação, como se cada um reescrevesse sua história.

Por essa razão, a chamada “expressive writing” (algo como expressão pela escrita, em inglês) ganha cada vez mais espaço na medicina. Na última semana, por exemplo, dois novos estudos reforçaram o poder do método. O primeiro, aliás, apontou uma evolução interessante. Cientistas da Universidade de Haifa, em Israel, descobriram que a técnica, quando usada em blogs pode ser tão ou mais eficaz que no papel. Os pesquisadores chegaram à conclusão após analisar a reação ao experimento por eles organizado com a participação de 161 adolescentes com ansiedade e fobia social. Os jovens foram divididos em grupos que receberam orientações distintas. Alguns, por exemplo, deveriam escrever em blogs abertos, com comentários, e outros, em blogs fechados.

Depois de dez semanas escrevendo pelo menos duas vezes semanalmente, todos apresentaram melhora na autoestima, na autoconfiança e na capacidade de se sentir confortável em situações sociais que evitavam antes de iniciar a prática da escrita. Mas aqueles que escreveram em blogs com espaço para comentários manifestaram melhora mais significativa. De acordo com os autores do estudo, as características da internet e das qualidades da “expressive writing” podem ser potencializadas no blog. “Ele fornece uma combinação única de espaço confortável para a autoexpressão com um ambiente de interação social”, escreveram.

O segundo trabalho, da Universidade de Waterloo, no Canadá, mostrou a eficiência da técnica no controle do peso. Nele, a psicóloga Christine Logel demonstrou que as mulheres convidadas a escrever sobre seus sentimentos e valores perderam, em média, 3,4 quilos, enquanto as que não participaram da oficina ganharam cerca de 2,7 quilos. “Escrever funcionou como um incentivo”, disse Christine à ISTOÉ. A pesquisadora observou que a escrita ajudou as participantes a se sentir bem com elas próprias na medida em que descreviam o que consideravam importante em suas vidas. “E elas não utilizaram a comida como escape”, explicou Christine.

De fato, um estudo da Universidade de Baylor (EUA) com 48 portadores de câncer de testículo revelou que escrever sobre as emoções relacionadas à doença acelerou a recuperação dos participantes. Como justificativa, os cientistas levantaram a hipótese de que, como a escrita auxiliou no controle do estresse ocasionado pela enfermidade, o sistema imunológico entrou em equilíbrio. Resultado: ele deixa de reconhecer como nocivos agentes inofensivos, causando complicações como alergias, e continua a luta contra a doença.

Outras pesquisas também demonstraram os efeitos positivos da escrita no tratamento de doenças infecciosas, como a Aids, e diversos tipos de câncer. A dona de casa Izabel Modesto de Araújo, 47 anos, de São Paulo, por exemplo, encontrou na escrita uma maneira de amenizar o sofrimento após passar por três cirurgias para retirar um tumor cerebral. No processo de recuperação, ela começou a escrever já na cama do hospital. Acabou escrevendo dois livros e mantém o hábito da escrita até hoje, já recuperada. “Mesmo nos momentos mais difíceis não precisei tomar antidepressivo”, conta. “Escrever é minha terapia.”

No Rio Grande do Sul, a psicóloga Ana Maria Rossi, presidente da seção brasileira da International Stress Management Association, organização internacional para o controle do estresse, indica a escrita terapêutica para pacientes que não conseguem lidar com o acesso de raiva. “Ela tem efeitos positivos naquelas pessoas com dificuldade de descrever a experiência sem se descontrolar ou ficar extremamente emocionadas.”

Não basta, entretanto, apenas escrever. “É preciso ter um propósito. A escrita organiza o pensamento e facilita o autoconhecimento”, diz a professora Solange Pereira Pinho, que comanda uma oficina de escrita terapêutica em Brasília. Isso é possibilitado porque, sob orientação correta, o paciente não somente descreve a reação ao evento, mas o que foi sentido no momento.

Também não é qualquer conteúdo que surtirá resultados positivos. Na literatura médica, as investigações do pesquisador americano James Pennebaker, que descreveu o poder da escrita terapêutica em “Abra o Seu Coração: O Poder da Cura Através da Expressão das Emoções” (Editora Gente), apontaram que escrever sobre os aspectos emocionais afeta a saúde positivamente, mas descrever apenas os fatos da experiência traumática pode surtir o efeito contrário.  

O Tratamento pela Escrita - Reescrevendo sua história

REGISTRO -  Izabel escreve até hoje sobre as emoções que 
sente após ter sido tratada de um tumor cerebral


Por Monique Oliveira, da Revista Istoé

Há muito a psicologia clínica indica que mudar as emoções diante de um evento é uma maneira eficaz de conseguir viver em paz com uma experiência dolorosa. Agora, a ciência confirma que a escrita não só é uma ferramenta importante nesse processo como pode alterar as respostas fisiológicas a doenças crônicas, melhorando o quadro de saúde de pacientes. Ao escrever os doentes tornam suportável uma experiência tida anteriormente como pesada demais. Ela passa a integrar a biografia de quem vive o trauma, abrindo o caminho para a recuperação, como se cada um reescrevesse sua história.

Por essa razão, a chamada “expressive writing” (algo como expressão pela escrita, em inglês) ganha cada vez mais espaço na medicina. Na última semana, por exemplo, dois novos estudos reforçaram o poder do método. O primeiro, aliás, apontou uma evolução interessante. Cientistas da Universidade de Haifa, em Israel, descobriram que a técnica, quando usada em blogs pode ser tão ou mais eficaz que no papel. Os pesquisadores chegaram à conclusão após analisar a reação ao experimento por eles organizado com a participação de 161 adolescentes com ansiedade e fobia social. Os jovens foram divididos em grupos que receberam orientações distintas. Alguns, por exemplo, deveriam escrever em blogs abertos, com comentários, e outros, em blogs fechados.

Depois de dez semanas escrevendo pelo menos duas vezes semanalmente, todos apresentaram melhora na autoestima, na autoconfiança e na capacidade de se sentir confortável em situações sociais que evitavam antes de iniciar a prática da escrita. Mas aqueles que escreveram em blogs com espaço para comentários manifestaram melhora mais significativa. De acordo com os autores do estudo, as características da internet e das qualidades da “expressive writing” podem ser potencializadas no blog. “Ele fornece uma combinação única de espaço confortável para a autoexpressão com um ambiente de interação social”, escreveram.

O segundo trabalho, da Universidade de Waterloo, no Canadá, mostrou a eficiência da técnica no controle do peso. Nele, a psicóloga Christine Logel demonstrou que as mulheres convidadas a escrever sobre seus sentimentos e valores perderam, em média, 3,4 quilos, enquanto as que não participaram da oficina ganharam cerca de 2,7 quilos. “Escrever funcionou como um incentivo”, disse Christine à ISTOÉ. A pesquisadora observou que a escrita ajudou as participantes a se sentir bem com elas próprias na medida em que descreviam o que consideravam importante em suas vidas. “E elas não utilizaram a comida como escape”, explicou Christine.

De fato, um estudo da Universidade de Baylor (EUA) com 48 portadores de câncer de testículo revelou que escrever sobre as emoções relacionadas à doença acelerou a recuperação dos participantes. Como justificativa, os cientistas levantaram a hipótese de que, como a escrita auxiliou no controle do estresse ocasionado pela enfermidade, o sistema imunológico entrou em equilíbrio. Resultado: ele deixa de reconhecer como nocivos agentes inofensivos, causando complicações como alergias, e continua a luta contra a doença.

Outras pesquisas também demonstraram os efeitos positivos da escrita no tratamento de doenças infecciosas, como a Aids, e diversos tipos de câncer. A dona de casa Izabel Modesto de Araújo, 47 anos, de São Paulo, por exemplo, encontrou na escrita uma maneira de amenizar o sofrimento após passar por três cirurgias para retirar um tumor cerebral. No processo de recuperação, ela começou a escrever já na cama do hospital. Acabou escrevendo dois livros e mantém o hábito da escrita até hoje, já recuperada. “Mesmo nos momentos mais difíceis não precisei tomar antidepressivo”, conta. “Escrever é minha terapia.”

No Rio Grande do Sul, a psicóloga Ana Maria Rossi, presidente da seção brasileira da International Stress Management Association, organização internacional para o controle do estresse, indica a escrita terapêutica para pacientes que não conseguem lidar com o acesso de raiva. “Ela tem efeitos positivos naquelas pessoas com dificuldade de descrever a experiência sem se descontrolar ou ficar extremamente emocionadas.”

Não basta, entretanto, apenas escrever. “É preciso ter um propósito. A escrita organiza o pensamento e facilita o autoconhecimento”, diz a professora Solange Pereira Pinho, que comanda uma oficina de escrita terapêutica em Brasília. Isso é possibilitado porque, sob orientação correta, o paciente não somente descreve a reação ao evento, mas o que foi sentido no momento.

Também não é qualquer conteúdo que surtirá resultados positivos. Na literatura médica, as investigações do pesquisador americano James Pennebaker, que descreveu o poder da escrita terapêutica em “Abra o Seu Coração: O Poder da Cura Através da Expressão das Emoções” (Editora Gente), apontaram que escrever sobre os aspectos emocionais afeta a saúde positivamente, mas descrever apenas os fatos da experiência traumática pode surtir o efeito contrário.  

O Tratamento pela Escrita - Reescrevendo sua história

REGISTRO -  Izabel escreve até hoje sobre as emoções que 
sente após ter sido tratada de um tumor cerebral



Por Monique Oliveira, da Revista Istoé

Há muito a psicologia clínica indica que mudar as emoções diante de um evento é uma maneira eficaz de conseguir viver em paz com uma experiência dolorosa. Agora, a ciência confirma que a escrita não só é uma ferramenta importante nesse processo como pode alterar as respostas fisiológicas a doenças crônicas, melhorando o quadro de saúde de pacientes. Ao escrever os doentes tornam suportável uma experiência tida anteriormente como pesada demais. Ela passa a integrar a biografia de quem vive o trauma, abrindo o caminho para a recuperação, como se cada um reescrevesse sua história.

Por essa razão, a chamada “expressive writing” (algo como expressão pela escrita, em inglês) ganha cada vez mais espaço na medicina. Na última semana, por exemplo, dois novos estudos reforçaram o poder do método. O primeiro, aliás, apontou uma evolução interessante. Cientistas da Universidade de Haifa, em Israel, descobriram que a técnica, quando usada em blogs pode ser tão ou mais eficaz que no papel. Os pesquisadores chegaram à conclusão após analisar a reação ao experimento por eles organizado com a participação de 161 adolescentes com ansiedade e fobia social. Os jovens foram divididos em grupos que receberam orientações distintas. Alguns, por exemplo, deveriam escrever em blogs abertos, com comentários, e outros, em blogs fechados.

Depois de dez semanas escrevendo pelo menos duas vezes semanalmente, todos apresentaram melhora na autoestima, na autoconfiança e na capacidade de se sentir confortável em situações sociais que evitavam antes de iniciar a prática da escrita. Mas aqueles que escreveram em blogs com espaço para comentários manifestaram melhora mais significativa. De acordo com os autores do estudo, as características da internet e das qualidades da “expressive writing” podem ser potencializadas no blog. “Ele fornece uma combinação única de espaço confortável para a autoexpressão com um ambiente de interação social”, escreveram.

O segundo trabalho, da Universidade de Waterloo, no Canadá, mostrou a eficiência da técnica no controle do peso. Nele, a psicóloga Christine Logel demonstrou que as mulheres convidadas a escrever sobre seus sentimentos e valores perderam, em média, 3,4 quilos, enquanto as que não participaram da oficina ganharam cerca de 2,7 quilos. “Escrever funcionou como um incentivo”, disse Christine à ISTOÉ. A pesquisadora observou que a escrita ajudou as participantes a se sentir bem com elas próprias na medida em que descreviam o que consideravam importante em suas vidas. “E elas não utilizaram a comida como escape”, explicou Christine.

De fato, um estudo da Universidade de Baylor (EUA) com 48 portadores de câncer de testículo revelou que escrever sobre as emoções relacionadas à doença acelerou a recuperação dos participantes. Como justificativa, os cientistas levantaram a hipótese de que, como a escrita auxiliou no controle do estresse ocasionado pela enfermidade, o sistema imunológico entrou em equilíbrio. Resultado: ele deixa de reconhecer como nocivos agentes inofensivos, causando complicações como alergias, e continua a luta contra a doença.

Outras pesquisas também demonstraram os efeitos positivos da escrita no tratamento de doenças infecciosas, como a Aids, e diversos tipos de câncer. A dona de casa Izabel Modesto de Araújo, 47 anos, de São Paulo, por exemplo, encontrou na escrita uma maneira de amenizar o sofrimento após passar por três cirurgias para retirar um tumor cerebral. No processo de recuperação, ela começou a escrever já na cama do hospital. Acabou escrevendo dois livros e mantém o hábito da escrita até hoje, já recuperada. “Mesmo nos momentos mais difíceis não precisei tomar antidepressivo”, conta. “Escrever é minha terapia.”

No Rio Grande do Sul, a psicóloga Ana Maria Rossi, presidente da seção brasileira da International Stress Management Association, organização internacional para o controle do estresse, indica a escrita terapêutica para pacientes que não conseguem lidar com o acesso de raiva. “Ela tem efeitos positivos naquelas pessoas com dificuldade de descrever a experiência sem se descontrolar ou ficar extremamente emocionadas.”

Não basta, entretanto, apenas escrever. “É preciso ter um propósito. A escrita organiza o pensamento e facilita o autoconhecimento”, diz a professora Solange Pereira Pinho, que comanda uma oficina de escrita terapêutica em Brasília. Isso é possibilitado porque, sob orientação correta, o paciente não somente descreve a reação ao evento, mas o que foi sentido no momento.

Também não é qualquer conteúdo que surtirá resultados positivos. Na literatura médica, as investigações do pesquisador americano James Pennebaker, que descreveu o poder da escrita terapêutica em “Abra o Seu Coração: O Poder da Cura Através da Expressão das Emoções” (Editora Gente), apontaram que escrever sobre os aspectos emocionais afeta a saúde positivamente, mas descrever apenas os fatos da experiência traumática pode surtir o efeito contrário.  

O Tratamento pela Escrita - Reescrevendo sua história


REGISTRO
Izabel escreve até hoje sobre as emoções que 
sente após ter sido tratada de um tumor cerebral



Por Monique Oliveira, da Revista Istoé

Há muito a psicologia clínica indica que mudar as emoções diante de um evento é uma maneira eficaz de conseguir viver em paz com uma experiência dolorosa. Agora, a ciência confirma que a escrita não só é uma ferramenta importante nesse processo como pode alterar as respostas fisiológicas a doenças crônicas, melhorando o quadro de saúde de pacientes. Ao escrever os doentes tornam suportável uma experiência tida anteriormente como pesada demais. Ela passa a integrar a biografia de quem vive o trauma, abrindo o caminho para a recuperação, como se cada um reescrevesse sua história.

Por essa razão, a chamada “expressive writing” (algo como expressão pela escrita, em inglês) ganha cada vez mais espaço na medicina. Na última semana, por exemplo, dois novos estudos reforçaram o poder do método. O primeiro, aliás, apontou uma evolução interessante. Cientistas da Universidade de Haifa, em Israel, descobriram que a técnica, quando usada em blogs pode ser tão ou mais eficaz que no papel. Os pesquisadores chegaram à conclusão após analisar a reação ao experimento por eles organizado com a participação de 161 adolescentes com ansiedade e fobia social. Os jovens foram divididos em grupos que receberam orientações distintas. Alguns, por exemplo, deveriam escrever em blogs abertos, com comentários, e outros, em blogs fechados.

Depois de dez semanas escrevendo pelo menos duas vezes semanalmente, todos apresentaram melhora na autoestima, na autoconfiança e na capacidade de se sentir confortável em situações sociais que evitavam antes de iniciar a prática da escrita. Mas aqueles que escreveram em blogs com espaço para comentários manifestaram melhora mais significativa. De acordo com os autores do estudo, as características da internet e das qualidades da “expressive writing” podem ser potencializadas no blog. “Ele fornece uma combinação única de espaço confortável para a autoexpressão com um ambiente de interação social”, escreveram.

O segundo trabalho, da Universidade de Waterloo, no Canadá, mostrou a eficiência da técnica no controle do peso. Nele, a psicóloga Christine Logel demonstrou que as mulheres convidadas a escrever sobre seus sentimentos e valores perderam, em média, 3,4 quilos, enquanto as que não participaram da oficina ganharam cerca de 2,7 quilos. “Escrever funcionou como um incentivo”, disse Christine à ISTOÉ. A pesquisadora observou que a escrita ajudou as participantes a se sentir bem com elas próprias na medida em que descreviam o que consideravam importante em suas vidas. “E elas não utilizaram a comida como escape”, explicou Christine.

De fato, um estudo da Universidade de Baylor (EUA) com 48 portadores de câncer de testículo revelou que escrever sobre as emoções relacionadas à doença acelerou a recuperação dos participantes. Como justificativa, os cientistas levantaram a hipótese de que, como a escrita auxiliou no controle do estresse ocasionado pela enfermidade, o sistema imunológico entrou em equilíbrio. Resultado: ele deixa de reconhecer como nocivos agentes inofensivos, causando complicações como alergias, e continua a luta contra a doença.

Outras pesquisas também demonstraram os efeitos positivos da escrita no tratamento de doenças infecciosas, como a Aids, e diversos tipos de câncer. A dona de casa Izabel Modesto de Araújo, 47 anos, de São Paulo, por exemplo, encontrou na escrita uma maneira de amenizar o sofrimento após passar por três cirurgias para retirar um tumor cerebral. No processo de recuperação, ela começou a escrever já na cama do hospital. Acabou escrevendo dois livros e mantém o hábito da escrita até hoje, já recuperada. “Mesmo nos momentos mais difíceis não precisei tomar antidepressivo”, conta. “Escrever é minha terapia.”

No Rio Grande do Sul, a psicóloga Ana Maria Rossi, presidente da seção brasileira da International Stress Management Association, organização internacional para o controle do estresse, indica a escrita terapêutica para pacientes que não conseguem lidar com o acesso de raiva. “Ela tem efeitos positivos naquelas pessoas com dificuldade de descrever a experiência sem se descontrolar ou ficar extremamente emocionadas.”

Não basta, entretanto, apenas escrever. “É preciso ter um propósito. A escrita organiza o pensamento e facilita o autoconhecimento”, diz a professora Solange Pereira Pinho, que comanda uma oficina de escrita terapêutica em Brasília. Isso é possibilitado porque, sob orientação correta, o paciente não somente descreve a reação ao evento, mas o que foi sentido no momento.

Também não é qualquer conteúdo que surtirá resultados positivos. Na literatura médica, as investigações do pesquisador americano James Pennebaker, que descreveu o poder da escrita terapêutica em “Abra o Seu Coração: O Poder da Cura Através da Expressão das Emoções” (Editora Gente), apontaram que escrever sobre os aspectos emocionais afeta a saúde positivamente, mas descrever apenas os fatos da experiência traumática pode surtir o efeito contrário.  

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Lévi-Strauss - Grande escritor na arte da retórica

Por Perry Anderson, da Revista Piauí 

O antropólogo mais famoso do século XX poderia intimidar qualquer candidato a biógrafo. Claude Lévi-Strauss, que morreu há dois anos, negava que sua pessoa tivesse qualquer interesse. Dizia que lembrava pouco de seu passado e tinha a sensação de que não havia escrito os próprios livros. Segundo suas palavras, ele era apenas uma “encruzilhada passiva” onde “coisas aconteciam”: “Eu nunca tive, e ainda não tenho, a percepção de sentir minha identidade pessoal. Eu me vejo como o lugar onde alguma coisa está acontecendo, mas não existe um ‘eu’.”

Essas afirmativas tampouco eram meras confissões pessoais. Seu sistema intelectual baseava-se numa rejeição radical da significação do sujeito e até mesmo de sua realidade. Essa dupla barreira seria obstáculo suficiente para uma biografia. Mas há outro obstáculo, ainda mais difícil: paradoxalmente, Lévi-Strauss é também autor de um livro de memórias, Tristes Trópicos, uma obra-prima literária incontestável, na qual ele definiu as experiências que considerava decisivas de sua vida. Quem poderia fazer melhor? Com certeza, nenhum cronista convencional. Na cultura francesa, onde há muito tempo a arte da biografia é notoriamente fraca, a única tentativa de traçar um retrato de corpo inteiro do antropólogo, feita por Denis Bertholet em 2003, é testemunho suficiente dessa deficiência.

Patrick Wilcken desafiou todas as dificuldades. A obra "Claude Lévi-Strauss: O Poeta no Laboratório" é ao mesmo tempo uma biografia e um estudo crítico do pensador do mais alto nível. Gracioso e vívido como narrativa, é também um modelo de apreciação intelectual. Livre tanto do impulso reverencial como da tentação de desmascarar, Wilcken produziu um relato maravilhosamente tranquilo e lúcido da vida e do pensamento de seu biografado.

A história que ele conta pode ser dividida em cinco partes. Nascido em 1908, filho de um pintor – que logo ficou démodé– e apreciador de música, Lévi-Strauss foi um socialista militante em sua juventude. Atraído pelas artes, formou-se em filosofia numa época de fermento vanguardista e ausência de fronteiras disciplinares rígidas. Seu primeiro artigo publicado foi sobre Babeuf, o precursor do comunismo, e sua dissertação, sobre o marxismo. Aos 26 anos, era professor de um liceu provincial quando lhe ofereceram subitamente a oportunidade de se juntar a um pequeno grupo de estudiosos franceses, do qual fazia parte Fernand Braudel, que iria dar aulas na recém-fundada Universidade de São Paulo. O patrono deste convite foi seu ex-orientador, o sociólogo Célestin Bouglé, colaborador de Émile Durkheim, e a matéria que escolheu para lecionar em São Paulo foi sociologia.

Mais tarde, ele iniciaria Tristes Trópicos, com as célebres palavras: “Odeio as viagens e os exploradores.” Mas isso era pura provocação. Entediado e inquieto na França, como muitos intelectuais de sua geração (André Malraux e Paul Nizan já tinham feito seus nomes com façanhas no exterior), Lévi-Strauss confessou honestamente em entrevista a Didier Eribon: “Eu estava em um estado de excitação intelectual intensa. Sentia-me revivendo as aventuras dos primeiros viajantes do século XVI. Por minha conta, descobria o Novo Mundo. Tudo me parecia fabuloso: as paisagens, os animais, as plantas.”

Nesse ponto, Wilcken, autor de um belo estudo sobre a corte portuguesa no Rio de Janeiro, tem a enorme vantagem de ter um conhecimento profundo do país em que Lévi-Strauss desembarcou. Pela primeira vez, a experiência que o transformou em antropólogo é contextualizada de forma mais adequada. Na França, a sociologia de Durkheim, e depois a de Mauss, tratava indiferentemente de sociedades modernas e “primitivas” – isto é, pré-letradas –, de um modo que o trabalho de mentalidade mais histórica de Weber ou Sombart na Alemanha não se permitia. A etnologia era mais um campo frouxo da sociologia do que uma disciplina distinta. Desse modo, o estudo de tribos locais era, em certo sentido, o caminho óbvio para Lévi-Strauss, se ele quisesse capitalizar seu tempo no Brasil para avançar sua carreira na França. Também se sentia atraídopelas artes – não demorou para que ele e sua esposa passassem a frequentar a roda em torno de Mário de Andrade, poeta líder do Brasil modernista, de quem o casal se tornou amigo – e alimentava ambições políticas – embora indiferentes à cena local, onde um levante comunista explodiu após sua chegada e uma ditadura modelada nos regimes de Salazar e Mussolini se instalou não muito tempo depois. Em 1936, quando a Frente Popular chegou ao poder na França, ele ficou decepcionado por não ser chamado pelo Ministério socialista. Foi então que decidiu abandonar a ideia de uma carreira política. A exploração etnográfica do interior do Brasil tornou-se a alternativa.

Vinte anos mais tarde, com a publicação de Tristes Trópicos, as incursões aos kadiwéu, bororo e nambikwara se tornaram lendárias. A reconstrução meticulosa que Wilcken faz dessas incursões, objetiva mas nunca insensível, mostra a realidade. Pelos padrões contemporâneos, foram visitas breves, itinerantes, que envolveram tanto um trabalho de conjectura quanto de pesquisa de campo, num sentido moderno. Pouco familiarizado com o português, Lévi-Strauss não conhecia nenhuma língua indígena e não passou muito tempo com qualquer dos grupos nativos que encontrou. Tampouco sua expedição principal, em 1938, teve alguma semelhança com a peregrinação solitária implicitamente sugerida por seu livro de memórias. Nas palavras de Wilcken:

Quando o grupo e os equipamentos foram finalmente reunidos em campos dos arredores de Cuiabá, os animais de carga, as caixas, os sacos e as selas, os homens barbudos de calções folgados de algodão e botas de couro pareciam mais uma feira ambulante de interior do que uma expedição científica. Nas páginas de Tristes Trópicos, esse grande elenco de apoio muitas vezes desaparece no fundo da cena. Na realidade, a expedição da serra do Norte estava tão longe do padrão etnográfico de Malinowski – o solitário do início do século xx que aprendia meticulosamente a língua local e mergulhava em sua cultura – quanto possível. Em contraste com a jornada conradiana aos extremos da humanidade, na maior parte do tempo, o séquito de Lévi-Strauss era mais numeroso do que os nativos que ele tentava estudar.

Mas o tom de Wilcken não é reprovador. Quaisquer que sejam suas falhas, a expedição não foi somente complicada e perigosa, mas produtiva, fornecendo a Lévi-Strauss uma quantidade de hipóteses imaginativas que lhe seriam muito úteis quando chegou ao seu verdadeiro campo de pesquisa, milhares de quilômetros longe dos arbustos ou da selva.

De volta à França na primavera de 1939, com 30 anos recém-completados e o cérebro ainda ocupado com o que tinha visto, estava tão despolitizado que não percebeu a iminência da guerra na Europa, nem se deu conta das realidades da vitória nazista e do governo colaboracionista de Vichy: em 1940, tentou – e felizmente não conseguiu – voltar para a Paris ocupada como professor, quando os judeus já estavam em risco. Demitido pelo regime de Pétain, teve o visto de regresso ao Brasil negado, mas conseguiu um convite da New School for Social Research de Nova York, e (ajudado pelas conexões de uma tia rica nos Estados Unidos) partiu de Marselha em um navio onde estavam, entre outros refugiados, André Breton e Victor Serge, aventura retratada em um dos episódios mais saborosos de Tristes Trópicos. Ao chegar finalmente a Nova York, Manhattan foi, nas palavras de Wilcken, mais do que o Mato Grosso, “seu verdadeiro choque cultural”.

Ali, em meio a uma comunidade de expatriados franceses bem maior do que a de São Paulo, ele se incorporou ao ambiente vanguardista dos surrealistas – Max Ernst, Yves Tanguy, André Masson, Roberto Matta, para não falar do próprio Breton – para os quais a antropologia e a psicanálise eram as chaves para as fontes inconscientes da existência. Ele havia pintado quando menino; no Brasil, começara a escrever uma peça no espírito de Corneille; na França, iniciara um romance no estilo de Conrad. Em Nova York, desistiu dessas ambições, mas aprendeu a investir a sensibilidade que estava por trás delas (agora moduladas pelo novo cenário: “Os surrealistas enriqueceram e refinaram meu gosto estético”) em formas que seriam discursivas, em vez de criativas.

A mudança decisiva, no entanto, veio de duas outras direções: o encontro com a riqueza empírica da etnologia americana, em grande parte reunida por Franz Boas, que ainda estava vivo em Nova York, e as perspectivas teóricas do círculo linguístico de Praga, trazidas para a América por Roman Jakobson, que se tornou seu amigo íntimo. Nada disso era conhecido na França. Enquanto dominava a primeira na Biblioteca Pública de Nova York, Lévi-Strauss absorvia a segunda, que passou a ser a estrutura fundamental de seu pensamento a partir de então.

Cerca de sete anos mais tarde – era então adido cultural francês, instalado numa mansão da Quinta Avenida – sua fusão das duas rendeu As Estruturas Elementares do Parentesco, publicado logo após seu retorno a Paris, em 1948. Nesse enorme compêndio, que procurava sistematizar em um conjunto de padrões inter-relacionados uma vasta gama de sistemas de matrimônio do mundo pré-letrado conhecido, ele sustentava que o tabu do incesto era um universal antropológico que marcava a ruptura entre a natureza e a cultura que tornava possível a sociedade humana. Embora nem todos os achados sobre os quais o livro se baseava fossem corretos, e nem todas as suas interpretações fossem sempre confiáveis, nada como as Estruturas Elementares havia sido tentado antes. Nas palavras de Wilcken: “Sua originalidade, a firmeza de suas afirmações, o senso de uma reorientação teórica há muito tempo necessária fizeram dele um ponto de referência de seu tempo.”

A maior parte dessa obra talvez fosse impenetravelmente técnica, mas sua tese central era de fácil compreensão, por incrível que pareça. Demoraria algumas décadas para que sua premissa básica se mostrasse errada: historicamente, não houve proibição universal do incesto e algumas sociedades, como a Pérsia e os Egito antigos, até mesmo o fruíam.

Quando Estruturas Elementares foi publicado, Lévi-Strauss ainda era, do ponto de vista acadêmico, um estranho na França. O livro ganhou fortuna pública graças a uma resenha brilhante feita em Les Temps Modernes por Simone de Beauvoir, outrora colega de Lévi-Strauss, que havia consultado o manuscrito ao escrever O Segundo Sexo. Sua aceitação acadêmica foi mais lenta. Tendo sido rejeitado duas vezes pelo Collège de France, Lévi-Strauss mudou seu foco do parentesco para os mitos e, em 1952, publicou seu primeiro ensaio voltado diretamente para um público mais amplo, Raça e História. Nele, esvaziava a pretensão ocidental de superioridade cognitiva sobre as sociedades pré-letradas; a chegada da indústria e da ciência modernas era resultado de combinações aleatórias na mesa de roleta do tempo, em vez de consequência de alguma dinâmica interna histórica.

Três anos depois, veio a revelação de seu excepcional talento literário, com os soturnos fogos de artifício de Tristes Trópicos– uma meditação filosófica tanto quanto, ou mais do que, um livro de memórias antropológicas. Sob o signo de Lucrécio e Rousseau, em vez de Durkheim, ele mostrava seu período no Brasil como uma destruição implacável de ilusões românticas, mas que era também um rito de passagem fabuloso para verdades sobre a humanidade e seu lugar no universo, reprimida pela húbris metropolitana. De sua segunda e mais significativa formação como etnólogo, em Nova York, ele não dizia nada. Para o método, reconhecia três “amantes”: Marx, Freud e a geologia, cada um explorando estratos escondidos sob a superfície da realidade. Em 1955, tratava-se de um credo que não diminuía o charme de seu livro. Por unanimidade, e compreensivelmente, Tristes Trópicos foi saudado como um clássico das letras francesas.

Naquela época, impressiona como eram íntimos os laços – por mais paradoxal que possa parecer, tendo em vista o antagonismo entre o estruturalismo e o existencialismo – que ligavam Lévi-Strauss à usina da cultura de esquerda liderada por Sartre. Não foi somente Simone de Beauvoir que se esforçou para pôr Estruturas Elementares no mapa. O Les Temps Modernes publicou um capítulo prévio de Tristes Trópicos, assim como textos posteriores bem conhecidos, como “A gesta de Asdiwal”.

A entrada de Lévi-Strauss no Collège de France, dez anos após sua primeira tentativa, foi orquestrada por Merleau-Ponty. A sensibilidade de Lévi-Strauss para perceber de onde sopravam os ventos desempenhou sem dúvida um papel nisso. Mas era também uma configuração intelectual não rara da Quarta República, marcada por alianças muitas vezes imprevisíveis e debates calorosos, que cairiam abruptamente em declínio com a instauração da Quinta República e a ascensão de De Gaulle ao poder.

Com essa mudança de regime, nasceu o estruturalismo propriamente dito. Em 1958, Lévi-Strauss publicou seu manifesto, na coletânea de ensaios intitulada Antropologia Estrutural. “Durante séculos as humanidades e as ciências sociais se resignaram a contemplar o mundo das ciências naturais e exatas como uma espécie de paraíso onde nunca entrariam”, ele declarou, mas “de repente, há uma pequena porta que se abre entre os dois campos, e é a linguística que fez isso”. Não apenas mitos ou lendas populares, mas, em princípio, qualquer fenômeno do mundo social ou cultural poderia ser mapeado e decodificado com o rigor dos fonemas. Desde Comte, o pensamento francês sempre teve uma vertente significativa de cientificismo. Ao anunciar uma antropologia equipada com a autoridade da linguística, Lévi-Strauss tentava torná-la dominante.

Por um tempo, ele fez isso com considerável sucesso, enquanto espíritos empreendedores se esforçavam para emular ou estender seu programa a uma ampla gama de áreas do conhecimento, enquanto ele consolidava sua hegemonia a partir de seu posto de comando no ápice da erudição francesa. Em uma performance de virtuose, O Pensamento Selvagem (1962) pretendia mostrar, simultaneamente, o estruturalismo inato dos sistemas classificatórios das sociedades pré-letradas e a futilidade das pretensões do marxismo – para não falar do existencialismo –, na pessoa de Sartre. Tratava-se, no entanto, de um edifício teórico que repousava sobre um alicerce frágil: a noção de que a linguagem oferecia uma analogia para o estudo de qualquer outro campo da vida social. O próprio Saussure, criador da linguística estrutural, havia expressamente advertido contra essa ilusão. Assim como a genética de hoje gerou esperançosos aplicadores da teoria da evolução a todos os campos imagináveis ​​das humanidades e ciências sociais, independentemente da falta de qualquer outra conexão entre elas que não seja metafórica, do mesmo modo, há meio século, a linguística cativou uma ampla gama de entusiastas que viram nela o “abre-te, sésamo” para a compreensão do mundo.

A contribuição do próprio Lévi-Strauss para essa expansão foi Mitológicas (1964-71), sua monumental tetralogia sobre os sistemas de mitos nas Américas: cerca de 2 mil páginas que supostamente põem a nu as propriedades universais da mente humana, idênticas nos mitos e seus analistas, desdobradas por ele em uma composição científica, melódica e autorreferente como a música.

No final dos anos 70, a onda estruturalista havia refluído e, por fim, Lévi-Strauss recuou das extravagâncias que havia ajudado a lançar, observando – quinze anos depois de O Pensamento Selvagem– queo estruturalismo não era mais que uma “imitação muito fraca e pálida do que as ciências duras estão fazendo”. E afirmou que havia simplesmente tentado encontrar algum tipo de ordem por trás da aparente desordem de seus materiais, sem impor quaisquer conclusões a eles.

Mais proeminente do que a retração teórica, talvez apenas tática, foi seu retrocesso político e cultural. Na velhice, o outrora simpatizante do socialismo e do surrealismo tornou-se cada vez mais conservador – um dos pilares da Académie Française, inimigo da arte moderna, eleitor moderado, admirador de Gobineau. Ainda assim, eram preferências de fundo, nas quais Lévi-Strauss não insistia muito. A estrela subsequente do estruturalismo inverteu essa trajetória, mas sem efeito intelectual melhor: Michel Foucault passou quase sem intervalo de uma “nova filosofia” bem-vista no Palácio do Eliseu [sede da Presidência da República] a uma “justiça popular” pregada pela Gauche Prolétarienne. Lévi-Strauss certamente sabia como promover a divulgação de suas ideias e defender seus próprios interesses, mas fazia isso dentro dos limites de certa reserva tradicional e dignidade antiquada. As piruetas do jovem exibicionista e sua sede de publicidade eram estranhas a ele. Consciente de como eram arbitrárias as arqueologias de Foucault, ele negou qualquer apoio institucional ao seu admirador.

O veredicto final do delicado e comovente livro de Patrick Wilcken é impecável. “Em um mundo de áreas do conhecimento cada vez mais especializadas, talvez não venha nunca mais a existir um corpo de trabalho de alcance e ambição tão estimulantes”; mas embora “as ideias de Lévi-Strauss tivessem grande amplitude e abrangência”, elas estavam em última análise instaladas em um “espaço intelectualmente claustrofóbico” – um “empreendimento de um único homem que se tornou tão absolutamente idiossincrático que era impossível se basear nele”. Como sistema, “o estruturalismo implicava profundidade, mas com seu jogo de signos sem referência, muitas vezes se parecia com derrapagem sobre vidro polido”. No entanto, “o que dava vida à produção de Lévi-Strauss, e introduzia o lirismo que confundiu seus críticos anglo-saxônicos, era um profundo interesse pela expressão e apreciação estética que corria em paralelocom o lado cognitivo de seu trabalho”. O antropólogo se via como um artista manqué. Mas Lévi-Strauss não era apenas um grande colecionador e tecelão de narrativas – “os mitos são objetos muito lindos”, observou ele, “e nunca nos cansamos de contemplá-los, manipulá-los”. O segundo verbo fala por si mesmo. Ele foi também um grande escritor na arte, longe de ser menor, da retórica. 

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Gal Costa - A Voz e o Computador

Por Pedro Alexandre Sanches, da Revista Bravo
Crédito da Foto: Gabriel Rinaldi

Até 2011, o mais célebre duelo com a tecnologia protagonizado por Gal Costa se chamava Meu Nome É Gal. A canção, de Roberto e Erasmo Carlos, está gravada na última faixa de seu disco de 1979, Gal Tropical. Então com 34 anos, ela usava a composição para esgrimir a própria voz com os acordes da guitarra de Robertinho de Recife, a garganta humana desafiando e superando os sons agudos produzidos pelo instrumento. Hoje com 66 anos, a cantora baiana atualiza a batalha de Meu Nome É Gal em seu novo trabalho, Recanto, um álbum todo tomado pelo confronto entre mulher e computador. Onde a guitarra elétrica esteve um dia, agora se encontram softwares como o Auto-Tune (um programa afinador de vozes e instrumentos), sintetizadores e baterias eletrônicas. Das 11 faixas que integram o CD, apenas uma não se utiliza desses recursos.
Mas a mais poderosa das máquinas com que Gal digladia é um homem: Caetano Veloso. Principal porta-voz do compositor conterrâneo desde as primeiras gravações, em 1965, ela havia registrado até aqui mais de oito dezenas de canções do amigo. Recanto expande a parceria: é o primeiro álbum de Gal formado exclusivamente por criações inéditas de Caetano. Aos 69 anos, o músico também atua como diretor artístico e produtor do projeto, dividindo a segunda função com seu filho mais velho, Moreno Veloso. Só havia ocupado tais posições num disco anterior de Gal, em 1974, o hippie e idílico Cantar.
De sonoridade bastante contemporânea, Recanto conduz a intérprete a um ambiente parecido com o que Caetano construiu em seus dois discos solo de estúdio mais recentes, Cê (2006) e Zii e Zie – Transambas (2009), invadidos por músicos da geração de seus filhos. Entre os jovens alquimistas que acompanham e modernizam a voz da “Vaca Profana” (como Caetano a nomeou em 1984), estão Moreno e Zeca Veloso (outro filho do baiano), Kassin, Pedro Sá, Davi Moraes (filho do cantor Moraes Moreira) e Donatinho (filho do pianista João Donato). Na seção “velha guarda”, bem mais discreta do que a outra, figuram instrumentistas de gerações anteriores, como Jaques Morelenbaum, ao violoncelo.
Quatro décadas e meia atrás, a guerra entre as violas enluaradas e as guitarras envenenadas marcou a geração heroica da MPB universitária. Ao se centrar no embate voz-computador, Recanto alude àquele período. Mas os tempos de 1967 estão mortos, e o novo confronto evoca mais uma proposta de pacto do que uma declaração de guerra. Por isso, talvez seja mais preciso falarmos em diálogo, e não em duelo, batalha, embate ou confronto.
A faixa Autotune Autoerótico é a que melhor traduz o espírito do disco. Gal a inicia forçando a voz, de modo a lembrar uma matrona do Recôncavo Baiano. A garganta experimenta andar na corda bamba entre a afinação e a desafinação e termina reprocessada pelo Auto-Tune, num efeito robótico que a veterana cantora norte-americana Cher inaugurou em 1998, no álbum bem mais deslavadamente pop Believe. “Não, o Autotune não basta pra fazer o canto andar/ pelos caminhos que levam à grande beleza”, avisa Gal, de maneira espertamente contraditória. Por um lado, desanca o afinador de voz. Por outro, faz uso dele para obter efeitos que não alcançaria naturalmente.
Há, no entanto, muitos outros núcleos de tensão criativa em Recanto, e dois dos maiores são Miami Maculelê e Neguinho. O primeiro obriga Gal a brincar com os sons eletrônicos e extremamente pop do funk carioca e dos fliperamas, enquanto a voz faz malabarismos com as sílabas de “são Dimas, Robin Hood e o anjo 45/ todos dançando comigo”. As citações conectam o Jorge Ben de 1969 (“Charles, anjo 45/ protetor dos fracos e dos oprimidos/ Robin Hood dos morros, rei da malandragem”) com os Racionais MC’s de 2002 (“aos 45 do segundo, arrependido/ é Dimas, o bandido/ primeiro vida loka da história”). O compositor baiano segue Mano Brown e equipara são Dimas, “o bom ladrão” do imaginário cristão, aos meninos das favelas brasileiras, enquanto prega a reconciliação entre o hip-hop paulistano e o funk carioca.
Neguinho é provavelmente o maior pulo do gato de Caetano no novo disco. A princípio, os versos parecem se referir a alguém que não é nem o compositor, nem a cantora, nem o público supostamente refinado que costuma acompanhá-los – uma referência muitas vezes crítica: “Neguinho compra três TVs de plasma, um carro GPS e acha que é feliz/ (...) neguinho vai pra Europa, States, Disney e volta cheio de si/ neguinho cata lixo no Jardim Gramacho”. Ao final, esclarece-se o enigma (“neguinho que eu falo é nós”) e a crítica vira autocrítica.
Outro ponto que aguça a reflexão em Recanto diz respeito tanto ao autor quanto a Gal (ou a qualquer um que os ouve). No disco Cê, Caetano despistava as dores de envelhecer com afirmações de potência sexual. Desta vez, porém, tais dores aparecem explícitas. “Tudo dói”, frase repetida inúmeras vezes pela cantora na faixa de mesmo nome, é exemplo que soaria quase engraçado, não fosse o tom soturno da gravação e os versos amaros: “Viver é um desastre que sucede a alguns”.

Tristeza Profunda
Se em 2005 a intérprete gravara uma composição de Caetano denominada Luto, hoje a canção Madre Deus vai mais longe. Mira a morte de frente, sem meios-tons, sob melodia monótona revestida de ruídos ríspidos, desagradáveis: “Meu corpo todo desmede-se/ despede-se de si”, “frente ao infindo/ costas contra o planeta/ já sou a seta sem direção/ instintos e sentidos extintos/ mas sei-me indo”.
Os temas de morte e envelhecimento são os mais nítidos, mas não os únicos a afirmar que a tristeza é um dos (muitos) legados tropicalistas – não estamos mais nos anos 1990, quando músicas como A Luz de Tieta (1996) diluíam a melancolia em profissão de fé na alegria feroz da axé music. Nessa linha, Recanto Escuro constitui outro dos núcleos nervosos do CD. A voz potente de Gal e a linda e grave melodia são perturbadas o tempo todo por interferências de rádio, ou agulhas raspando no vinil, ou coisa que o valha. “Eu venho de um recanto escuro”, “o álcool me faz chorar”, “só Deus sabe o duro que eu dei”, assume a voz sofrida da cantora.
“Tristeza profunda” é um termo que surge explícito em Segunda, a faixa de encerramento. É o único recanto totalmente orgânico, analógico de Recanto, com Moreno Veloso solando no violão, no violoncelo, no prato e na faca, num arranjo sertanejo-urbano, profundamente nordestino. A letra adota perspectiva proletária, de um(a) protagonista egresso(a) do processo de ascensão das classes C e D no Brasil. “Não vejo o nascer do dia/ mas pela Virgem Maria/ tenho dinheiro e patrão”, “eu mesmo sou mei galego/ o meu chefe no emprego/ é que é mulato pra negro:/ só ecos da escravidão”, “mas agora a minha sala/ tem geladeira de gala/ à dele quase se iguala/ muda o mundo em barafunda”.
Neguinho pode padecer de tristeza profunda, mas também luta bravamente para compreender a sociedade em que vive e para se transformar, como já fazia antes mesmo de se inventar tropicalista. Neguinho é Gal, é Caetano, é nós.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A querela psicanalítica do consumo

Por Christian Dunker, da Revista Cult

A ideia de consumo conspícuo foi introduzida por Veblen em 1899 para designar a atitude da classe média norte-americana interessada em adquirir produtos e bens com a função de assinalar sua posição social como classe “emergente”. O consumo conspícuo é um tipo de patologia do reconhecimento. O processo de escolha soa vulgar, a decisão de compra figura imprópria, a performance de uso é inautêntica, e o conjunto cai como “mostração”. Essa demanda de diferenciação realiza um esforço de ajustamento e o legítimo desejo de ser reconhecido como “alguém”. Ela é um apelo ético para suspender a indiferença ressentida que nos transforma em apenas “mais um indivíduo”. Uma aspiração estética genuína a sermos reconhecidos como “únicos” em nossa relação de consumo singular.
O que fazer quando o lugar de onde viemos não combina mais com a posição na qual nos encontramos? Esse é o elemento histórico decisivo na mudança do papel social da cultura na modernidade. Quando pessoas sem origem precisam tomar posição em meio a outras percebidas como donas do lugar, a cultura torna-se signo de ascensão social e terreno real da luta por reconhecimento. Começa a tensão entre cultura popular e erudita. Instala-se a querela do luxo, na qual o consumo é percebido como um mal necessário. A parábola da colmeia (Mandeville, 1714) estabelece a relação liberal canônica entre vícios privados e benefícios públicos. A falsa escolha forçada entre o consumo progressivo de bens inúteis e o entrevamento regressivo em uma cultura de subsistência.
Pelo consumo, três exigências se expressam: autenticidade, autonomia e não dependência. Daí que ele envolva três “soluções típicas” atinentes à forma como nos desligamos de um lugar de origem (não dependência), subjetivamos um complexo de desejos (autonomia) e destinamos o resíduo que acompanha a operação de consumo (autenticidade). Lacan argumentou que a psicanálise precisa fazer a crítica desses três ideais modernos: autonomia, independência e amor concluído (autenticidade). Mas ele pensava o problema do ponto de vista da produção e da autoridade simbólica necessária para sustentar as inversões entre desejo de reconhecimento, reconhecimento de desejo, assim como o destino do que sobra. Quando passamos da produção para o consumo, o terceiro termo ganha primazia. Na querela psicanalítica sobre o luxo, há os que consideram o consumo expressão maior de nossa orientação liberal subjetiva (autonomia), os que resistem de forma romântica a reduzir nossa liberdade a opções de compra (não dependência) e os que acreditam na mutação do supereu como expressão maior do empuxo ao consumo (inautenticidade).
À luz das querelas
Às vezes, o sentido das querelas é iluminar a posição do problema, mais do que decidir os termos de sua solução. Argumento que a controvérsia do consumo admite de uma falsa unidade de seu objeto. Por exemplo, o consumo conspícuo é uma marca dos que preferem “queimar pontes”, deixar as origens para trás, criando uma fuga para a frente como experiência compulsoriamente definida pela necessidade de inventar novos começos. O temor ao passado denuncia a iminente tragédia ou farsa. A coleção de signos funciona como certidão de acesso e antídoto contra a vergonha das origens – como se vê na trajetória de Kurt Cobain, que, apesar da carreira de sucesso, ressentia-se com a solidão.
Mas há o consumo que funciona para reforçar ou comemorar o reconhecimento da origem, impondo-a como decoração obrigatória da nova morada. Atormentados pela ideia de que o triunfo se tornará fracasso, encontram na solidez e permanência do lugar de onde vieram um antídoto para o sentimento de vazio. É o caso de muitos pais demasiadamente protetores, em seu esforço para recriar uma realidade artificial exclusiva para o “consumo interno”, tal qual se viu no caso de Michael Jackson.
Finalmente, há os que tomam como centro de gravidade narcísica o resíduo. Identificam-se com a própria contradição que define seu estilo errante e desprendido. Sem passado nem futuro, desdenham tanto dos ideais de progressivo ajustamento quanto das aspirações de inovação regressiva. São os autênticos que duplicam sua satisfação no consumo pela inveja que inspiram ou imaginam no outro. Consumo conspícuo, críptico e autêntico são modalidades do que Lacan chamou de semblante. Se os primeiros partilham das aparências e os segundos apegam-se à essência das imagens, os autênticos são os que entenderam o verdadeiro conceito de atitude, ou seja, de que a essência da relação de consumo é tomar a aparência como aparência, de acordo com a lição trazida por Lady Gaga.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Do mosteiro ao picadeiro - Umberto Eco, 80, e sua mente plural

Por Francesca Angiolillo, da Ilustríssima


"Todas as perguntas possíveis já me foram feitas", diz Umberto Eco, após terminar o café,   afundado numa poltrona da sala de visitas de sua casa, em Milão. A cigarrilha apagada, hábito de ex-fumante, pende de um lado da boca. "Só não me perguntam, sei lá, quais são os sete anões. Eu responderia que, quando tento me lembrar, sempre são seis."
Ao fundo, atrás de sua calva, vê-se, de um lado, uma coleção de conchas do mar, escrupulosamente organizadas; de outro, em atris, livros ilustrados do fim do século 19. São alguns dos originais de onde saíram as ilustrações de seu mais recente romance, "O Cemitério de Praga". 
O "Cemitério" foi recebido como a volta de um mestre ao gênero que o consagrou (após um romance nostálgico e de fundo autobiográfico, "A Misteriosa Chama da Rainha Loana"): uma trama de mistério, com crimes sangrentos e um protagonista que chega a ser comovente em sua pusilanimidade.
A entrevista tem por mote o lançamento do livro no Brasil mas também os 80 anos do escritor, nascido em 5 de janeiro de 1932, na piemontesa Alessandria, cuja fama vem dele e dos chapéus Borsalino. Em várias fotos para a imprensa, ele ostenta, com elegância algo zombeteira, um modelo negro da marca.

ROMANCE
Eco, o romancista, nasceu em 1980, após sobrevir-lhe o desejo de envenenar um monge: assim o escritor define o motor inicial de seu "O Nome da Rosa", best-seller de cifras milionárias, levado ao cinema em 1986 por Jean-Jacques Annaud, com Sean Connery e Christian Slater.
Àquela altura, o nome do professor italiano era já conhecido: foram muitos ensaios e títulos de teoria, da poética do escritor irlandês James Joyce ("Sou joyciano, não proustiano", diz, e exibe uma estante forrada de primeiras edições de "Ulysses" em diferentes idiomas) a análises da comunicação de massa (seu primeiro emprego pós-doutoramento em filosofia, em 1954, foi como editor de cultura num dos canais da rede televisiva RAI).
O manual "Como se Faz uma Tese", de 1977, ainda hoje é referência em cursos de ciências humanas. Mas o currículo de Eco faz com que ele frequente as bibliografias de muitas disciplinas que não só as de metodologia.
Umberto Eco navegou nas principais ondas que atravessaram os estudos da linguagem na segunda metade do século 20, do estruturalismo à teoria da recepção e à narratologia, parando às margens do pós-estruturalismo; cobriu da filosofia às tirinhas do Snoopy.
Cunhou expressões que se tornaram muletas do discurso universitário: atire a primeira pedra quem nunca disse que toda obra é "uma obra aberta" ou aquele que não juntou numa frase, dita à mesa do bar, "apocalípticos" e "integrados".
Foi a ficção, porém, que levou seu nome aos píncaros da cultura de massa.
No Brasil, "O Nome da Rosa" saiu em 1984 pela Nova Fronteira. A diretora editorial da casa, Leila Name, qualifica o livro como "uma bomba de sucesso" cujo efeito se multiplicou com o filme. Pelos registros da Nova Fronteira, a primeira investida de Eco na ficção teve no Brasil mais de 45 reimpressões e vendas acima de 600 mil exemplares.
Hoje, sua obra ficcional está toda na Record, que também lança alguns de seus livros de ensaios, como "A História da Beleza" e "A História da Feiura", almanaques eruditos de popularização da história cultural. Somados, seus títulos na casa venderam cerca de 550 mil exemplares -91 mil deles de "O Cemitério de Praga".
Sergio Machado, presidente do Grupo Editorial Record, lembra a aquisição de "O Pêndulo de Foucault", segundo romance de Eco, em um leilão -"via fax, telex"- comandado por seu pai, Alfredo Machado nos idos de 1988. A quantia acertada pelos direitos do segundo romance de Eco era uma cifra "inédita", US$ 130 mil (cerca de US$ 237 mil, em números corrigidos, o equivalente a R$ 420 mil).
"Na época, US$ 20 mil eram um absurdo", situa Machado. O editor se esquiva de fornecer valores atuais, mas diz que a soma paga por um livro de Eco "não anda para trás" e "vem subindo de forma consistente".
Dali em diante, tudo o que Eco escreveu atingiu números superlativos -inclusive o que menos vendeu na Record, "A Misteriosa Chama da Rainha Loana", com "apenas" 48 mil exemplares. "Este foi um pelo qual a gente pagou mais do que devia", diz o editor. "As pessoas querem mais do mesmo."
Eco não discorda. "Todos falam que escrevo romances eruditos, difíceis", diz o escritor. "Quando escrevi um fácil, que todo mundo entende, 'A Misteriosa Chama da Rainha Loana', foi o que menos vendeu. Dá para ver que sou um autor para masoquistas."

DAN BROWN
Muitos intelectuais, porém, não engolem a combinação de sucesso comercial e erudição de Eco, tachando-o de uma espécie de Dan Brown mais cultivado. O raciocínio é um velho conhecido no Brasil, onde serve para desqualificar, por exemplo, os romances de Chico Buarque: se o autor vende bem e é pop, mau sinal -só pode ser um picareta.
"Ter Umberto Eco nas estantes da sala é, para muitos, inclusive os que jamais leram uma linha desses livros, uma questão de 'status cult'", diz a professora Lucia Santaella, da PUC-SP, colega em semiótica de Eco, a quem tece "críticas até mesmo bastante severas". Para ela, o italiano é uma espécie de grife, que "compõe bem a pose dos pseudointelectuais que brilham nas grandes praças dos lançamentos do 'big show business'".
Um de seus detratores contumazes na Itália, o romano Alfonso Berardinelli, estrela da crítica italiana atual, diz -citando Kafka- que Eco está no centro do mundo, onde se acumula toda a sua imundície, "a prodigiosa escória".
"Escrevi pelo menos quatro ou cinco artigos e ensaios contra Eco", rememora à Folha. "Não posso dizer nada de novo; Eco me aborrece faz tempo, e o que eu tinha a dizer já disse há 20 ou 30 anos. Fico maravilhado em ver como agrada", afirma o autor de "Da Poesia à Prosa" (Cosac Naify).
"Parece engraçado e brilhante, mas na realidade é um professor que não cessa de mesclar erudição e piadas com veia estudantil. E sem fazer rir. É quase uma ofensa à literatura italiana que ele seja seu autor mais notável."
Berardinelli diz ainda não conhecer nenhum escritor -"nem na Itália, nem fora"- que goste mesmo de Eco. "Sua fama é puramente comercial. É um fenômeno de circo, um autor que impressiona professores de escola."

PICADEIRO
No meio do picadeiro pós-lançamento, Eco segue imperturbável: profere pausadamente um discurso que soa familiar, pois volta e meia as palavras se repetem em manifestações públicas e entrevistas.
Pudera: a vida literária muitas vezes rivaliza com a de um roqueiro, com cansativas turnês de lançamentos ("Voltei dos EUA com o ombro arruinado, depois de autografar 3.000 livros", conta) e solicitações para opinar publicamente sobre todo e qualquer fato relevante (menos sobre os sete anões).
Seu apartamento é uma grande biblioteca -são 30 mil volumes; outros 20 mil, estima, estão em sua casa de campo-, mas nada de labirintos compartimentados, apesar de o edifício ser um antigo hotel. À entrada, mapas antigos recebem o visitante; a sala é luminosa e ordenada, com móveis discretos e claros; nas paredes, arte contemporânea; pela janela vê-se a torre do castelo Sforzesco, famoso marco turístico milanês.
A antiga residência dos duques de Milão remonta à Idade Média, período dileto de Eco, que se doutorou pela Universidade de Turim em 1954 com uma tese sobre a questão estética em São Tomás de Aquino. Mas da fortaleza que foi, após múltiplos ataques e sucessivas reconstruções, praticamente nada de original resta.
"Os turistas vêm aqui ver o castelo, onde é tudo falso, e não vão a Brera, onde tem Rafaello, o Cristo de Mantegna, Piero Della Francesca", lamenta o escritor.

FALSÁRIO
O falso e o verdadeiro são um tópico da obra de Eco. Simone Simonini, o protagonista de "O Cemitério de Praga", é um falsário. Ou melhor, "o" falsário: Eco atribuiu a ele os grandes crimes contra a verdade que marcariam a virada para o século 20 e, mais que todos, os apócrifos "Protocolos dos Sábios de Sião", conjunto de escritos antissemitas que teriam servido a Hitler para a fundamentação do nazismo.
"Havendo-me ocupado de problemas de linguagem e comunicação desde 1975, escrevi que o que caracteriza toda forma de signo e de linguagem humana é a possibilidade de mentir. Um cão não mente jamais. Quando late, é porque tem alguém lá fora: nunca aconteceu de um cão latir para que se pense que há alguém lá fora, sem que haja -o homem sim."
"O problema da mentira implica o problema da falsificação. Entre as falsificações mais trágicas, eis os 'Protocolos dos Sábios de Sião', aos quais dediquei vários escritos. Acho que fiz também algumas descobertas -como a de que trata o romance, que uma das fontes era 'Joseph Balsamo', o livro de Dumas."
O romance de Alexandre Dumas, pai, de 1849, se inicia com uma cena em que maçons entronizam o protagonista em sua seita secreta. A descrição teria inspirado a conspiração de rabinos dos "Protocolos", forjada no cemitério judaico da capital tcheca, que se teriam congregado para tramar a dominação do mundo.
O "documento" (que difama os semitas "num patchwork contraditório que não se poderia levar a sério, mas que foi muito levado a sério") justificaria o ódio aos judeus e seu extermínio preventivo.
"Ninguém sabe como surgem os 'Protocolos': como nasceram, quem os fez, em quantas fases. Por isso fiquei livre para atribuir tudo a Simonini", diz. E explica que Simonini é o único personagem fictício no romance, um "feuilleton" oitocentista.
Ele frisa, porém que, Simonini, apesar de inventado, "é mais verdadeiro que os demais".
"Eu estava sempre pensando em pessoas que conhecemos, falsários, jornalistas vendidos, que sabemos quem são, até o nome e o sobrenome. Minha ambição seria que os leitores usassem o livro como um guia para visitar o mundo dizendo 'lá vai um Simonini'."
Eco arrisca uma leitura psicológica das motivações para a obsessão central de Simonini, que é o ódio aos judeus fomentado nele pelo avô desde a infância.
"Descobri que algumas pessoas acabam odiando alguém porque lhe fizeram mal -veja bem, não odeio alguém porque alguém me fez mal, mas porque eu lhe fiz mal e depois o odeio. Mas por quê? Porque tento esquecer que eu sou o culpado e tento me convencer de que ele merecia meu ódio."
E garante: "Aconteceu comigo também: gente que aprontou comigo depois escreveu artigos contra mim. Mas entendi que tinham sido desrespeitosos comigo e depois precisavam se justificar".
Como reza o título da mais recente coletânea de ensaios de Eco -o ainda inédito em português "Costruire il Nemico" (2011), no qual se reconhecem temas e aspectos de "O Cemitério de Praga": é preciso construir o inimigo.

CRÍTICA
Eco diz "desconfiar muito da chamada crítica militante, a que se faz nos jornais, em comparação com a crítica acadêmica".
"Antes, quando saía um livro, o diretor do jornal dava seis meses ao crítico para ler; não havia necessidade de falar dele no dia seguinte. Hoje o crítico lê sempre numa situação de pressa e fica sujeito à estação, à dor de cabeça, ao que comeu na noite anterior. Se tivesse tido seis meses, comendo cada dia algo diferente, a sua leitura seria mais equilibrada."
E, como que a precaver-se de um ataque, emenda: "Note-se que eu acho desequilibradas não só as críticas que falam mal de meus livros mas também as que falam bem; elas às vezes me irritam porque falam bem pelos motivos errados."
Ele se irrita, também, quando inquirido se existem de fato "motivos errados". Parece condenado a relembrar que a obra é aberta, sim, mas que a interpretação tem limites: "A minha posição é muito clara: não sou um desconstrutivista que acha que um texto pode ter qualquer significado e que cada um pode ler como quiser. A liberdade da leitura é sempre determinada pelo objeto que está lá."

SEMIÓTICA
Se a semiótica foi devorada por outros estudos e devolvida sob outros avatares acadêmicos, a culpa é em parte de Eco.
Com rara clareza numa ciência em que a obscuridade volta e meia era confundida com argúcia, o italiano aplicou conceitos da ciência dos signos em estudos amplamente difundidos e citados (mesmo que muitas vezes de orelhada) fora do âmbito dos semioticistas, alastrando-os para campos mais diversos e talvez menos cerebrais.
Sempre evocada quando se pensa em semiótica, sua produção, porém, não empolga seus pares. Para Lucia Santaella, o pensamento que ele produziu é "miscigenado": "Ele mistura indiscriminadamente correntes, autores, teorias, criando uma salada complexa e difícil de entender."
A professora não nega a Eco o papel de "intelectual engajado", que, "alerta, marca sua posição acerca dos eventos", "como um jornalista bem dotado".
"Ele é escritor prolífico. Nos inúmeros congressos de que participei em que ele estava presente, comentava-se que ele escrevia até nos táxis. De fato, ele tem a veia dos gênios. Sua genialidade é a do discurso", concede Santaella.

PARÓDIA
O discurso de Eco tem um aspecto brincalhão que parece atiçar parte da crítica contra ele e marca, por exemplo, seus dois "Diários Mínimos", divertidas coletâneas de paródias e pastiches intelectuais, que em maio ganham nova edição [Record, trad. Joana Angélica D'Avila Melo e Sergio Duarte, 560 págs., R$ 62,90; leia trecho de "Nonita" à pág. 10].
A despeito do lado gracioso, Eco tem para sua literatura pretensões nada triviais. Seus diversos ensaios sobre a leitura, como "O Papel do Leitor", e livros sobre o tema, como "A Obra Aberta" e "Lector in Fabula", talvez sejam o retrato do que o Eco ensaísta esperava do Eco romancista: a forja, no mundo real, de um leitor modelo.
"Que leitor modelo eu queria quando estava escrevendo?", inquire retoricamente Eco em seu "Pós-escrito a 'O Nome da Rosa'" (Nova Fronteira, 1985). "Um cúmplice, claro, que entrasse no meu jogo. Eu queria tornar-me completamente medieval e viver na Idade Média como se esta fosse minha época (e vice-versa)", escreve.
"Mas, ao mesmo tempo, eu queria, com todas as minhas forças, que se desenhasse uma figura de leitor que, superada a iniciação, se tornasse meu prisioneiro, ou melhor, prisioneiro do texto e pensasse não querer nada mais do que aquilo que o texto lhe oferecia."
Questionado se o teórico transparece no romancista, ele nega. Diz que, se é que se encontram reflexos de sua teoria na sua ficção, é "porque evidentemente eu não sou esquizofrênico": "Até os ginecologistas se apaixonam. Sustento que você pode ter a teoria que for, mas, quando lê, se aquilo o cativa, ao menos numa primeira fase da leitura esquece a teoria."
Berardinelli, seu crítico mais feroz, faz uma descrição tão ácida quanto acertada do que é tentar definir a produção de Eco.
Assim diz, no texto "Umberto Eco e Seu Pêndulo", publicado aqui em edição da revista "Remate de Males" organizada pela professora Maria Betânia Amoroso no primeiro semestre de 2005:
"Toda vez que se cai na armadilha de seguir enumerativamente a vertiginosa pluralidade da mente de Eco, se acaba por ter que desistir derrotado: estamos frente ao inesgotável [...]. Se eu também me pusesse a enumerar tudo aquilo que ele enumera não faria nada mais do que lhe fazer eco."