segunda-feira, 31 de outubro de 2011

70 anos de sacerdócio de Dom José Maria Pires



Com informações de Sampaio Geraldo Lopes Ribeiro

O Arcebispo Emérito da Paraíba, Dom José Maria Pires celebrará 70 anos de sacerdócio em dezembro. Dom José se notabilizou, sobretudo, pela sua presença e defesa junto aos perseguidos e oprimidos. Nos conflitos de terra, nas greves, invasões e até rebeliões carcerárias, ele levava sua palavra amiga e conciliadora para os excluídos. Em 2 de dezembro de 1965, com menos de 47 anos de idade,  Dom José foi escolhido Arcebispo da Paraíba. O fato é que permaneceu como Arcebispo Metropolitano da Paraíba até 29 de novembro de 1995, retirando-se, portanto, com a idade de quase 77 anos. Foram trinta anos dedicados a esse ofício e outros mais em favor do próximo.

Dom José veio de Minas Gerais, em março de 1966, transferido da Diocese de Araçuaí, no norte daquele estado, num tempo muito especial. Havia terminado há pouco o Concílio Vaticano II, que introduziu profundas mudanças na Igreja Católica. Dom José participou ativamente daquele Concílio e era, portanto, um dos responsáveis pela nova Igreja que então surgia. De outro lado, o Brasil, acabava de entrar no Regime Militar, que através do golpe de 31 de março de 1964, interrompeu o processo democrático em nosso país, seguindo-se diversos governos comandados por militares, por longos e tenebrosos anos, que levaram o Brasil ao caos: Inflação galopante, perseguições, prisões, torturas, pessoas desaparecidas, mortes de brasileiros que corajosamente enfrentavam o “monstro” tentando derrotá-lo para retornar o país ao caminho normal da democracia. As terras estavam nas mãos de poucos, enquanto muitos agricultores iam sendo expulsos do campo para as periferias das grandes cidades. A agricultura de subsistência foi sendo substituída pela plantação de capim e cana-de-açúcar.

Dentro deste contexto, portanto, chegou à Paraíba, Dom José Maria Pires. Um arcebispo negro, filho de pais pobres e que mais uma vez, em sua vida, iria encontrar obstáculos a ser ultrapassados, ante essa sua origem e mais, junto a um clero conservador, ainda resistente às novas mudanças. Diante desse clima, o novo Arcebispo logo se posicionou ao lado do mais fraco. Despojou-se de seu Palácio, onde sempre moraram os arcebispos, manteve, durante todo o episcopado um carro simples, sem nenhum acessório de luxo, a não ser um rádio AM para notícias e futebol enquanto viajava. Era sempre dirigido por ele. E com a violenta censura imposta à impressa falada e escrita, Dom José era a voz que se podia ouvir. Bradou aos quatro cantos, contra as injustiças que aconteciam. Denunciava prisões, perseguições, expulsões dos agricultores de suas terras, citava nomes, cobrava dos políticos. O povo ficava atento, pois de outro canto não se tinha como obter informações seguras daquilo que verdadeiramente acontecia no país.

Às missas da 19h30, na Catedral, aos domingos, sempre celebradas por Dom José, acorria uma multidão de pessoas, nem sempre fiéis católicos e muitas vezes ateus. Mas estavam atentos ao sermão pronunciado. Era ali, naquele momento da missa, que obtinham inúmeras informações preciosas. Em nenhum momento Dom José titubeou. Não houve general, exército, telefonemas anônimos, ameaças, perseguições, que o fizessem hesitar um momento sequer. Era, justamente, aquela firmeza, que impedia que os militares fizessem qualquer coisa contra a pessoa do Arcebispo da Paraíba, ou com os pobres da região. A muitos pais de família ou jovens, perseguidos, ajudou para que fugissem, não por covardia, mas diante da repressão militar, do complexo armado no país, que os levariam à tortura, à morte certa. A tantos outros apoiou incondicionalmente, na luta de cada um, em busca de justiça, de casa, terra, alimento, de uma vida digna, enfim. 

Através do Centro de Defesa dos Direitos Humanos, fornecia aos pobres, advogados, assistentes sociais e outros profissionais, que os ajudavam na defesa de seus direitos, de suas vidas. Adepto da Não-violência liderava todas essas lutas, incentivando o diálogo, a persistência, a paciência e a desobediência às leis e ordens superiores, prejudiciais à vida do povo. Os estudantes, vivendo aquele momento político, sempre viram no Arcebispo o grande exemplo. 

Ele falava aquilo que estava atravessado na garganta de tantos brasileiros, de estudantes sufocados nas universidades. O "paraibano", nascido em Minas Gerais, após tornar-se arcebispo emérito, em 1996 regressou para sua terra e hoje reside em Belo Horizonte, onde tem uma vida agitada, com agenda cheia, e inúmeros compromissos pelo país e pelo mundo. 

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Mangas arregaçadas


Por Bernardo Esteves, Questões da Ciência

Os cientistas têm uma relação ambígua com a Wikipédia, a enciclopédia on-line que pode ser editada por qualquer usuário. Embora se trate de uma fonte de informação amplamente consultada – inclusive no meio científico –, ela é vista com reticência na academia. Uma saída para esse impasse talvez esteja num maior envolvimento dos pesquisadores com essa iniciativa. É o que está fazendo uma professora de história da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) que criou uma disciplina na qual seus alunos criam e atualizam verbetes sobre o Império Romano.

A iniciativa é de Juliana Bastos Marques, professora de história antiga da UniRio. A pobreza do conteúdo da Wikipédia em português em sua especialidade foi um dos motivadores dessa experiência. O conteúdo desses verbetes “muitas vezes é primário, inadequado, quando não francamente errado”, escreveu ela num texto em que explica como surgiu a disciplina.

A historiadora – ela própria uma wikipedista, como são chamados os colaboradores da enciclopédia gratuita – percebeu que uma disciplina na qual os alunos aprimorassem os verbetes seria também uma oportunidade para que eles incrementassem sua capacidade de leitura crítica e redação acadêmica. Com o aval da UniRio, ela ofereceu neste semestre a disciplina optativa “A história romana na Wikipédia”.

Marques recorreu também à Wikimedia Foundation, entidade sem fins lucrativos responsável pela manutenção da enciclopédia, e inscreveu sua disciplina no Global Education Program, iniciativa criada para disseminar o envolvimento de professores e estudantes universitários com a Wikipédia. Como ela, outros 84 professores participam de iniciativas parecidas em todo o mundo, com a ajuda dos “embaixadores de campus” – wikipedistas experimentados que orientam os novatos com as tarefas de edição.

Trinta alunos se inscreveram na disciplina criada por Juliana Marques. Parte do trabalho deles já pode ser vista no verbete “Romanização”, que discute o processo de apropriação da cultura romana pelos povos que foram progressivamente incorporados a esse império. “Esse era um verbete muito pequeno, que tinha apenas duas frases, sem qualquer referência ou fonte”, explicou Marques. “Escolhi um tema que sabia que os alunos já tinham visto, que tem gente no Brasil estudando e que é pouco discutido nos trabalhos de escola, de forma que houvesse pouca interferência externa.”

Até o final da disciplina, os alunos vão criar ou editar verbetes sobre vários aspectos do Império Romano, como religião, arquitetura, arte e sexualidade. Os progressos da turma podem ser monitorados no blog criado por Juliana Marques para acompanhar o projeto.

A historiadora considera positivo o balanço parcial da experiência, e não só porque tem permitido melhorar a qualidade do conteúdo dos verbetes. “Os alunos passaram a ler a Wikipédia de maneira crítica e entender que ela pode, sim, ser uma boa ferramenta, desde que bem utilizada”, disse Marques. “Fala-se tanto que a universidade é muito fechada em si mesma, e essa é uma boa oportunidade para mostrar o contrário.”

Wikipédia na academia
Não é de hoje que a necessidade de envolvimento dos pesquisadores com a Wikipédia vem sendo apontada. Há quase seis anos, a revista Nature já destacava num editorial:

Os cientistas podem trazer um olhar crítico para verbetes sobre os assuntos que eles estudam, frequentemente realçando erros e mal-entendidos inseridos de forma não intencional. Eles também podem iniciar artigos sobre os tópicos que outros usuários podem não querer atacar.

Um exemplo mais recente pode ser visto na edição de verão da revista Fungal Conservation, recém-publicada. Nela, o presidente da Sociedade Internacional para a Conservação dos Fungos, David Minter, relata sua experiência pessoal ao editar quase 20 artigos de forma a destacar a importância dos fungos para a vida no planeta e conclama seus colegas a fazer o mesmo.

Uma iniciativa mais incisiva de incentivo ao envolvimento dos pesquisadores com a Wikipédia foi dada pelo periódico RNA Biology no final de 2008. Em suas diretrizes para os autores, os editores decidiram condicionar a publicação de artigos numa das seções da revista à redação de um artigo sobre o tema para a Wikipédia.

Eis uma medida que merece ser copiada no Brasil. Fica a sugestão para que as agências que custeiam a ciência brasileira (Capes, CNPq, Finep e fundações estaduais de amparo à pesquisa) exijam dos beneficiários de financiamentos que redijam verbetes sobre o tema de suas pesquisas. Uma medida como essa certamente teria um impacto palpável sobre a qualidade dos artigos de ciência da Wikipédia lusófona.

Com ou sem incentivo institucional, continua atual como nunca o apelo lançado pela Nature a seus leitores no editorial de dezembro de 2005:

Selecione um tópico próximo de seu campo de trabalho e procure por ele na Wikipédia. Se o verbete contiver erros ou omissões importantes, mergulhe e ajude a repará-lo. Não precisa levar muito tempo. E imagine o resultado: você pode ser uma das pessoas que ajudaram a transformar uma ideia aparentemente estúpida em um recurso global gratuito e de qualidade.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O inverno árabe


Por Cláudio Lembo, do Terra Magazine
Morreu Kadafi. Os meios de comunicação ocidentais comemoram. Algumas personalidades internacionais demonstram satisfação. Todos proclamam a importância do fim de mais uma ditadura.
Restam, no entanto, perguntas não respondidas. A História da Líbia é de conflitos permanentes. Desde a antiguidade, a área geográfica, onde se situa o país, foi invadida por inúmeros povos: fenícios, gregos, romanos, vândalos e bizantinos.
Em tempos mais recentes, italianos, alemães, ingleses e franceses estiveram ocupando os desertos que se estendem, a partir do Mediterrâneo, no norte da África.
Beberes e árabes formam a população líbia que, a partir do governo de Mohamede ben Ali - em 1840 - adotou o islamismo como religião, a partir de uma seita que se tornou altamente popular.
Aqui a primeira pergunta sem resposta. A queda violenta de um governante, ainda que ditador, não gerará um clima de humilhação e revolta em grande parcela da população?
Esta é muçulmana. Durante os últimos séculos, foram vítimas do colonialismo e do imperialismo que, sem escrúpulos, utilizou as riquezas naturais dos povos dominados.
Até há pouco, os governantes europeus cortejavam Kadafi e o utilizavam para negócios exuberantes. De repente, o dirigente morto caiu em desgraça.
Para derrubá-lo, somaram-se as maiores e mais poderosas forças armadas. Estados Unidos aliados à OTAN - Organização do Tratado do Atlântico - bombardearam sem piedade populações civis.
Quando se realizam operações militares contra alvos indiscriminados restam traços de rancor e desamor nas coletividades agredidas. Até hoje, apesar das aparências em contrário, as populações das cidades alemãs bombardeadas na última Grande Guerra - particularmente Dresden, Frankfurt e Berlim - guardam a dor pela perda de seus antepassados.
O Ocidente, em sua ânsia de dominação, vai semeando ódio e desencanto por toda a parte onde se encontram presentes os muçulmanos. Ontem, foi o Iraque e o Afeganistão. Hoje, a Líbia.
Esta macabra escalada precisa conhecer paradeiro. Ser finalizada. Irá tornar a falsa primavera árabe em rigoroso inverno, nas relações entre os povos.
Os dias de hoje recordam o dramático e brutal episódio das cruzadas. Agrediram populações que as receberam calorosamente. Saquearam. Mataram. Violentaram. Em nome de valores religiosos, praticaram atrocidades inomináveis.
Repetir a História é tolo. O Ocidente sempre a repete se fundamentado em princípios intrinsecamente valiosos. Fala em democracia. Omite que esta, para ser implantada, exige condicionantes culturais e sociais.
Na verdade, o que se constata é o interesse econômico nas áreas integrantes da chamada falsamente Primavera Árabe. Está se gerando, na verdade, uma grande reação dos povos que adotam o Islam como religião.
O futuro demonstrará que, apesar das intervenções econômicas que virão, um substrato de animosidade restará presente. Quem é agredido, mais cedo ou mais tarde revida.
É lamentável que os países europeus e os Estados Unidos conheçam apenas as armas como diplomacia. Seria oportuno adotarem o diálogo como forma de resolver conflitos.
Chegou-se ao Século XXI com os mesmos vícios da antiguidade. Não se busca a paz. Deseja-se a guerra. Violam-se princípios. Aplaude-se a morte de pessoas indefesas.
Não é assim que se educa para a democracia. O devido processo legal e o direito de defesa são sustentáculo de valores perenes. O espetáculo selvagem visto nos últimos dias empobrece a humanidade. Envergonha seus autores.
A Primavera Árabe transformou-se no inverno dos mais elevados valores concebidos no decorrer do tempo. Continuam selvagens, como sempre.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Conheça Thomas, um Fusca elétrico feito no Brasil



Por João Brunelli Moreno, do Tecnoblog

Um grupo de estudantes da Universidade Tecnológica do Paraná fez com que um simpático Fusca 1982 se tornasse um legítimo representante da classe dos veículos ecológicos ao trocar seu antigo motor à combustão interna por uma moderna unidade abastecida por energia elétrica.

Batizado de EcoFusca – ou Thomas, como é carinhosamente chamado pelos seus criadores Bruno Masaharu Shimada, Danilo Yamazaki, Diego Francisco de Carvalho Rodrigues, Fernando Luiz Buzutti e Marcelo Shinji Otsuka, o carrinho foi o fruto de um projeto que começou no último mês de março e que resultou em sua apresentação “oficial” durante a última edição da Semana Nacional de Ciências, que aconteceu entre os dias 17 e 23 desse mês.

Apesar do tempo relativamente curto para sua execução, os jovens afirmam que os primeiros esboços surgiram na década de 80, quando o engenheiro elétrico londrinense Jilo Yamazaki projetou um veículo que dispensava o uso de combustíveis fósseis para se locomover. Este projeto foi usado como referência para a adaptação do Fusca.

O característico motor de 1.6 litro refrigerado à ar que desenvolvia cerca de 50 cv de potência deu lugar a uma unidade elétrica, produzida no Brasil, que tem módicos 15 cv a sua disposição.

Como os motores elétricos dispõem de 100% de seu torque desde 0 rpm, os estudantes dizem que Thomas é capaz de se locomover em trajetos urbanos com até mais disposição do que um Fusca comum. Mas questões de segurança fizeram com que o grupo limitasse sua velocidade máxima a apenas 60 km/h, “suficiente para trajetos na cidade”.

A energia usada para abastecer Thomas vem de 25 baterias de chumbo-ácido (do tipo comum, usadas em automóveis), instaladas no lugar de seu banco traseiro e debaixo do capô dianteiro, onde costumava ficar seu tanque de combustível. ”O alto custo das baterias de íons de lítio as inviabilizaram no momento” afirmou Marcelo Shinji ao Tecnoblog.

Por conta desta limitação, o EcoFusca tem autonomia de 60 quilômetros e seu tempo de recarga é de 8 horas. Só para comparar, as modernas baterias de ions de lítio do Mitsubishi iMiev oferecem 160 km de autonomia, com tempo de recarga de 14 horas em uma tomada de 110V ou 7 horas em 220V (com 80% de sua capacidade em menos de 1h).

A adaptação de Thomas para eletricidade custou cerca de R$ 25 mil e seu custo por quilômetro rodado é de R$ 0,07, contra R$ 0,26 em um carro comum.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Eles não sabem calcular



Por Tory Oliveira, do portal Carta Fundamental
Diante de um estádio de futebol, a maioria de nós consegue distinguir se há mais torcedores do Corinthians ou do Palmeiras nas arquibancadas. Para um discalcúlico, a tarefa é quase impossível. O termo, pouco usual, define pessoas que têm discalculia, transtorno crônico de aprendizagem da Matemática que compromete a capacidade de efetuar cálculos básicos, estimar quantidades e entender -sequências -numéricas. Apesar de atingir 6% da população, o distúrbio ainda é pouco conhecido, principalmente se comparado à dislexia. Coordenador do Laboratório de Neuropsicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, Vitor Haase é um dos organizadores da primeira grande pesquisa sobre a discalculia no Brasil. Realizado com 1,8 mil estudantes em Belo Horizonte, o estudo procura estimar a incidência da discalculia na população brasileira e descobrir mecanismos neurológicos e genéticos que expliquem o transtorno. Nesta entrevista, o neurologista e doutor em psicologia médica explica mais sobre a discalculia e sobre outros transtornos de -aprendizagem da Matemática.
Carta Fundamental: Como surgiu o interesse em estudar a discalculia?
Vitor Haase: Os motivos são vários. É um assunto pouco estudado, mas com implicações sociais importantes. Estudos mostram que crianças com dificuldade crônica de aprendizagem em Matemática sofrem consequências do ponto de vista psicossocial, como, por exemplo, aumento de transtornos de comportamento, da ansiedade e da depressão. Além disso, do ponto de vista da pesquisa, apareceram modelos de processamento de informação muito interessantes, que permitem identificar mecanismos neuropsicológicos específicos dessa dificuldade.
CF: O que é discalculia? 
VH: Também chamada de transtorno de aprendizagem da Matemática, é uma condição de dificuldade de aprendizagem crônica, persistente. Essa dificuldade não está relacionada com inteligência baixa, com experiência educacional inadequada, dificuldades emocionais primárias ou carência sociocultural. Ela é uma dificuldade intrínseca, não é relacionada com nenhum fator externo.
CF: É comum a discalculia ser confundida com dificuldade em Matemática? 
VH: A discalculia precisa ser diferenciada da dificuldade de aprendizagem, que engloba um conjunto maior de indivíduos com rendimentos mais baixo, mas que não têm essas características da gravidade e da persistência no tempo. A discalculia é uma dificuldade bastante intensa.

CF: Se ela é uma dificuldade intrínseca, é causada por um distúrbio neurológico?
VH: É um problema de origem genética e uma dificuldade inerente ao indivíduo. As causas estão relacionadas com um mecanismo genético multifatorial, interagindo com fatores ambientais que desencadeiam o quadro. A discalculia é um quadro grave, que causa dificuldades nos aspectos mais básicos, como contar, conhecer tabuada, resolver -problemas aritméticos simples, noção de quantidade da grandeza das coisas. É diferente de problemas como a ansiedade matemática.
CF: O que é isso?
VH: É uma forma de fobia de testes matemáticos. É muito mais frequente, chega a atingir 20% da população. A discalculia tem uma frequência de 5% a 6%. Interessante é que a ansiedade matemática tem uma sobreposição relativamente pequena com a discalculia. O número de indivíduos com discalculia que têm ansiedade matemática não é muito grande. O contrário também: a maioria dos indivíduos com ansiedade matemática não possui um déficit grave como na discalculia. O que acontece é que as pessoas têm medo, já que a matemática é uma área complexa.

CF: Com quantos anos a discalculia costuma se manifestar?
VH: Na idade da pré-escola. A professora geralmente já percebe que a criança tem dificuldade de contar e identificar os números.

CF: A discalculia acontece por causa de um distúrbio genético que afeta uma parte do cérebro responsável pela Matemática?
VH: Isso é uma das coisas interessantes na questão da aritmética: não existe um mecanismo só. Cada região cerebral é responsável por algum tipo de função importante para a Matemática. Os fatores que interferem na aprendizagem da Matemática são três. Um é o senso numérico, acuidade que um indivíduo tem de estimar o tamanho dos conjuntos sem precisar contar.  Por exemplo, policiais olham para um estádio cheio de gente e dizem: são 60 mil pessoas. É uma habilidade de fazer estimativas com base no “olhômetro”, sem precisar contar. O indivíduo com discalculia possui dificuldade nesse senso numérico. Outras habilidades importantes são as de linguagem, algo comprometido na dislexia. Muitas crianças com dislexia também têm dificuldades com a Matemática, justamente por não conseguir lidar bem com estruturas sonoras das palavras. Então, são três os fatores cognitivos mais importantes para a Matemática: o senso numérico, as habilidades fonológicas e o terceiro fator, que é a memória de trabalho. A memória de trabalho é extremamente importante para o cálculo mental. Quando realizamos uma operação, precisamos manter os produtos e os resultados intermediários na mente para fazer essas operações. Apenas 30% das crianças com discalculia têm uma discalculia pura. Dois terços delas têm discalculia associada – com a dislexia, com dificuldades na leitura, com TDH, ou com dificuldades de concentração. Os meninos com discalculia pura são aqueles com a forma mais grave da doença. São justamente essas crianças que têm dificuldade com a noção de grandeza e de quantidade. É uma coisa muito mais incapacitante, porque na vida prática é preciso estimar o tempo que você vai levar para tomar banho, para ir de um lugar a outro, a quantidade de comida usada para fazer uma refeição…

CF: Quando a discalculia começou a ser estudada? 
VH: A definição é da década de 1970 e os estudos começaram em 1980, mas somente se intensificaram a partir de 1990, quando surgiram modelos de processamento de informação que permitiram aos pesquisadores identificar esses componentes. Hoje é uma área que está crescendo muito.
CF: O senhor está coordenando o primeiro levantamento no Brasil sobre a prevalência da discalculia no País. Quais são os principais objetivos da pesquisa?
VH: Estamos coletando uma amostra representativa da discalculia na população de Belo Horizonte, em 16 escolas. O processo de avaliação é feito em duas etapas. Na primeira, é feita uma triagem, com teste de inteligência e teste de desempenho em aritmética. Já triamos pelo menos 1,8 mil crianças. Dessas, selecionamos aquelas com desempenho abaixo de 25%. Então, convidamos as crianças daquele grupo a participar da segunda fase e também convidamos outro grupo de crianças com desempenho acima do perfil de 25%, para servir de controle. Daí é feita uma entrevista e uma avaliação individual de duas ou três sessões. Depois, pegamos o material biológico – recolhemos saliva – e fazemos extração de DNA para as análises genéticas. Por meio dessa avaliação, procuramos ver os mecanismos neuropsicológicos, quais são os mecanismos cognitivos implicados na discalculia e também fazemos a genotipagem. A genotipagem é feita em dois locus. Um dos locus é o da Síndrome de Turner e o outro é o da Síndrome Velocardifacial. As duas síndromes são as mais comuns que causam dificuldade de aprendizagem da Matemática sindrômica. Também a gente faz a genotipagem de uma enzima importante para o metabolismo da dopamina, que está relacionada com várias funções, principalmente com a memória de trabalho. Agora terminamos a genotipagem de 268 crianças e começamos a fazer essas análises. O objetivo é fazer um cruzamento entre os polimorfismos genéticos e o perfil cognitivo dessas crianças.
CF: Quando o professor desconfia que o aluno possui discalculia, como ele deve proceder?
VH: Se o professor acha que a criança tem uma dificuldade que é mais grave, deve encaminhá-la para uma avaliação neuropsicológica. Uma coisa importante é – quando há uma criança com desempenho considerado insatisfatório – constatar se ela tem uma dificuldade de aprendizagem mesmo ou se o problema é de “ensinagem”. Ou seja, se o currículo- ou mesmo a atitude do professor não está sendo a mais favorável, no sentido de promover a aprendizagem daquela criança.

CF: Existe tratamento para a discalculia?
VH: A questão do tratamento é o das intervenções psicopedagógicas. Existe um componente motivacional importante que a gente tem de trabalhar com a família e com a professora. Eles geralmente têm atitudes negativas com a criança. Acham que ela é lerda, burra, malcomportada e tem pouca expectativa. Com a criança também é preciso trabalhar o aspecto motivacional, porque a dificuldade crônica de aprendizagem é extremamente desmotivante. Uma das estratégias usadas é a aprendizagem sem erro, que consiste em programar o currículo de maneira tal que a criança consiga dar conta de resolver o problema com pequeno esforço. Nesse aspecto motivacional, a gente trabalha também com técnicas de autoinstrução – ensinar o menino a ter uma atitude mais reflexiva, de monitorar seu comportamento ao resolver problemas, de checar, de ver se a solução atingida foi a correta ou não.

CF: O problema da discalculia é menos comum do que a dislexia ou ele só é menos conhecido? VH: A frequência é mais ou menos a mesma da dislexia, em torno de 5% a 6% da população. A questão é que as pessoas, socialmente, acham que a Matemática é difícil e que é natural ter dificuldade.

CF: Ao contrário do que acontece com a leitura e a escrita…
VH: Outro dia eu estava conversando com uma professora e ela falou o seguinte: às vezes a criança está tendo dificuldade nas duas coisas. Aí a professora começa a ficar ansiosa, porque a criança não está acompanhando o currículo, e resolve trabalhar com uma coisa só. Geralmente, ela acaba privilegiando a leitura, porque as famílias se preocupam mais com que as crianças terminem o primeiro ano sabendo ler do que sabendo fazer contas…

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Fela Kuti: Música é a arma do futuro



Por Carlos Freitas, do blog Questões Musicais


Fela Kuti não quis a melodia beatle de Paul McCartney no seu afrobeat. Nem o selo Motown na sua seminal discografia. Quando sugestionado sobre a diminuição do tempo de suas músicas para torná-las mais acessíveis ao mercado fonográfico americano, Fela respondeu com afrobeats de 15 longos, luminosos e subversivos minutos. Por ter sido radicalmente avesso à padronizações, à qualquer proposta que pudesse levar sua arte a um estado de domesticação ou desfiguracão, Fela Kuti se tornou um ícone da música como instrumento de libertação, munição ou arma do futuro. Dia 15 de outubro, data do seu aniversário, é dia de Felabration, de celebrar a obra de Fela Kuti.

Se vivo, o pai do afrobeat estaria completando 73 anos. Se bem que ultimamente a onipresença de sua obra, seja por influência musical, citação política e identificação com ações libertárias, nos dá a sensação de que Fela Anikulapo Kuti está mais do que vivo.

Fela Kuti está em todos os lugares. A República Kalakuta (como se referia à sua residência) expandiu. Está na arte, no desejo de Spike Lee de levar às telas a história do Black President inspirado na biografia produzida por Carlos Moore. O musical Fela! percorre o mundo após uma bem-sucedida temporada de estreia na Broadway, arrebatando a crítica e endossando a importância da obra de Fela Kuti.

Os filhos de Fela também estão em todos os lugares. Um vasto elenco de herdeiros, não apenas fruto da lida de Fela Kuti com suas 27 esposas legítimas, como os pródigos Seun Kutie Femi Kuti. Um legado de panteras negras musicais que integra continentes e culturas, convergindo os ritmos de cada canto do planeta para dentro de uma batida. Um groove de todos os ritmos.

É o Afrika Shrine, santuário musical idealizado por Fela. Obra que não cabe em limites geográficos, conceituais e ideológicos: Antibalas, Budos Band, Nomo, Kutiman, Zozo Afrobeat,Chico Mann, Nacão Zumbi, Lucas Santana, Bixiga 70, Burro Morto, Nomo, entre outros. Legado Kuti que leva a sério o caráter revolucionário do pai do afrobeat, estética, musical e politicamente falando.

Ei-lo novamente. Sempre. Fela Kuti. Maestro, cantor, multiinstrumentista, dançarino. Ativista. Herói nigeriano. Ídolo global. Encarnação do valor cultural que se sobrepõe às fajutices colonizantes. Sua luta para refundar o panafricanismo, "retirando-o" das mãos das oligarquias nigerianas, o tornou sujeito da mais expressiva tradução de vida em arte, de obra artística em plataforma política, de engajamento em movimento sócio-cultural.

A África que quer ser livre e do tamanho de sua riqueza quer ser Fela, tal o envolvimento da obra de Fela Kuti com o continente. O mundo precisa ser Fela: diverso, catalisador, tanto de ritmos quanto de cores e linguagens. Mestiçagem que sugere integração e conseqüente compartilhamento de riquezas, caminho inverso da globalização regida pelo já decadente receituário neoliberal do planeta.

Sim, afrobeat é compromisso. E como sentenciou Fela Kuti, música é a arma. Nem seria necessário explicar o porquê da afirmação, mas aproveito para complementar esse post-tributo a Fela Kuti com o documentário "Music is The Weapon". Dirigido pelos franceses Jean-Jacques Flori e Stéphane Tchalgadjie, explica bem com um belo registro histórico da vida e obra de Fela Kuti.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

O ciclo da vida


por Tim Appenzeller, National Geographic Brasil

Toda a vez que expiramos, damos a partida no automóvel, acendemos uma lâmpada – ou fazemos qualquer outra coisa – lançamos dióxido de carbono na atmosfera. O carvão, o petróleo e o gás natural que movimentam a economia são originários do carbono incorporado as plantas há centenas de milhões de anos – e esse carbono agora está voltando à atmosfera através das chaminés, dos canos de escapamento e das queimadas. O CO2 é o principal, dentre os diversos gases gerados por atividade humana, que aumenta a capacidade da atmosfera em reter calor. O metano emitido por rebanhos de gado e aterros sanitários, assim como os clorofluorcarbonetos (CFC) usados em alguns modelos de geladeira e aparelho de ar condicionado, são outros desses gases. O derretimento de geleiras, o início antecipado da primavera e a elevação constante na temperatura média são apenas os sinais mais óbvios do aquecimento global a cada dia mais nítido no século 21.

Por ano, a humanidade despeja na atmosfera cerca de 9 bilhões de toneladas de carbono (são mais de 30 bilhões de toneladas de CO2). Desse total, 88% vêm da queima de combustíveis fósseis e da fabricação de cimento. O resto é desflorestamento. No entanto, menos da metade dessa emissão bruta permanece na atmosfera e contribui para o aquecimento do planeta. Para onde vai o resto? “Quando se pensa nisso, é um mistério e tanto”, revela o cientista Steven Wofsy. A sua estação de pesquisa na floresta Harvard, no estado de Massachusetts, não é o único local em que a natureza está respirando fundo e, com isso, ajudando a nos salvar de nós mesmos. Pois são as florestas, os campos e os oceanos que funcionam como sorvedouros de carbono. Eles reabsorvem metade do CO2 que emitimos, freando o seu acúmulo na atmosfera e adiando os efeitos no clima.

O problema é que os cientistas não sabem com certeza se esse processo benéfico vai continuar ou se, com o aumento das temperaturas globais, ele não poderia até mesmo virar algo prejudicial – com as florestas e outros ecossistemas se convertendo em fontes de emissão de carbono, lançando na atmosfera mais do que conseguem absorver. Tais dúvidas levaram os pesquisadores às florestas e aos campos, às tundras e aos oceanos, com o objetivo de monitorar e entender o carbono desaparecido.

Não se trata apenas de questão de curiosidade intelectual. Verões causticantes, tempestades violentas, padrões alterados de precipitações e deslocamentos de espécies são algumas das mudanças climáticas que podem ser ocasionadas pelo aquecimento global. E a humanidade está a caminho de acrescentar à atmosfera do planeta outras 200 a 600 partes por milhão (ppm) de dióxido de carbono até o fim deste século. Nesse nível, segundo o ecologista Steve Pacala, “coisas terríveis poderiam acontecer, e o universo de possibilidades negativas é tão amplo que algumas delas são inevitáveis”. Entre tais perspectivas estão o fim dos recifes de coral, o crescimento das áreas desertificadas, a alteração no curso das correntes marinhas que transportam calor, talvez provocando, por exemplo, o resfriamento das ilhas britânicas e da Escandinávia enquanto o resto do mundo fica cada vez mais quente.

Se a natureza deixar de dar a sua contribuição – ou seja, se os sumidouros de carbono deixarem de reter parte do nosso excesso de dióxido de carbono –, poderemos enfrentar mudanças drásticas antes mesmo de 2050, em um desastre súbito demais para ser evitado. Porém, se os sumidouros mantiverem ou aumentarem sua atividade, poderíamos contar com mais algumas décadas para substituir as fontes energéticas emissoras de carbono que hoje sustentam a economia mundial. Alguns cientistas e engenheiros acreditam que, se entendermos o funcionamento dos sumidouros naturais, seremos capazes de torná-los mais eficientes ou até mesmo criar nossos próprios reservatórios para armazenar com segurança essa ameaça ao clima planetário.

O pano de fundo dessas esperanças é um ciclo natural tão concreto quanto a nossa respiração e tão abstrato quanto os números coletados por Steven Wofsy. Em 1771, ainda nos primórdios da Revolução Industrial e do seu apetite voraz por combustíveis fósseis, um clérigo inglês identificou as etapas cruciais do ciclo natural do carbono. Em uma série de engenhosos experimentos, Joseph Priestley constatou que o fogo e a respiração dos animais “maculavam” o ar em um jarro selado, tornando-o insalubre. Mas ele também descobriu que um ramo viçoso de hortelã era capaz de restaurar a saúde do ar. Priestley não chegou a dar nome aos gases relevantes, mas hoje sabemos que o fogo e a respiração consomem oxigênio e emitem dióxido de carbono. O ramo de hortelã revertia ambos os processos. Na fotossíntese, o CO2 é absorvido e convertido em tecido vegetal, eliminando o oxigênio como um subproduto.

O nosso mundo não passa de um jarro semelhante, ainda que bem maior. Dezenas de bilhões de toneladas de carbono circulam por ano entre a terra e a atmosfera: eliminado na expiração dos seres vivos, é em seguida degradado e absorvido pelas plantas, que então produzem oxigênio. Um tráfego similar de carbono ocorre nos mares.

Em comparação com essas vastas trocas naturais, os poucos bilhões de toneladas que os seres humanos lançam no ar anualmente parecem insignificantes. Mas, como um dedo apoiado no prato de uma balança, nossas incessantes emissões vêm desequilibrando o ciclo. O carbono acumulado na atmosfera está aumentando: subiu 30% desde a época de Priestley. E hoje atingiu um nível mais elevado que em qualquer outro momento nos últimos 20 milhões de anos. Chegou a hora de tentar reverter essa tendência.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Em que mundo vivemos?



A descoberta da expansão acelerada do Universo, premiada com o Nobel de Física, tem impacto profundo em nossa relação com o Cosmos

Por Augusto Damineli, da Scientific American Brasil

O prêmio Nobel de Física de 2011 foi dado a três pesquisadores (Saul Perlmutter, Adam G. Riess e Brian P. Schmidt) que descobriram que a expansão do Universo tem se acelerado nos últimos bilhões de anos. Essa descoberta tem um profundo impacto não só para a física e a cosmologia, como também para nossa relação com o Cosmos. Jamais havia passado pela cabeça de alguém, nem mesmo pela dos três pesquisadores que ganharam o Nobel, que isso poderia acontecer. A razão era simples: se lançamos uma sonda espacial com velocidade maior do que 11 Km/s, que é a velocidade de escape da superfície da Terra (energia de movimento maior que a energia gravitacional), ela se afasta com velocidade uniforme. Se a velocidade for um pouco menor, a sonda vai se desacelerando e volta a cair na Terra. Ela só consegue acelerar se tiver combustível para gerar uma força capaz de vencer a atração gravitacional. Para o Universo, também se pensava que só existiam essas duas possibilidades: expansão uniforme eterna ou desaceleração seguida de colapso (Big Crunch). A descoberta da aceleração da expansão do Universo por meio da observação de estrelas supernovas distantes implica na existência de uma “força” contrária à da gravidade e mais forte que ela. Essa espécie de “gravidade negativa” é a componente dominante do Universo (73%) e é chamada de energia escura. 


Na década de 1930, Fritz Zwicky já havia descoberto outro problema cosmológico grave: a matéria escura. Ela não absorve nem emite luz, tem gravidade atrativa como a nossa e não é composta de átomos. Os físicos nunca se incomodaram muito com a matéria escura, embora ela seja seis vezes mais importante que a nossa matéria e componha 23% do Universo. Diferentemente da energia escura, existem esperanças de detectar partículas de matéria escura no grande acelerador de partículas LHC (que fica no Centro Europeu de Pesquisas Nucleares, em Genebra, Suíça) num futuro próximo.


Tudo o que costumávamos chamar de Universo – as galáxias, com suas estrelas, planetas e nuvens de gases, a antimatéria (formas diferentes de matéria bariônica) – representa, na verdade, somente 4% do Universo. É desconcertante para a física, que empreendeu tantos esforços para criar suas duas grandes teorias (a Relatividade Geral e a Mecânica Quântica), só poder aplicar essas teorias a 4% do Universo. 


O problema da energia escura, entretanto, não parece ter solução no médio prazo. Ela parece estar ligada a uma propriedade de campo, que abrange o espaço-tempo como um todo. Uma alternativa inquietante para o futuro é que a aceleração não pare. Se isso continuar acontecendo, essa força vencerá gradativamente os sistemas ligados pelas forças gravitacional, elétrica e até nuclear. 


Primeiro, ela desmancharia os grupos de galáxias, depois espalharia suas estrelas pelo espaço, arrancaria os planetas de suas órbitas e sugaria os gases para fora das estrelas. Depois, atingiria os átomos, evaporando a eletrosfera e, finalmente, arrancaria os prótons e nêutrons dos núcleos atômicos. Seria o “Big Rip” (Grande Estraçalhamento), em que o Universo terminaria como uma nuvem amorfa de partículas. 


Existem outras possibilidades, inclusive a de que essa fase seja superada por outra, que não é o caso de discutir aqui. Essa alternativa já aconteceu antes. Por exemplo, logo após o Big Bang, quando o Universo tinha 1 milionésimo de bilionésimo de bilionésimo de bilionésimo de segundo, ele sofreu uma expansão acelerada análoga à atual, mas muito mais rápida: a era da inflação. A fase seguinte, que durou 400 mil anos, foi dominada pela luz. Quando o Universo expandiu o suficiente, a luz perdeu seu domínio e a matéria passou a dominar, arrebanhando os gases em forma de estrelas e galáxias. Com a diminuição da densidade da matéria, a gravidade foi perdendo terreno até que, uns 12 bilhões de anos depois, a energia escura tomou as rédeas da expansão. O Universo é mutante e suas fases são dominadas por entidades que, por escaparem ao nosso cotidiano, são difíceis de imaginar.


Mais do que explicar a cosmologia, quero chamar a atenção do leitor para a pergunta: em que mundo vivemos? Todos os povos da Terra têm seus mitos de origem, que explicam a concretude de suas vidas: recursos naturais, costumes, técnicas, as estações do ano, os astros. A imagem de mundo lhes dá uma identidade tão profunda que frequentemente leva a fundamentalismos. Os mundos dos outros povos estão errados e são ameaçadores. Por isso, devem ser eliminados. Nós vivemos num mundo científico e tecnológico e muitos acreditam que não somos mais afetados por uma ou outra cosmovisão. 


Quando Copérnico colocou a Terra na órbita do Sol, fez a morte entrar no céu. Explico: no sistema geocêntrico só a Terra era feita de matéria como a nossa, sujeita à morte. 


O espaço supralunar tinha qualidades superiores à do mundo terrestre. O sistema heliocêntrico abriu a possibilidade de reconhecer que somos feitos da mesma matéria que os astros. Com isso, o imaginário humano ganhou um profundo senso de intimidade cósmica. Isso teve um papel importante para as ciências naturais que se desenvolveram nos séculos seguintes. No século XX, a astrofísica demonstrou que somos poeira de estrelas! Nossos átomos são os mesmos que os das incontáveis galáxias com suas incontáveis estrelas e planetas e cometas... Agora, tudo isso se reduziu a 4% do que existe. Embora continuemos sendo poeira de estrelas e íntimos delas, perdemos a intimidade com o Todo. Para o público leigo, a situação é confusa. É difícil saber o que está em vigor e o que muda. Na verdade, a cosmovisão do cidadão comum mistura Big Bang, Adão e Eva, criação do mundo e evolução das espécies. Agora vai ter mais um item na prateleira mental que se chama energia escura e o mundo vai continuar desconexo como sempre foi.


Para os cientistas, estamos vivendo uma época excitante. As revoluções científicas acontecem em escala de décadas, não mais de séculos. Não temos que invejar os tempos copernicanos. Uma descoberta como a da energia escura abre novos horizontes e atrai novos talentos. Queremos ver jovens aventureiros manuseando a geração de telescópios extremamente grandes (ELTs) que na próxima década esclarecerão a natureza da energia escura e trarão à tona quem sabe que novidades desconcertantes.