quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Construa seu tempo em 2011


Por Iara Biderman
Ilustração sobre foto de Eduardo Knapp/Folhapress

   
Preciso fazer uma entrevista sobre o tempo. E tem que ser hoje. Para encaixar minha urgência nas agendas alheias, as conversas são marcadas por e-mail e feitas por telefone.
Do outro lado da linha, uma entrevistada comenta que, enquanto conversa, aproveita para arrumar a bagunça em cima da mesa. Mais uma dessas pessoas multitarefas, que fazem mil coisas ao mesmo tempo e vivem lamentando a falta dele?
Não. Sem lamentos e sem dispersão mental, quem fala comigo é a monja Coen, primaz da Comunidade Zen Budista. "Se você estiver presente no que está fazendo, tem tempo. Se a mente está voltada para outras coisas, não", afirma.

ATENÇÃO DIVIDIDA
Mas, então, não é para fazer só uma coisa de cada vez? "Tem coisas que dá para fazer ao mesmo tempo. Não posso conversar com você e ler os papéis em cima da minha mesa, mas posso arrumar os objetos. Se for algo que não exige divisão da minha mente, por que não aproveitar?", pergunta.
Com esse pequeno exemplo, a monja mostra que estar inteiramente presente no que faz e ter tempo não são coisas tão estratosféricas quanto podem parecer para a maioria de nós, mais acostumada à sensação cotidiana de ansiedade pelas tarefas ainda não cumpridas.
Parar de pensar em coisas que não existem ou não podem ser resolvidas no momento é uma forma de usar melhor o tempo.
"Não dá para brigar com o tempo, porque ele não é algo separado de nós, que está nos escapando. Nós somos tempo, ele é nossa vida. O que importa é o que fazemos com ela", afirma.
A coisa fica um pouco complicada porque nossa vida se passa nesse mundo que está sempre nos acelerando, segundo a terapeuta corporal Andréa Bonfim Perdigão, autora do livro "Sobre o Tempo" . "Queremos existir com a velocidade da tecnologia, que é rápida e dá a ilusão de que podemos fazer tudo simultaneamente", diz.
Perdigão conta que começou a refletir sobre o assunto ao observar como as pessoas que chegavam ao seu consultório tinham pressa para se livrar da dor, desprezando o tempo natural da cura.

RITMOS DO CORPO
Para ela, as pessoas querem existir na velocidade da tecnologia, mas os ritmos do corpo continuam os mesmos: precisamos das mesmas horas para fazer a digestão ou dormir, dos mesmos nove meses para dar à luz .
"É possível viver pressionando a saúde desse jeito? Acredito plenamente que dá para lidar com o tempo, mas temos que fazer escolhas, abrir mão não de uma, mas de dez coisas. Isso é um exercício de resistência diário, porque as demandas externas vão continuar te pressionando a fazer tudo."
Se a escolha for errada, paciência, aconselha a monja Coen. "Não é para se lamentar, isso seria perda de tempo. Quem sempre acha que entrou na fila errada e fica mudando para a outra não chega a lugar nenhum."
Uma forma para equacionar melhor as horas a partir de escolhas (e renúncias) é olhar mais longe.
Planejamento estratégico, diriam os mais pragmáticos. Nada contra, muito pelo contrário. Organizar e planejar não tira o sentido da vida, pode dar mais tempo para ela.
"Saber usar o tempo é saber viver a vida. Estar no "aqui e agora" não é essa coisa mágica de fluir com o cosmos e deixar todo mundo te esperando porque você sempre chega atrasado aos compromissos", ensina a monja.
Simples e óbvio: para fluir com o tempo e deixar de brigar com ele, compre uma agenda. E use.

TEMPO PSICOLÓGICO

Além do limite de velocidade corporal, o tempo psicológico que levamos para assimilar, entender ou apreciar qualquer coisa também não acompanha a rapidez das informações e dos estímulos contemporâneos.
"Somos solicitados a experimentar diferentes tempos simultaneamente. Isso é como viver várias noções de tempo sobrepostas, e ainda não aprendemos a lidar com isso, porque subverte as noções clássicas de temporalidade", diz o psicanalista Bernardo Tanis, editor da Revista Brasileira de Psicanálise.
O físico André Ferrer Martins, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, lembra que a noção de tempo não é única para todas as civilizações, épocas ou culturas.
"O senso comum do tempo, na nossa sociedade, está muito mais próximo da perspectiva histórica e linear do cristianismo e do conceito do século 18 do físico Issac Newton, que afirmou que o tempo tem existência própria e é igual para todos."

MULTIPLICIDADE
As definições dos novos tempos, múltiplos e ultrarrápidos, ainda estão sendo elaboradas, segundo o psicanalista BernardoTanis. "Estamos aprendendo a lidar com essa multiplicidade, mas ainda não sabemos que tipo de pessoa está sendo criada com isso."
O psicanalista e filósofo Marcio Tavares D'Amaral, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, acredita que o sujeito dessa época hiperacelerada vive o futuro -que é um tempo virtual, aquilo que ainda virá ou não. "É irreal, mas nos enxergamos nele. O tempo que interessa hoje, em que vale a pena investir, é o futuro."
E isso é ruim? "A ideia de voltar a outro tempo é reativa, ressentida. Nada disso é para ser eliminado, nem será. Mas talvez devêssemos nos empenhar na procura do equilíbrio entre as dimensões reais e virtuais da vida. Podemos passar menos horas consumindo tecnologia, sem abrir mão dela."
O caminho pode ser aprender a discriminar as infinitas ofertas do mundo e se esquecer delas de vez em quando.
"Com a roda viva de estímulos, perdemos a barreira que nos ajuda a discriminar o que é necessidade, vontade pessoal e o que vem de fora, e nunca nos saciamos. O mundo nos convida a ficar sempre ligados, mas o psiquismo humano também precisa se desligar de tempos em tempos", diz Tanis.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Nelson Rodrigues é o farol que nós temos

Marca paradoxal - Escritor pernambucano fixou um patamar de excelência para a literatura dramática brasileira

Por Antunes Filho - Diretor Teatral

Nelson Rodrigues foi um poeta, foi gênio. Começou o teatro brasileiro, praticamente. Existe o pré-Nelson e o pós-Nelson. Mesmo o pós ainda é Nelson muito forte.
Ele trabalhou com coisas com as quais ninguém lidava. Quando estava todo mundo em Freud, ele já estava em Jung, sabe? Trabalhava com a mitopoesia, com o inconsciente coletivo.
Por meio desse inconsciente, trouxe à tona uma linha desejante de luz nas utopias de seus personagens. E quanto mais utópicos, mais eles se afundavam no lamaçal. É bonita a trajetória de correr atrás da luz e cair no abismo, ser engolido por areias movediças.
Nelson vem das cavernas, vem do homem primitivo e de suas necessidades, angústias e recalques.
No teatro atual, a sintaxe dramática é insuportável. E o Nelson resiste a isso, como resiste ao pós-dramático, à desconstrução, ao Lacan e sua historicidade do outro.
Hoje, não se entende muito as coisas. Só sabemos que o teatro está muito chato, sem saída. Há um certo tédio.
Como sair disso e ir para novos caminhos, como encontrar outras vertentes de luz?
Estamos num momento de transição violenta, e nisso Nelson é sempre útil, porque é poeta. E é isso o que o salva.
Ele é a referência, a luz, o farol que nós temos. E, se é o melhor, vamos tentar superar o melhor. Acontece que é impossível superá-lo, seja por sua vida trágica, seja porque ele foi um jornalista de fatos sanguíneos terríveis.
Ele teve essa sorte, podemos dizer, ironicamente. A tragicidade sempre o rondou.
Quem faz teatro está desesperado. Ao mesmo tempo em que está terrível, a situação é propícia para que estoure algo. O novo está na incubadeira. Pode surgir alguém que supere tudo, dê um caminho ao teatro.


Conheça um pouco mais de Nelson

23-8-1912, Recife (PE)
21-12-1980, Rio de Janeiro (RJ)

Nelson Rodrigues foi o mais revolucionário personagem do teatro brasileiro, abrindo as portas à moderna dramaturgia do país. Percorreu, contudo, um árduo itinerário, marcado pelas tragédias familiares e pela crítica contraditória. Desde seu primeiro texto, A Mulher Sem Pecado (1942), foi considerado ao mesmo tempo um imoral e um moralista, reacionário e pornográfico, um gênio e um charlatão, escandalizando, como nunca, o público e a imprensa especializada da época com seu teatro desagradável. Explorando a vida cotidiana do subúrbio do Rio de Janeiro, preencheu os palcos com incestos, crimes, suicídios, personagens beirando a loucura, inflamadas de desejos e agindo apaixonadamente, até matando, e diálogos rápidos, diretos, quase telegráficos, carregados de tragédia e humor. Quando lançou Vestido de Noiva (1943), montado pelo grupo Os Comediantes, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, renovou o teatro do país, quer pelo texto quer pela direção de Ziembinsky, e obteve sucesso. Nos anos seguintes, no entanto, teve suas peças interditadas pela censura, passou a ser sinônimo de obsceno e tarado e ficou conhecido como autor maldito. Nascido à beira-mar no Recife, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, para o pai tentar a vida como jornalista, em 1916. Foi o filho, no entanto, que brilhou na profissão. Aos 13 anos já era repórter policial do jornal A Crítica. Seu talento estendeu-se a todos os grandes jornais do Rio. Fanático torcedor do Fluminense, foi um grande cronista esportivo, ao mesmo tempo que escrevia reportagens policiais e folhetins romanescos. Obsessivo, escreveu 17 peças, centenas de contos e nove romances. Entre as peças, destacam-se A Falecida (1953), Os Sete Gatinhos (1958), Boca de Ouro (1959), Beijo no Asfalto (1960) e Toda Nudez Será Castigada (1965).

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Cerco a Assange deixa jornalismo vulnerável, afirma especialista

Quebra de Paradigma – Fundador do Wikileaks ultrapassa as fronteiras da imprensa formal e vai além do legalismo na defesa do direito à informação

Por Janaina Lage

O escritor e advogado constitucionalista norte-americano Glenn Greenwald afirma que, caso os EUA consigam processar o fundador do WikiLeaks, Julian Assange, jornalistas ficarão mais vulneráveis a ações judiciais.
Colunista da revista digital Salon.com, Greenwald tem sido uma das vozes de defesa do WikiLeaks na imprensa americana.
Para ele, não há base legal para processar o site porque é uma organização dissociada de qualquer Estado e só existe na internet.
Jornais norte-americanos já citaram como possíveis bases legais para um processo contra Assange a lei de espionagem, de 1917, e a lei de fraude e abuso de computadores, de 1986.
O escritor, que vive no Rio de Janeiro há quase seis anos, concedeu entrevista após palestra no Iesp-UERJ (Instituto de Estudos Sociais e Políticos).
A seguir, trechos da entrevista.

O que os documentos vazados pelo WikiLeaks revelam sobre a diplomacia americana?

Glenn Greenwald - Não existe uma diplomacia americana à parte dos demais objetivos do governo. Os diplomatas são usados para espionar outros países e para levantar dados de inteligência da mesma forma que a CIA seria usada.
O papel da diplomacia é evitar guerras, mas muitos documentos mostram tudo menos isso. Há diplomatas tentando convencer outros países a deixar que os EUA participem de ações militares em seus territórios.

Na semana passada, a Força Aérea dos EUA bloqueou o acesso às páginas de veículos que publicam vazamentos. A polêmica em torno do WikiLeaks pode trazer de volta a discussão sobre censura na internet?
Isso vai justificar na cabeça de muita gente que seja criado algum tipo de repressão ou censura na internet, o que é um retrocesso. As pesquisas com o público americano mostram que a maioria acredita que o WikiLeaks causou mais danos do que benefícios e que Assange deve ser encarcerado.
Os governos sempre querem controlar a internet. A razão pela qual não podem fazer isso é a oposição pública. O compromisso do WikiLeaks com a transparência pode aumentar o apoio público ao controle da internet.

Como o sr. compara os governos de Barack Obama e George W. Bush em relação à liberdade de imprensa?
Quando Obama concorreu à Presidência, criticava Bush por sua guerra contra a transparência. A realidade é que não só ele continuou a maioria destas políticas como, em alguns casos, elas até pioraram.
O governo Bush ameaçou mover ações contra jornalistas que publicaram informações secretas e processar pessoas do governo responsáveis pelos vazamentos, mas quase nunca fez isso. O governo Obama já trouxe cinco diferentes ações contra pessoas do governo que vazaram informações.

O sr. citou um artigo do professor Jay Rosen, da New York University, que afirma que parte da repercussão do WikiLeaks é resultado da morte do jornalismo americano...
Depois do 11 de Setembro, a grande imprensa se tornou completamente identificada com o governo.
Eles cobriram a Guerra do Iraque embarcados com o Exército e começaram a ver o mundo pela perspectiva do governo.
A maior desgraça é que nosso governo levou o país a uma das mais terríveis guerras dos últimos cem anos baseado integralmente em mentiras, e a classe jornalística não se deu ao trabalho de submeter as informações a qualquer escrutínio.

Quais as consequências de um eventual processo dos EUA contra Assange?
Isso vai tornar os processos contra jornalistas muito mais prováveis. Se você criar uma teoria legal que permita um processo contra o WikiLeaks, isso dará poder ao governo de processar jornalistas por revelar seus segredos.
Revelar segredos de governo representa o corpo e também a alma do jornalismo investigativo.

Por que o sr. afirma que o WikiLeaks não está sujeito às leis americanas?
O WikiLeaks não é brasileiro ou americano. É uma organização sem Estado, não pertence a nenhum país e não existe fisicamente em lugar algum, apenas na internet. Não há mecanismo para definir qual lei se aplica a ele. Não se pode levá-lo à Justiça e obrigá-lo a revelar suas fontes. A maioria das pessoas não consegue pensar dissociada do Estado.
Parte do caráter único do WikiLeaks vem do fato de Assange ter sido criado de forma transnacional.
Ele se mudou centenas de vezes e foi criado de forma a não confiar ou seguir nenhuma autoridade.

Por que a "Time" elegeu Mark Zuckerberg personalidade do ano quando os leitores escolheram Assange?
Muitas pessoas usam o Facebook e Mark Zuckerberg ganha muito dinheiro com isso, mas se ele não existisse, nada iria mudar. A "Time" já elegeu Adolf Hitler e Joseph Stalin como personalidades.
Quando as pessoas perguntam zangadas: "Mas como vocês fizeram isso"? Eles sempre dizem que não é a opção de que gostamos, mas a que teve maior impacto.
Em 2001 a pessoa de maior impacto foi Osama bin Laden, mas eles tiveram muito medo e escolheram Rudolph Giuliani [ex-prefeito de Nova York]. Agora, é claro que Assange tem mais impacto do que Zuckerberg.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Inventário vai identificar diversidade linguística

Do Portal Vermelho

Instituído na última semana, o Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL) é um meio de identificação e documentação das línguas portadoras de referência à identidade, ação e memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.
 
O objetivo é mapear e dar visibilidade às diferentes situações relacionadas à pluralidade linguística brasileira, para permitir que as línguas sejam objeto de políticas patrimoniais que colaborem com a continuidade e valorização.

As línguas inventariadas receberão o título de Referência Cultural Brasileira, que será expedido pelo Ministério da Cultura (MinC).

No Brasil são faladas, atualmente, cerca de 210 línguas. Segundo estimativas, os grupos indígenas falam aproximadamente 180 línguas e as comunidades de descendentes de imigrantes, cerca de 30 línguas.

Além disso, usam-se, pelo menos, duas línguas de sinais de comunidades surdas, línguas crioulas e práticas linguísticas diferenciadas nas comunidades remanescentes de quilombos, muitas já reconhecidas pelo Estado e em outras comunidades afrobrasileiras. Há também uma ampla riqueza de usos, práticas e variedades da língua portuguesa falada no Brasil.

O inventário será coordenado pelo MinC, por meio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e os ministérios da Educação, Justiça, Ciência e Tecnologia e Planejamento, Orçamento e Gestão.

Esta nova política de reconhecimento das línguas faladas no Brasil é resultado das atividades desenvolvidas pelo Grupo de Trabalho da Diversidade Linguística (GTDL), constituído em 2006.

Fazem parte dele os representantes dos ministérios envolvidos e da sociedade civil, que formaram o Instituto de Desenvolvimento em Política Linguística (Ipol), da comunidade acadêmica, representada pela Universidade de Brasília (UnB) e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

Para a efetiva implantação, foram realizados projetos-piloto com línguas de categorias ou situações sociolinguísticas diferentes, com o objetivo de permitir uma melhor previsão de custos, prazos e metodologias adequadas.

Esses projetos, que estão em fase de conclusão, foram selecionados por meio de editais do Conselho Federal Gestor do Fundo de Defesa de Direitos Difusos, do Ministério da Justiça, e do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, do Ministério da Cultura.

No Brasil são faladas, atualmente, cerca de 210 línguas: 180 línguas utilizadas por grupos indígenas, 30 línguas utilizadas por comunidades de descendentes de imigrantes.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Por que o sistema público de Saúde no Brasil é tão ruim?


Por Dráuzio Varella

Desde que sou criança, os doentes formam fila na porta dos hospitais. O fato é tão corriqueiro que ninguém mais liga; foi incorporado à cultura brasileira.

No meu tempo de faculdade, a maioria dos professores falava num tom educado com os alunos e elevava a voz para fazer perguntas ao doente, na cama. As mulheres todas eram dona Maria e os homens, seu Zé, sem exceção. No início, os alunos ficavam chocados, mas, com o passar do tempo, boa parte adotava a estupidez dos mais velhos como norma de conduta.

Naquele tempo, as mocinhas que chegavam ao pronto-socorro do Hospital das Clínicas com sangramento ginecológico provocado por abortos clandestinos eram submetidas à curetagem uterina sem anestesia. Os chefes de serviço justificavam esse procedimento, por meio do qual o colo do útero é pinçado, tracionado com uma garra de metal e raspado por dentro com um instrumento em forma de pequena colher, dizendo que, se dessem anestesia, o pronto-socorro ficaria mais lotado ainda. Pareciam imaginar que, se deixassem de sentir dor, as moças engravidariam por prazer, só para fazer curetagem nas Clínicas.

Nós, daquela geração de universitários rebeldes dos anos 60, obedecíamos como cordeiros às ordens superiores de curetar a sangue-frio. Não deve doer tanto assim, pensávamos resignados.

Os doentes que vinham ao ambulatório eram obrigados a chegar antes das oito da manhã. Todos! Quem chegasse mais tarde voltava para casa sem atendimento. Como os médicos não podiam examinar todo mundo ao mesmo tempo, havia gente que ia ser atendida às 13h. Os que tinham sorte esperavam sentados num banco de pau; os outros, em pé, horas e horas. Eram comuns os desmaios de fome e fraqueza na fila.

Apesar de hoje existirem exceções - passaram-se mais trinta anos – pouco mudou: horas na fila para os que dependem de postos de saúde, ambulatórios ou hospitais públicos federais, estaduais e municipais é a rotina. Esperam e, ainda de sobra, têm de aturar má-criação.

Ninguém seria ingênuo a ponto de supor que é fácil organizar o atendimento médico à população de baixa renda no território nacional e que os governantes não o fazem por simples desinteresse. É lógico que se trata de um problema de enorme complexidade.

Podemos até justificar a persistência teimosa das filas argumentando que são conseqüência inevitável do excesso de demanda por serviços gratuitos; afinal, a população não pára de crescer e a pobreza, de aumentar.

Da mesma forma, a falta de educação, que tantas vezes vai do porteiro ao médico, pode ser explicada pelos baixos salários, que inviabilizam a contratação de pessoal qualificado para lidar com o público. O "senta aí e espera", o "não posso fazer nada" e o "volta amanhã, que hoje não dá mais" seriam mero reflexo da proletarização do funcionalismo.

Vamos ao primeiro argumento: o número de doentes. Se é humanamente impossível atender todos às 8h, por que até hoje se faz uma pessoa doente acordar no escuro e pegar duas ou três conduções para ser vista pelo médico ao meio-dia? Como é que algumas empresas de saúde abarrotadas de conveniados conseguem atender tanta gente com hora marcada e mandá-los depressa de volta para a fábrica? Já pensaram no futuro que um médico teria se adotasse esse sistema em seu consultório particular e pedisse que dez doentes chegassem às 14h? Não é possível que não exista jeito de organizar melhor o horário de atendimento nos postos públicos. Um pouco que seja, pelo menos: deixar a pessoa esperar no máximo duas horas em vez de cinco ou seis, por exemplo.

O segundo argumento apresenta os maus-tratos como inseparáveis dos salários baixos pagos aos funcionários da área de saúde. De fato, a categoria ficou gradualmente empobrecida, mas existem exceções: alguns recebem do Estado muito mais do que alcançariam na iniciativa privada, tendo de trabalhar o dobro do número de horas. Outros têm salário de príncipe pelo pouco, ou nada, que fazem. Se valesse a desculpa do salário, pelo menos esses privilegiados deveriam dar exemplo de dedicação.

Depois, se fosse assim, como explicar os casos dos funcionários que moram em favela e, no trabalho, tratam dos doentes com dedicação comovente? A atendente de enfermagem que, abandonada pelo marido, acorda às 4h para cozinhar, deixar as crianças na creche e chegar ao hospital pontualmente às 7h para dar banho nos doentes, tudo com um sorriso nos lábios e palavras de conforto? Se a culpa fosse apenas do salário, essa minoria de servidores que dignificam a condição humana estaria extinta há anos.

Talvez a explicação mais sensata para o tamanho das filas e do sofrimento humilhante imposto aos pacientes constrangidos a utilizar o sistema público de saúde no Brasil seja outra: os responsáveis pela organização do atendimento médico gratuito não dependem dele. As pessoas influentes da sociedade, que poderiam pressioná-los se quisessem, também não.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Cinema nacional bate recordes em 2010

Tropa de Elite 2 - Produção da Zazen que traz o Capitão Nascimento foi uma das mais vistas  pelos espectadores nos últimos anos

Do Portal Vermelho

Apesar de comemorados, os sucessos do cinema brasileiro da chamada era da retomada, iniciada com a Lei do Audiovisual, deixavam um travo de incômodo em parte do mercado. É que todos eram fruto de uma vitória comercial, sob certo aspecto, mais estrangeira do que nacional. Explique-se.

Um artigo que permite que distribuidoras estrangeiras apliquem, em filmes brasileiros, parte de imposto que deveriam pagar ao remeter o lucro para a matriz, fez com que quase todas se associassem a produtores locais.

Foi a Fox que lançou "Se Eu Fosse Você 2", foi a Sony que coproduziu e distribuiu "Carandiru" e "Dois Filhos de Francisco", foi a Warner que colocou nas salas de cinema os sucessos da Xuxa.

Foi, porém, a brasileira Zazen que produziu e distribuiu "Tropa de Elite 2" e que respondeu por cerca de 44% dos ingressos vendidos pelo cinema nacional até aqui. A segunda no ranking de 2010, a Sony/Disney, aparece com 21,33% de participação.

"Pós-retomada, é a primeira vez que a liderança fica com uma empresa brasileira", diz Manoel Rangel, presidente da Agência Nacional de Cinema (Ancine).

Em 2002, a brasileira Lumière, que distribuiu "Cidade de Deus" e "Abril Despedaçado", mordeu 52,1% do market share do filme nacional. Mas a empresa trabalhava em parceria com a Miramax internacional.

E, neste ano, levadas em conta as associações, outras distribuidoras brasileiras se deram bem no negócio. A Downtown, por exemplo, partilhou com a Sony o lançamento de "Chico Xavier".

"Esse movimento veio para ficar", aposta Rangel, tomando por base a carteira de lançamentos de 2011, indicativa de que os filmes com potencial de público deixaram de ser monopólio das distribuidoras estrangeiras.

A ultrapassagem da Zazen se deu num ano forte não só no cinema nacional, mas no mercado como um todo, comprovando, de uma vez por todas, que o filme nacional não tira público do estrangeiro: soma.

A Ancine estima que, até o final do ano, os filmes brasileiros terão vendido de 24 a 25 milhões de ingressos.

O público total deve ficar entre 136 e 138 milhões, batendo o resultado de 2004, quando foram vendidos 117 milhões de ingressos - até então, recorde da década. Em 2009, foram 112,7 milhões de espectadores.

Se foi grande o aumento no número de ingressos, maior ainda foi o aumento na renda. A arrecadação, neste ano, deve ser cerca de 30% maior que a de 2009. Além de refletir o crescimento do público, o índice chama a atenção para a força do 3D que, apesar de mais caro, tem sido um ímã poderoso.

Essa cifra fará, inclusive, com que o mercado brasileiro supere o mexicano em renda e saia da 15ª para a 14ª posição no ranking mundial.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Parabéns, Oscar Niemeyer!

Amigo Fiel - Arquiteto  colaborou para o sustento do líder comunista Luís Carlos Prestes que não dispunha de renda própria na velhice

Com pelo menos 15 desenhos em sua mesa de trabalho, um samba lançado na internet e a edição do próximo número de sua revista "Nosso Caminho" a ser divulgada, o arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer  - nascido no dia 15 de dezembro de 1907 - completou hoje 103 anos de vida em plena atividade.

Autor dos palácios e outros edifícios de Brasília e de numerosas obras pelo mundo todo, o arquiteto também marcará Campina Grande com sua genialidade, em breve, por meio do Museu de Arte Popular da Paraíba, o mais novo projeto cultural da UEPB. Já conhecida como Museu dos Três Pandeiros, devido às estruturas circulares que a compõe e que lembram o instrumento de percussão, a obra começou a ser erigida este ano e adornará as margens do Açude Velho. 

"Ele (Niemeyer) gosta de manter a cabeça ocupada o tempo todo e por isso nunca pensou em parar de trabalhar", explicou Vera Lucia Niemeyer, a mulher que o arquiteto se casou às escondidas aos 98 anos e que foi sua principal auxiliar por mais de 10 anos.

Nem a idade nem os problemas que o levaram ao hospital por várias vezes nos últimos anos impedem que Niemeyer trabalhe normalmente.

"Por que seria diferente com o trabalho? Ele vive tranquilamente, tem uma dieta normal e segue tomando seu vinho. A única mudança é que parou de fumar há três meses", garantiu Vera Lucia.

O gênio das curvas em concreto e considerado um dos pais da arquitetura moderna permanece ativo após mais de um século de vida e comparece diariamente ao escritório com vista privilegiada para a praia de Copacabana, buscando sempre desafios para a criatividade.

O último projeto foi a composição de um samba, cuja versão digital foi lançada no portal de uma gravadora e na qual fez parceria com o enfermeiro Caio Almeida e com o músico Edu Krieger.

A letra de "Tranquilo com a vida", uma música sobre a simplicidade do carioca que vive na favela sem perder a esperança do fim das injustiças sociais, reflete o humanismo de um ativista que se manteve fiel ao comunismo inclusive depois da queda do Muro de Berlim e do desaparecimento da União Soviética.

O arquiteto escreveu a letra no ano passado, quando estava hospitalizado após uma cirurgia de intestino, enquanto a melodia ficou por conta de Almeida, que era seu enfermeiro na ocasião. O samba saiu do anonimato depois que Krieger a ouviu e pediu autorização para finalizá-la.

"Não é que ele queira se dedicar à música. Só a compôs porque ele estava à toa no hospital", explicou Vera Lucia ao ser questionada se o arquiteto tinha intenções de iniciar uma carreira musical tardia.

"Mas não foi sua primeira composição", avisou a esposa. "Há muito tempo (em 1962) ele lançou uma canção que chegou a ser conhecida como o samba do arquiteto", revelou Vera Lucia.

Seu aniversário foi marcado pela inauguração de um dos edifícios que projetou para o Centro Cultural Internacional Oscar Niemeyer em Avilés (Espanha).

O artista, que não costuma participar destes atos e sempre preferiu passar seu aniversário incógnito, aceitou o convite para assistir a uma festa em Niterói, vizinha do Rio de Janeiro.

"Ele não gosta de participar de festividades em seu aniversário, mas também não nega quando vale a pena", explicou Vera Lucia, que é a editora da revista "Nosso Caminho", adiantando que a próxima edição incluirá os desenhos de outros cinco projetos inéditos do arquiteto.

Na edição anterior já tinham sido publicados quatro projetos inéditos: a Câmara Municipal de Poços de Caldas, a Universidade da Música e de Artes de Araraquara, o Memorial a Ulysses Guimarães em Rio Claro e o Tribunal de Contas de Roraima.

O arquiteto também trabalha atualmente na catedral de Cristo Rei em Belo Horizonte, o Museu Pelé em Santos, o Aquário de Búzios, uma igreja na cidade de Petrópolis e na reforma do Sambódromo do Rio de Janeiro.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A árvore que floresce no inverno

Por Rubem Alves
Ilustração: Vincent Van Gogh - Amendoeira Florescendo (1890)

Os sinais eram inequívocos. Aquelas nuvens baixas e escuras... O vento que soprava desde a véspera, arrancando das árvores folhas amarelas e vermelhas. É, o inverno estava chegando. Deveria nevar. Viriam então a tristeza, as árvores peladas, a vida recolhida para funduras mais quentes, os pássaros já ausentes, fugidos para outro clima, e aquele longo sono da natureza, bonito quando cai a primeira nevada, triste com o passar do tempo...
Resolvi passear, para dizer adeus às plantas que se preparavam para dormir, e fui, assim, andando, encontrando-as silenciosas e conformadas diante do inevitável, o inverno que se aproximava. E foi então que me espantei ao ver um arbusto estranho. Se fosse um ser humano certamente o internariam num hospício pois lhe faltava o senso da realidade, não sabia reconhecer os sinais do tempo.
Lá estava ele, ignorando tudo, cheio de botões, alguns deles já abrindo, como se a primavera estivesse chegando.
Não resisti e, me aproveitando de que não houvesse ninguém por perto, comecei a conversar com ele, e lhe perguntei se não percebia que o inverno estava chegando, que os seus botões seriam queimados pela neve naquela mesma tarde.
Argumentei sobre a inutilidade daquilo tudo, um gesto tão fraco que não faria diferença alguma. Dentro em breve tudo estaria morto... E ele me falou, naquela linguagem que só as plantas entendem, que o inverno de fora não lhe importava, o seu era um ritmo diferente, o ritmo das estações que havia dentro.
Se era inverno do lado de fora, era primavera lá do lado de dentro dele, e seus botões de flor eram um testemunho da teimosia da vida que se compraz mesmo em fazer o gesto inútil. As razões para isso? Puro prazer.
Ah! Há tantas canções inúteis, fracas para entortar o cano das armas, para ressuscitar os mortos, para engravidar as virgens, mas não tem importância, elas continuam a ser cantadas somente pela alegria que contêm...
E há os gestos de amor, os nomes que se escrevem em troncos de árvores, preces silenciosas que ninguém escuta, corpos que se abraçam, árvores que se plantam para as gerações futuras, lugares que ficam vazios, à espera do retorno, poemas inúteis que se escrevem para ouvidos que não podem mais ouvir, porque alguma coisa vai crescendo por dentro, um ritmo, uma esperança, um botão pela pura alegria, um gozo de amor. E me lembrei de um pôster que tenho no meu escritório, palavras de Albert Camus: "No meio do inverno eu finalmente aprendi que havia dentro de mim um verão invencível".
E aí a alucinação teológica tomou conta da minha cabeça e me lembrei de uma velha tradição de Natal, ligada à árvore. As famílias levavam arbustos para dentro de suas casas. E ali, neve por todas as partes, elas os faziam florescer, regando-os com água morna. Para que não se esquecessem de que, em meio ao inverno, a primavera continuava escondida em alguma parte.
Inverno: o frio, a neve, o silêncio, a morte.
Quando as plantas florescem na primavera, ali os homens escrevem os seus nomes. Mas quando as plantas florescem no inverno, ali se escreve o nome do Grande Mistério...

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Carlos Ginzburg: "Não é possível ser audaz e prudente ao mesmo tempo"

Por Leandro Souza

O historiador italiano Carlo Ginzburg, 71, autor de "O Queijo e os Vermes" e um nome central da vertente chamada micro-história, defendeu em recente visita ao Brasil, uma postura combativa ao lidar com pesquisas históricas.
Para ele, o historiador deve agir como um advogado do diabo, apresentando questões difíceis às hipóteses. "Nenhuma afirmação pode ser considerada definitiva", disse. "Mas o ônus [da prova] é de quem suspeita."
Na ocasião, Ginzburg sugeriu uma leitura detida de fatos e circunstâncias, que chamou de "olhar lento, mas não tedioso", em contraposição a uma sociedade mergulhada em "imagens inflacionadas".
Ginzburg foi entrevistado pelo crítico literário e diretor de programação da Feira Literária de Parati (Flip), Manuel da Costa Pinto, e pela professora de história da USP, Laura de Mello e Souza. A mediação foi do jornalista Paulo Werneck. 

Leia a seguir os principais trechos da conversa

Provas
Quando é que podemos dizer ter provado algo? Seria útil que a linguagem nos oferecesse uma escala de provas -algo como prova de força quatro, cinco-, que pesasse o ônus da prova. O ônus é de quem suspeita. Mas nenhuma afirmação histórica pode ser considerada definitiva: toda afirmação é verdadeira até que se prove o contrário.

Advogado do diabo
A prova é como o advogado do diabo. Não é possível ser audaz e prudente ao mesmo tempo, só se você se desdobrar, uma parte formulando hipóteses com audácia, e a outra, apontando dificuldades e requerendo provas.
O advogado deve fazer as perguntas más, como se houvesse uma prova correta, criando um antagonismo.
Lévi-Strauss foi um advogado do diabo. Quando li pela primeira vez seu "Antropologia Estrutural", foi um encontro com um mundo muito distante. Foi esse desafio à história que me fascinou em Lévi-Strauss. Nos anos 70, o diálogo era intenso entre historiadores e antropólogos.
A antropologia, para mim, foi muito importante. Existe ainda hoje isso do antropólogo como figura inquisitiva.

Micro-história
Insisto que o termo micro não tem a ver com pequenez, com aquilo que esteja à margem dos objetos. Diz respeito a um olhar analítico, microscópico. É possível ver a perna de uma mosca no microscópio ou a textura da pele de um elefante. Esse elemento me é caro. Busco o excepcional, aquilo que nos dá um quadro da anormalidade.
A anomalia, por definição, contém a norma, é mais rica do que a norma do ponto de vista cognitivo. Mas eu não busco exaltar a anomalia.

Filologia
A superfície do texto registra tensões subterrâneas, como um sismógrafo. [Usar a técnica da leitura lenta] É como encostar a orelha no chão, como um índio que sente o barulho que vem de longe. Dentro de um texto, há sempre uma pluralidade de vozes e situações. É possível colher ali traços da realidade que está fora dele.

Google
[Os historiadores] Robert Darnton e Roger Chartier se preocupam com as implicações políticas e legais associadas a projetos do Google, que preveem a digitalização de uma quantidade enorme de livros que pertencem a bibliotecas públicas por uma instituição privada.
Eles veem no Google ferramentas de controle do usuário. Mas acho que ele pode ser usado contra as intenções de quem o domina. Na Revolução Francesa, o livro foi usado como instrumento de luta contra o controle. A possibilidade de um uso imaginativo, subversivo do Google não deve ser descartada.

Anomalia contemporânea
Não devemos partir das boas velhas coisas, dizia [Bertolt] Brecht, mas das malvadas coisas novas. Precisamos usar aquilo que nos ataca e nos enoja. Ver o horror, a feiura da realidade é difícil, mas devemos tentá-lo.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Basta tirar os sapatos

Por Michael Kepp (escritor norte-americano radicado há 27 anos no Brasil)
Ilustração: Vincent Van Gogh - Shoes (1888)


"GENTE INTERESSANTE" não é um clube exclusivo.
Qualquer um pode entrar, porque todos são interessantes para alguém. O grau de interesse depende do que a pessoa revela de si, e não do quanto ela mostra. Não precisa fazer um striptease. Basta tirar os sapatos e esperar os resultados.
Sim, tirar os sapatos traz riscos: chama a atenção para os buracos nas nossas meias.
Mas ser vulnerável humaniza e pode convencer o outro a também tirar os sapatos. A maioria precisa de um empurrãozinho para fazer isso.
Nas minhas crônicas, tiro bem mais do que os sapatos, porque o público está distante e normalmente é simpático.
Por isso, aos leitores já revelei minha transa com uma prostituta, a vez que botei no jornal um classificado amoroso, minhas dificuldades de lidar com a adolescência dos meus enteados, meu derrame e alguns dos meus defeitos (mas não os piores). Eu já escrevi até sobre meu pelo corporal. Mas, mesmo assim, eu nunca tiro tudo.
Todas essas confissões têm o propósito de provocar alguma reação: risos, lágrimas, raiva ou reflexão. Enfim, comover aqueles que conseguem se identificar comigo e se sentir menos alienados, menos solitários. Às vezes, essa cumplicidade se confirma em um e-mail que diz: "Sua crônica expressou algo que sempre senti e queria dizer, mas nunca consegui"."
Há pouco tempo, eu contei a um amigo que, durante uma viagem recente à minha cidade natal, visitei, pela primeira vez, o túmulo da minha mãe, que morreu quando eu tinha dez anos. E quando vi a lápide me emocionei tanto que a abracei como se fosse seu corpo. Daí ele me contou que há dois anos, no Peru, ele visitou a montanha onde ocorreu o acidente aéreo que matou seus pais quando ele tinha 13 anos. Quando viu uma cruz enorme fincada no lugar do desastre, ele se debruçou no solo diante dela e abriu os braços para dar nos seus pais o mesmo abraço simbólico que dei em minha mãe. Foi uma das raras vezes que ele se abriu comigo.
Ele tirou os sapatos porque eu tirei também. E quando duas pessoas começam a se expor, ambas ficam mais interessantes.
Uma pessoa pode ser interessante antes de abrir a boca. Pode ser também que ela nunca tire os sapatos e só revele que prefere se esconder.
Mas quem não corre o risco de se expor também paga um preço. Afinal, uma pérola só tem valor fora da ostra.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Casa de Fernando Pessoa na web


Por Jair Rattner, do Estadão

Conhecer o que lia Fernando Pessoa, as anotações que fazia nos seus livros, como ideias para poemas surgiam durante suas leituras. Isso é possível a qualquer pessoa. É que está disponível na internet a biblioteca digital do poeta português, no site da casa-museu dedicada a ele (http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt).

Os livros são os que acompanharam o poeta desde a adolescência - na época em que ele ainda morava na África do Sul. "O livro mais antigo é do século 19, quando Pessoa tinha 12 a 14 anos. São livros que vão desde essa época até sua morte, com 47 anos", conta o professor Jerônimo Pizarro, responsável pelo trabalho. O último livro foi parar na biblioteca do escritor em outubro de 1935, um mês antes de sua morte.

No total, o espólio de Fernando Pessoa que está na casa-museu reúne 1.312 títulos. No entanto, apenas pouco mais de 1.100 estarão disponíveis para consulta. "Não podemos colocar na internet todos os livros, por motivos de direitos autorais, porque alguns ainda não caíram no domínio público. Por exemplo, a família do poeta Antônio Boto não autorizou que os livros dele estivessem na rede, mas ainda vou falar novamente com eles", relata Pizarro. A legislação portuguesa prevê que os livros caiam no domínio público 70 anos após a morte do autor.

Pyp. 
 
Uma parte dos livros tem anotações feitas por Pessoa. Pizarro conta que nas margens dos livros aparecem os pré-heterônimos, o primeiro deles em um livro de quando Pessoa tinha perto de 15 anos. "Num livro de latim de 1904 aparece o nome de F. Pyps. Um dos primeiros heterônimos a assinar um poema em português é Pyp."

Ele conta que o acesso à biblioteca também permite entender como Pessoa construía seu pensamentos. Pizarro diz que os livros com mais anotações de Pessoa são os que ele leu durante a adolescência.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Violência contra homossexuais


Por Dráuzio Varella

A homossexualidade é uma ilha cercada de ignorância por todos os lados. Nesse sentido, não existe aspecto do comportamento humano que se lhe compare.
Não há descrição de civilização alguma, de qualquer época, que não faça referência a mulheres e a homens homossexuais. Apesar de tal constatação, esse comportamento ainda é chamado de antinatural.
Os que assim o julgam partem do princípio de que a natureza (leia-se Deus) criou os órgãos sexuais para a procriação; portanto, qualquer relacionamento que não envolva pênis e vagina vai contra ela (ou Ele).
Se partirmos de princípio tão frágil, como justificar a prática de sexo anal entre heterossexuais? E o sexo oral? E o beijo na boca? Deus não teria criado a boca para comer e a língua para articular palavras?
Se a homossexualidade fosse apenas uma perversão humana, não seria encontrada em outros animais. Desde o início do século 20, no entanto, ela tem sido descrita em grande variedade de invertebrados e em vertebrados, como répteis, pássaros e mamíferos.
Em alguma fase da vida de virtualmente todas as espécies de pássaros, ocorrem interações homossexuais que, pelo menos entre os machos, ocasionalmente terminam em orgasmo e ejaculação.
Comportamento homossexual foi documentado em fêmeas e machos de ao menos 71 espécies de mamíferos, incluindo ratos, camundongos, hamsters, cobaias, coelhos, porcos-espinhos, cães, gatos, cabritos, gado, porcos, antílopes, carneiros, macacos e até leões, os reis da selva.
A homossexualidade entre primatas não humanos está fartamente documentada na literatura científica. Já em 1914, Hamilton publicou no "Journal of Animal Behaviour" um estudo sobre as tendências sexuais em macacos e babuínos, no qual descreveu intercursos com contato vaginal entre as fêmeas e penetração anal entre os machos dessas espécies. Em 1917, Kempf relatou observações semelhantes.
Masturbação mútua e penetração anal estão no repertório sexual de todos os primatas já estudados, inclusive bonobos e chimpanzés, nossos parentes mais próximos.
Considerar contra a natureza as práticas homossexuais da espécie humana é ignorar todo o conhecimento adquirido pelos etologistas em mais de um século de pesquisas.
Os que se sentem pessoalmente ofendidos pela existência de homossexuais talvez imaginem que eles escolheram pertencer a essa minoria por mero capricho. Quer dizer, num belo dia, pensaram: eu poderia ser heterossexual, mas, como sou sem-vergonha, prefiro me relacionar com pessoas do mesmo sexo.
Não sejamos ridículos; quem escolheria a homossexualidade se pudesse ser como a maioria dominante? Se a vida já é dura para os heterossexuais, imagine para os outros.
A sexualidade não admite opções, simplesmente se impõe. Podemos controlar nosso comportamento; o desejo, jamais. O desejo brota da alma humana, indomável como a água que despenca da cachoeira.
Mais antiga do que a roda, a homossexualidade é tão legítima e inevitável quanto a heterossexualidade. Reprimi-la é ato de violência que deve ser punido de forma exemplar, como alguns países o fazem com o racismo.
Os que se sentem ultrajados pela presença de homossexuais que procurem no âmago das próprias inclinações sexuais as razões para justificar o ultraje. Ao contrário dos conturbados e inseguros, mulheres e homens em paz com a sexualidade pessoal aceitam a alheia com respeito e naturalidade.
Negar a pessoas do mesmo sexo permissão para viverem em uniões estáveis com os mesmos direitos das uniões heterossexuais é uma imposição abusiva que vai contra os princípios mais elementares de justiça social.
Os pastores de almas que se opõem ao casamento entre homossexuais têm o direito de recomendar a seus rebanhos que não o façam, mas não podem ser nazistas a ponto de pretender impor sua vontade aos mais esclarecidos.
Afinal, caro leitor, a menos que suas noites sejam atormentadas por fantasias sexuais inconfessáveis, que diferença faz se a colega de escritório é apaixonada por uma mulher? Se o vizinho dorme com outro homem? Se, ao morrer, o apartamento dele será herdado por um sobrinho ou pelo companheiro com quem viveu por 30 anos?

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Quem é o estagiário do STJ demitido grosseiramente pelo presidente da corte?


Por Ivan Marsiglia, do Estado de S. Paulo
Crédito da foto: Pablo Valadares

A testemunha descreve a cena tal qual a vítima fez constar no boletim de ocorrência. Por volta das 16h do dia 19 de outubro, o estagiário, após entregar um processo na seção de documentos administrativos, que fica no subsolo do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, dirigiu-se para a agência do Banco do Brasil no complexo de prédios da corte a fim de fazer um depósito por envelope para uma amiga. Vestindo camisa polo, calça jeans e sapato social, foi informado por um funcionário da agência de que em apenas um dos caixas eletrônicos poderia ser feita a transação. Justamente aquele, em uso por um homem de terno e gravata, aparentando 1,60 metro, que ele inicialmente não reconheceu. Postou-se atrás de linha de espera, traçada no chão da agência. O diálogo que se seguiu foi o seguinte:

- Quer sair daqui? Estou fazendo uma transação pessoal - disse o senhor, após voltar-se duas ou três vezes para trás, "de forma um tanto áspera", como relataria o jovem, em seu português impecável.
- Senhor, eu estou atrás da linha de espera. - foi a resposta, "em tom brando", como contou, ou "de forma muito educada", na confirmação da testemunha.
- Vá fazer o que tem que fazer em outro lugar! - esbravejou o homem em frente ao caixa eletrônico.
- Mas, senhor, minha transação só pode ser feita neste caixa...
- Fora daqui! - o grito, a essa altura, chamou a atenção de pessoas que passavam e aguardavam na agência.
E foi completada pelo veredicto, aos brados:
- Eu sou Ari Pargendler, presidente deste tribunal. Você está demitido, entendeu? Você está fora daqui, isto aqui acabou para você. De-mi-ti-do!

Assim terminou a carreira do estudante de administração Marco Paulo dos Santos, de 24 anos, na segunda mais alta corte do País. Ele entrara no STJ no início do ano, após passar por um processo seletivo do Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE), na capital federal, do qual participaram mais de 200 candidatos. Marco ficou entre os dez primeiros. Todos os dias, saía do apartamento onde mora com a mãe e o irmão em Valparaíso de Goiás, cidade-satélite a 35 km de Brasília, e levava uma hora de ônibus até chegar ao estágio. Dava expediente das 13h às 19h, pelo que recebia R$ 600 por mês, mais R$ 8 por dia de auxílio-transporte. Pouco importa. Martelo batido.

"Foi uma violência gratuita", avalia a brasiliense Fabiane Cadete, de 32 anos, que estava sentada com uma amiga na fila de cadeiras ao lado dos caixas eletrônicos naquele dia. "Ele (Pargendler) gritava, gesticulava e levantava o peito na direção do Marco." Chamou-lhe especialmente a atenção a diferença de estatura - literal, no caso - dos dois protagonistas. Marco tem 1,83 metro. "O juiz puxou tanto o cordão do crachá para ler o nome do menino, que as orelhas dele faziam assim, ó", mostra ela, empurrando as suas próprias como se fossem de abano.

Batalha difícil
Fabiane conta que ficou receosa antes de decidir depor em favor de Marco - que, no dia seguinte, registrou queixa por "injúria real" contra o presidente do STJ na 5ª delegacia da Polícia Civil do Distrito Federal. Funcionária de uma empresa que presta serviços ao tribunal, ela jura que nunca tinha visto Marco antes na vida, mas ainda assim se dispôs a contar o que viu. A amiga, que tem mais anos de casa no STJ, preferiu se preservar. "Eu não me sentiria em paz comigo mesma se não falasse", explica Fabiane, que cursa direito no Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb). "Como futura advogada, fiquei decepcionada com o ministro."

Como Ari Pargendler só pode ser julgado em instância superior no Judiciário, o delegado Laércio Rossetto encaminhou o caso ao Supremo Tribunal Federal (STF), onde o processo corre em segredo de Justiça. Remetido inicialmente para a ministra Ellen Gracie, esta se declarou impedida por manter relações de amizade com Pargendler. Redistribuído pelo presidente do Supremo, Cezar Peluso, caiu nas mãos do ministro Celso de Mello, jurista que não tem por hábito "sentar em cima" dos casos mais polêmicos.

O depoimento de Fabiane animou o até então cauteloso advogado de Marco, preocupado em não expor seu cliente a uma contraofensiva judicial. "Não tenho vocação nenhuma para Policarpo Quaresma", diz Antonielle Julio, que teve uma prévia das dificuldades que vai enfrentar quando solicitou à gerência do Banco do Brasil no STJ as imagens do circuito interno de segurança, que revelariam facilmente quem está com a razão. Ouviu que o sistema apresentou falha técnica e "não há imagem alguma".

A Bíblia e os 'policiais'
Marco Paulo dos Santos é negro, filho de brasileira com africano e nascido na Grécia. Vista de perto, sua história de vida é tão espantosa quanto o diálogo supostamente travado na agência bancária do STJ. Sua mãe, a doméstica Joana D’Arc dos Santos, de 56 anos, natural de Raul Soares (MG), passou como ele por um concurso que mudaria o rumo de sua existência. Ainda solteira, na década de 80, leu um anúncio no jornal Estado de Minas em que a esposa de um diplomata mineiro procurava uma empregada para acompanhar a família em seu novo posto no exterior. Quando chegou a Belo Horizonte para a entrevista, uma centena de candidatas já havia passado pelo crivo da patroa, mas foi Joana quem levou. "Ela agradou mais de mim", conta, na construção típica da zona da mata mineira.

Em Atenas, Joana conheceu o marinheiro cabo-verdiano José Manoel da Graça, que trabalhava em um navio petroleiro. O namoro deslizava em mar de rosas, quando o patrão recebeu ordens do Itamaraty para se transferir para a Embaixada do Brasil no Chile. E lá se foi Joana D’Arc de volta para a América. Mas, com banzo de seu africano, em pouco tempo abandonava o emprego para voltar a sua odisseia grega. Amigou-se com Manoel em Atenas e teve com ele dois filhos: Daniel David e Marco Paulo.

Cinco anos depois, foi a saudade do Brasil que bateu e Joana embarcou de volta com os meninos. Primeiro, para Minas; depois, Brasília. Manoel foi navegar outros mares. "Fiquei esperando, porque ele nunca disse que não vinha. Os telefonemas foram rareando, só Natal, aniversário... E Manoel acabou não vindo", dá de ombros. Hoje, é com a tormenta jurídica do caçula que ela se preocupa. "Sabe como é, a gente foi criada no negócio do ‘deixa pra lá’. Mas ele decidiu assim, entrego nas mãos de Deus."

Em casa, o primogênito Daniel, hoje com 27 anos, é o voluntarioso e bem-humorado. Já Marco sempre foi introvertido e responsável. A mãe conta que, enquanto faxinava nas casas de família, o garoto dava um jeito de se enfurnar na biblioteca dos patrões. "Sempre foi menino de ler. Passava duas, três horas... eu até esquecia dele." Daí a facilidade, talvez, com que passou em todos os testes que fez até hoje, inclusive o do Prouni - programa de bolsas de estudos do governo, que lhe permite cursar administração no Iesb.

vangélico, como toda a família, Marco traz sempre a Bíblia debaixo do braço. E algum romance policial de Agatha Christie e Conan Doyle. Mas também passeou por leituras mais substanciosas, como O Príncipe, de Nicolau Maquiavel. "É uma aula de vida. Ele juntou todo o conhecimento de como se governar, lidar com as pessoas, a política e o poder. É muito útil para um administrador", ensina o estagiário defenestrado do STJ.

Na melodia do Supremo

Outro dos talentos de Marco é a música. Na igreja, deu seus primeiros acordes. E logo conseguiu uma bolsa no tradicional Clube do Choro de Brasília, onde estuda violão de sete cordas. O professor, o instrumentista carioca Fernando César, de 40 anos, é só elogios: "Ele é um cara supertranquilo, aplicado e musical. Lê muito bem partitura". Empreendedor precoce, escreveu e lançou em junho, por uma editora evangélica, um método de ensino de violão para os fiéis sem condições de pagar por um curso. Agora, ainda desempregado, dedica-se com mais afinco à execução de clássicos como Vou Vivendo, de Pixinguinha, cujos versos finais são: "Vou vivendo assim/ Porque o destino me fez um vadio/ Novo endereço ele vai traçar/ E virei para te avisar/ Quando à noite uma toalha de estrela/ Tiver para me cobrir".

Mesmo apreensiva, Joana D’Arc não esconde o orgulho pela coragem do filho em enfrentar o presidente de uma das instituições mais poderosas do País. "Antes de ir para a Grécia eu era um bicho assustado. Achava que por ser negra e pobre era normal ser humilhada e maltratada. Mas lá, a gente entrava num restaurante ou em qualquer lugar chique e era recebido como todo mundo. Então, não deixei meus filhos crescerem com esse pensamento meu."

Procurado pela reportagem para dar sua versão dos fatos, o ministro Ari Pargendler disse por intermédio da assessoria que não vai se manifestar. No telefone da corte, em chamada de espera, ouve-se a seguinte mensagem: "Ter acesso rápido e fácil à Justiça é um direito seu. STJ, o Tribunal da Cidadania".

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Artistas se apresentam hoje no Parque do Povo em favor das pessoas que vivem com o HIV/Aids

Estrela confirmada - Val Donato integra o grupo de artistas 
que abrilhantará o evento

Por Severino Lopes, do Diário da Borborema

Artistas campinenses que representam os diversos estilos musicais, como o forró, a MPB e até música internacional, unem-se no mesmo palco para formar uma corrente de solidariedade na luta contra a AIDS. O show beneficente será realizado hoje, a partir das 20h, na pirâmide do Parque do Povo. Com título "Um encontro marcado com a vida", o show terá a participação de artistas como Tan, Val Donato, Janine, Sandra Medeiros, Roberta Silvana, Ranniery Gomes, Pepysho Neto, Tony Dumond, entre outros. O show acontece dentro da programação do Dia Mundial de Luta Contra a Aids, que tem como tema "Somos iguais, preconceitos não". A entrada será 2 kg de alimentos que serão doados para pessoas que vivem com HIV/Aids e portadores de tuberculose.
Um dos primeiros artistas a pisar no palco será o cantor campinense Alexandre Barros (Tan). O cantor preparou um repertório com músicas de intérpretes consagrados da MPB, como Caetano Veloso, Emílio Santiago, Cazuza, Tom Jobim, Cauby Peixoto e Roberto Carlos. Tan, que no ano passado lançou o DVD Bolero & Canções, garante que a música tem o poder de levar alegria e estimular a solidariedade.

Depois de Tan será a vez da cantora campinense Sandra Medeiros soltar a sua voz. Entre o show de Tan e o de Sandra Medeiros, a cantora, compositora e instrumentista campinense Roberta Silvana subirá ao palco. A artista está divulgando o seu quarto trabalho.

O CD faz uma releitura de músicas de MPB gravadas por artistas consagrados. Roberta faz viagem por Zeca Baleiro, passando por Adriana Calcanhoto, Ana Calorina até Nando Reis. Com uma voz afinadíssima e melodiosa, passeia pela MPB, o pop e a música internacional de boa qualidade. Com mais de 20 anos de carreira, Roberta Silvana já gravou quatro CDs, sendo que o mais recente trabalho reúne músicas da MPB. Roberta também está preparando um CD com músicas internacionais.

Val Donato: eclética

Recentemente ela abriu o show de Oswaldo Montenegro. Vivendo um momento especial de sua carreira, a cantora Val Donato não poderia ficar de fora dessa corrente de solidariedade. Ela sobe para dividir com os amigos esse momento novo.

Val é uma das melhores intérpretes da nova geração da música campinense. Aos 27 anos já gravou um CD, denominado Versões, com músicas de vários artistas nacionais, e está se preparando para gravar o primeiro DVD com canções inéditas. Em seu eclético repertório estão principalmente MPB e pop rock. É o que ela promete mostrar hoje.

Com sangue de nordestino correndo nas veias, o sanfoneiro Ranniery Gomes vai levar o forró pé de serra para o show. Desde 2005, ele vem conquistando espaços privilegiados nos palcos de Campina Grande e da Paraíba. Na mala, possui quatro CDs gravados, a maioria com composições próprias e um DVD recém lançado, gravado no Maior São João do Mundo. Outros artistas do cenário local confirmaram presença.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

"A grande literatura do século vem da América Latina", diz Francis Ford Coppola

Fonte da Juventude - "Me sinto com 20 anos", diz Coppola, 71

Por Bruno Yutaka Saito, da Folha Ilustrada

Está longe o tempo em que Francis Ford Coppola era o "chefão" de Hollywood. Mas, ainda assim, quando entra na sala para a coletiva de imprensa, o respeito que impõe é digno de Don Corleone em "O Poderoso Chefão" (1972).
Mas logo a tensão se desfaz. O diretor norte-americano conversou calmamente com jornalistas ontem, na Faap, para divulgar seu mais recente filme, "Tetro".
"Estou em um momento da vida em que posso fazer o filme que quiser, desde que esteja dentro do meu orçamento", diz Coppola.
Aos 71 anos, o cineasta diz começar a segunda fase de sua carreira. Alçado ao estrelato nos anos 70, foi à falência com o fracasso de "O Fundo do Coração" (82). Passou boa parte dos anos 80 fazendo filmes sob encomenda para pagar dívidas e, nos anos 90, fez apenas três filmes.
Acabou se reinventando como empresário. Com os lucros de vinícola na Califórnia e outros empreendimentos, Coppola hoje financia seus próprios filmes. "Tetro" é o segundo filme nesse modelo. "Velha Juventude" (2007) marcou o retorno às telas após hiato de dez anos.
Pouco antes de chegar ao Brasil havia finalizado o terceiro, "Twixt Now and Sunrise", com Val Kilmer. "Veja, ainda tenho lama nos meus pés", disse para o jornalista, sobre o filme que, segundo ele, marca um retorno às suas origens no terror, quando trabalhava para o produtor e diretor Roger Corman.
"Tetro", drama sobre uma família fraturada por traumas, foi filmado na Argentina. "A grande literatura do século vem da América Latina: Cortázar, Borges, Bolaño, Jorge Amado...Esperava que, indo lá, seria inspirado por essa tradição."
O diretor não descarta a possibilidade de, um dia, filmar no Brasil. "O real tem se valorizado e há uma ótima prosperidade. Mas parece que filmar aqui é tão caro quanto em outros países. Romênia e Argentina são mais vantajosos por causa da cotação da moeda local em relação ao dólar. Você sabe se é muito caro filmar no Brasil?"
Não seria o primeiro envolvimento do diretor com o país. Em 1998, Coppola veio ao Brasil e participou de eventos relacionados a "Chatô", filme não concluído até hoje por Guilherme Fontes.
"Ele queria a tecnologia moderna da Zoetrope [estúdio de Coppola e George Lucas]. Mas, quando cheguei ao Rio, ele queria que eu dirigisse o filme."
"Eu falei: "Bem, não sei se é algo que quero fazer, mas te darei os todos os conselhos que você precisar. Fiquei surpreso depois quando disse que ele mesmo iria dirigir. Por que você não escolhe Hector Babenco ou Bruno Barreto, perguntei (...) Ele chegou a terminar o filme?"


RAIO-X COPPOLA

VIDA
Nasceu em 1939, em Detroit, mas cresceu em um subúrbio nova-iorquino que serve de referência para alguns filmes. A família é de artistas: o pai é músico e a mãe, atriz. É pai da também cineasta Sofia ("Encontros e Desencontros")

CARREIRA

Com uma trajetória de cerca de 50 anos, produziu, escreveu e dirigiu dezenas de filmes. Em 1972, assinou a direção e o roteiro, ao lado do autor Mario Puzo, de "O Poderoso Chefão", sucesso de público e de crítica

PRÊMIOS

Recebeu cinco Oscars. Três em 1975, por "O Poderoso Chefão 2": melhor filme, diretor e roteiro adaptado. Também ganhou duas vezes a Palma de Ouro em Cannes, por "Apocalypse Now" (1979) e "A Conversação" (1974)

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Ginzburg e o enigma da "Flagelação de Cristo"

Controvérsia - Historiador italiano fez investigação obssessiva engrossando o debate em torno da obra

Por Bernardo Carvalho  

RESUMO
Em ensaio já clássico, o historiador Carlo Ginzburg procura, nas circunstâncias políticas de cidades italianas como Roma, Arezzo e Florença e na oposição entre igreja do Oriente e do Ocidente no século 15, os sinais que o levaram à atribuição do quadro "A Flagelação de Cristo" ao mestre da pintura Piero della Francesca.
_____________________________________________


UM DOS MAIORES ENIGMAS da história da pintura tem 81 por 58 centímetros. E permanece até hoje no palácio renascentista que um duque zarolho mandou construir, em meados do século 15, com o dinheiro de seu exército mercenário (depois de perder o olho direito num torneio), determinado a fazer de sua pequena cidade, encarapitada no alto de uma colina, um centro humanista e artístico à altura de Florença.
O esforço acabou dando algum resultado. Tanto que foi no palácio ducal de Urbino que Castiglione se inspirou para escrever, décadas depois, um dos grandes clássicos do Renascimento italiano e da literatura ocidental, o best-seller "O Cortesão", manual de comportamento na corte. E é lá, numa das salas espartanas com paredes caiadas, que está exposto o pequeno "A Flagelação de Cristo", uma das maiores obras-primas da história da pintura e "um dos casos mais controversos da hermenêutica artística", como o define o historiador Carlo Ginzburg em seu arrebatador "Investigando Piero", ensaio escrito à maneira de um romance policial, sobre um quadro em relação ao qual a única certeza (graças ao detalhe de uma inscrição que faz referência explícita ao local de nascimento do pintor) é a autoria de Piero della Francesca.

MISTÉRIO Quase nada se sabe sobre Piero -como é conhecido o mestre de Borgo Sansepolcro, vilarejo nos arredores de Arezzo, onde ele nasceu, entre 1415 e 1420, e onde morreu, em 1492, enquanto era descoberto o Novo Mundo.
"A Flagelação de Cristo" nunca facilitou descoberta nenhuma. Ao contrário, o mistério do quadro é inversamente proporcional à modéstia de suas dimensões -o que não impede que as proporções internas da cena representada na pintura correspondam (segundo a "mística da medida" perfeitamente dominada por Piero, teórico e inovador notável da perspectiva) à suposta altura de Cristo, "modelo da perfeição física do Homem-Deus", deduzida de relíquias transferidas de Jerusalém para a cidade de Roma.
Em 1981, Carlo Ginzburg, hoje professor da Escola Normal Superior, em Pisa, e um dos expoentes da chamada "micro-história" (escola que privilegia as anomalias, as especificidades e os casos particulares na composição do contexto histórico), resolveu dar a sua contribuição à controvérsia. E foi mexer logo na cronologia.
Baseado em toda uma teoria que combina os poucos dados biográficos conhecidos do pintor com a conjuntura política e religiosa da Itália depois da queda de Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, em 1453, Ginzburg contestou a data atribuída à obra por especialistas da estatura de Roberto Longhi -autor de uma "Breve mas Verídica História da Pintura Italiana" e de um estudo seminal sobre Piero, de 1927 (ambos também publicados pela Cosac Naify). E propôs uma ousada reinterpretação dos personagens em cena, chegando a uma explicação espetacular da obra.

DISPUTAS Tudo gira em torno das disputas e dos esforços de reconciliação entre a igreja do Oriente, sediada em Constantinopla (atual Istambul) antes da invasão turca, e a igreja de Roma. Tudo se resume às disputas e troca de favores entre as cortes italianas -e entre estas e a igreja.
Boa parte da igreja do Oriente se opunha à reconciliação com a igreja de Roma, enquanto os humanistas de ambos os lados, zelosos do que a Antiguidade grega representava para o Ocidente, não poupavam esforços em favor da unidade.
Ginzburg sustenta a tese de que "A Flagelação de Cristo" seria uma encomenda enviada ao duque de Urbino, Federico da Montefeltro, como forma de pressioná-lo a levantar seu Exército contra os turcos, em defesa do último bastião do cristianismo no Oriente, depois da queda de Constantinopla, que marca o fim da Idade Média.
O duque resistia à ideia de uma cruzada para salvar o pouco que restava do Império Bizantino -o Despotado da Moreia, na Grécia, que viria a cair de qualquer jeito, sete anos depois de Constantinopla. E o mais extraordinário nesse quebra-cabeças romanesco montado por Ginzburg é o argumento de que, para convencê-lo a ir à guerra, o quadro vai associar simbolicamente a grande história à anomalia e à tragédia de sua vida privada.

ENCOMENDA O primeiro passo da investigação é saber quem encomendou o quadro. A resposta depende da articulação entre os dois planos representados na pintura. À esquerda, e ao fundo, Cristo é espancado, amarrado a uma coluna, sob o olhar impassível de Pilatos, sentado num trono. Ginzburg o identifica, pelos trajes, com o imperador bizantino, João 8º Paleólogo, que, em sua inércia, refém do movimento contrário à união das duas igrejas, acabou sendo cúmplice dos martírios infligidos aos cristãos pelos turcos. A arquitetura da cena alude a edifícios específicos e relíquias mantidas em Roma, dando munição ao historiador para situar o quadro cronologicamente à altura da passagem de Piero pela cidade, em 1458-59, e refutar as datações anteriores.
No primeiro plano, à direita, estão três personagens. É a cena principal, a despeito do nome da obra. Diante da dificuldade de identificação, Ginzburg resiste a entendê-los apenas como alegorias ou representações de tipos anônimos. São retratos. O historiador vai identificar o personagem mais à direita com figuras recorrentes em outras obras de Piero, sobretudo no célebre ciclo de Arezzo, sua obra-prima.
Quando esteve em Florença, ainda jovem, Piero frequentou os humanistas toscanos, com os quais também mantinha relações de amizade, como o comerciante aretino Giovanni Bacci, futuro protetor do artista. É Bacci quem vai encomendar os afrescos da igreja de San Francesco, em Arezzo, que contam a "lenda da verdadeira Cruz" (a história da madeira na qual Cristo foi crucificado). É um homem do poder, que terá um papel importante dentro da igreja. É ele o personagem à direita.
O da esquerda, identificado pela indumentária e pela barba de estrangeiro, é o bispo grego Bessarion, ilustre representante da igreja do Oriente e militante da causa da unidade entre as duas igrejas, que depois Roma vai nomear cardeal. É ele quem faz a ligação entre os dois planos da pintura. Seus lábios estão entreabertos. E o que ele conta é o sofrimento dos cristãos nas mãos dos turcos, que a cena secundária, da flagelação de Cristo ao fundo, representa como alegoria.

PONTO CEGO Graças a uma investigação obsessiva, recorrendo às provas sempre que possível (mas também incorporando ao relato os próprios percalços da pesquisa), Ginzburg faz o leitor imaginar o encontro entre Piero, seu protetor aretino e o cardeal grego, em Roma, com o objetivo de exortar o duque de Urbino à Cruzada, por meio de uma pintura. E o principal argumento para convencê-lo será esse ponto cego da iconografia que é a terceira figura angelical e misteriosa entre os dois personagens em primeiro plano.
O rapaz, que lembra os anjos de outras obras de Piero, como o "Batismo de Cristo", está descalço, ao contrário dos que o cercam, e olha para fora do quadro, para o além -para o mundo do espectador, talvez, e de Federico da Montefeltro, a quem a encomenda se dirige.
É uma figura que não está na mesma dimensão das outras. "Os olhos do misterioso jovem louro fitam algo que não vemos", insinua Ginzburg. Era preciso falar ao coração do duque. E é esse apelo, na interpretação do historiador, que revela afinal a identidade do jovem, figura-chave do mistério, que aqui vai permanecer incógnito para não estragar a surpresa e o encanto do leitor.

OBJETOS DA NATUREZA Federico da Montefeltro chegou ao poder em 1444, substituindo o irmão assassinado numa emboscada da qual não está excluída a sua participação. Piero della Francesca pintou um díptico famoso, hoje no museu dos Uffizi, em Florença, composto pelos retratos de Federico (de perfil, para evitar a visão sinistra da face direita, desfigurada pela lança que lhe arrancou o olho durante um torneio) e de sua mulher, Battista Sforza, recém-falecida. Sobre o díptico, o crítico Bernard Berenson escreveu: "Os retratos do duque e da duquesa de Urbino foram concebidos como se ambos fossem objetos da natureza, rochas, colinas". E sobre Piero: "Parece ter sido contrário à manifestação do sentimento, disposto a tudo para evitá-la. Hesitava até mesmo em reproduzir a reação natural acarretada pela investida de uma força contra um objeto inanimado, como por exemplo o ricochete de um tronco golpeado por um machado".
Uma impassibilidade capaz de levar um duque zarolho às lágrimas e à guerra.